VAI E FAZE MESMA COISA (LUC 10, 37) “God in us and above us,” namely, “God in us,” is devalued. The result is a completely different concept of God: God, understood as “God above us,” becomes, as it were, the essence of the creature: the creature is reduced to an essence‐less apparition of the “God above us,” who alone is real and efficacious. Transcendence and immanence are no longer bound together in a tension of opposites, but have become identical.
domingo, 19 de abril de 2020
A Igreja e a questão social
É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão confiadas a salvaguarda da religião e a dispensação do que é do domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever. Certamente uma questão desta gravidade demanda ainda de outros a sua parte de actividade e de esforços; isto é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que Nós afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua acção fora da Igreja. E a Igreja, efectivamente, que haure no Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que se não contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas também se esforça em regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com prudência, a sua parte do consenso.
A PROMOÇÃO DA PAZ I. ASPECTOS BÍBLICOS
A PROMOÇÃO DA PAZ
488 Antes de ser um dom de Deus ao homem e um projeto humano conforme o desígnio divino, a paz é antes de tudo, um atributo especial essencial de Deus: «Senhor – Paz» (Jz 6,24). A criação, que é um reflexo da glória divina, almeja a paz. Deus cria todas as coisas e toda a criação forma um conjunto harmônico, bom em todas as suas partes (cf. Gên 1,4.10.12.18.21.25.31).A paz funda-se na relação primária entre cada ser humano e Deus mesmo, uma relação caracterizada pela retidão (cf. Gên 17,1). Em seguida ao ato voluntário com que o homem altera a ordem divina, o mundo conhece espargimento de sangue e divisão: a violência se manifesta nas relações interpessoais (cf. Gn 4,1-16) e sociais (cf. Gn 11,1-9). A paz e a violência não podem habitar na mesma morada, onde há violência aí Deus não pode estar (cf. 1 Cr 22,8-9).
489 Na Revelação bíblica, a paz é muito mais do que a simples ausência de guerra: ela representa a plenitude da vida (cf. Mt 2,5); longe de ser uma construção humana, é um sumo dom divino oferto a todos os homens, que comporta a obediência ao plano de Deus. A paz é o efeito da bênção de Deus sobre o Seu povo: «O senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz» (Num 6,26). Tal paz gera fecundidade (cf. Is 48,19), bem-estar (cf. Is 48,18), ausência de medo (cf. Lv 54,6) e alegria profunda (cf. Pr 12,20).
490 A paz é a meta da convivência social, como aparece de modo extraordinário na visão messiânica da paz: quando todos os povos forem para a casa do Senhor e Ele indicará a eles os seus caminhos, estes poderão caminhar ao longo das veredas da paz (cf. Is 2,2-5). Um mundo novo de paz, que abraça toda a natureza, é prometido para a era messiânica (cf. Is 11,6-9) e o próprio messias é definido «Príncipe da Paz» (Is 9,5). Lá onde reina a Sua paz, lá onde essa vem parcialmente antecipada, «ninguém poderá mais lançar o povo de Deus no medo (cf. Sof 3,13). A paz será então duradoura, pois quando o rei governa segundo a justiça de Deus, a retidão germina e a paz abunda «até que cesse a lua de brilhar» (Sal 71,7). Deus aspira dar a paz ao Seu povo: «ele diz palavras de paz ao seu povo, para seus fiéis, e àqueles cujos corações se voltam para ele» (Sl 84,9). O Salmista, escutando aquilo que Deus tem a dizer ao seu povo sobre a paz, ouve estas palavras: «A bondade e a fidelidade outra vez se irão unir, a justiça e a paz de novo se darão as mãos» (Sl 84,11).
491 A promessa de paz, que percorre todo o Antigo Testamento, encontra o seu cumprimento na Pessoa mesma de Jesus. A paz, de fato, é o bem messiânico por excelência, no qual estão compreendidos todos os outros bens salvíficos. A palavra hebraica «shalom», no sentido etimológico de «plenitude», exprime o conceito de «paz» na plenitude do seu significado (cf. Is 9,5 s; Mi 5,1-4). O reino do Messias é precisamente o reino da paz (cf. Jó 25,2; Sl 29,11; 37,11; 71,3.7; 84, 9.11; 118,165; 124,5; 127,6; 147,3; Ct 8,10; Is 26,3.12; 32,17 s; 52,7; 54,10; 57,19; 60,17; 66,12; Ag 2,9; Zc 9,10 et alibi). Jesus «é a nossa paz» (Ef 2,14), Ele que abateu o muro divisório da inimizade entre os homens, reconciliando-os com Deus (cf. Ef 2,14): assim São Paulo, com simplicidade, indica a razão radical que motiva os cristãos a uma vida e a uma missão de paz.
Na vigília de Sua morte, Jesus fala de Sua relação de amor com o Pai e da força unificante que este amor irradia sobre os discípulos; é um discurso de despedida que mostra o sentido profundo da Sua vida e que pode ser considerado uma síntese de todo o Seu ensinamento. Sigila o Seu testamento espiritual o dom da paz: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14,27). As palavras do Ressuscitado não ressoarão diversamente; toda vez que Ele encontrar os Seus, estes receberão d’Ele a saudação e o dom da paz: «Paz a vós» (Lc 24,36; Jo 20,19.21.26).
492 A paz de Cristo é antes de tudo a reconciliação com o Pai, que se atua mediante o missão apostólica confiada por Jesus aos Seus discípulos; esta tem início com um anúncio de paz: «Em toda a casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa!» (Lc 10,5; cf. Rm 1, 7). A paz é pois reconciliação com os irmãos, porque Jesus, na oração que nos ensinou, o «Pai Nosso», associa o perdão pedido à Deus ao oferecido aos irmãos: «perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam» (Mt 6,12). Com esta dupla reconciliação o cristão pode tornar-se artífice da paz e, portanto, partícipe do reino de Deus, segundo quanto o mesmo Jesus proclama: «Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9).
493 A ação pela paz nunca é dissociada do anúncio do Evangelho, que é precisamente «a boa nova da paz» (At 10,36; cf. Ef 6,15), dirigida a todos os homens. No centro do «Evangelho da paz» (Ef 6,15), está o mistério da Cruz, porque a paz está inserida no sacrifício de Cristo (cf. Is 53,5: «O castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas»): Jesus crucificado cancelou a divisão, instaurando a paz e a reconciliação precisamente «pela virtude da cruz, aniquilando nela a inimizade» (Ef 2,16) e dando aos homens a salvação da Ressurreição.
II. A PAZ:
FRUTO DA JUSTIÇA E DA CARIDADE
FRUTO DA JUSTIÇA E DA CARIDADE
A paz é fruto da justiça (cf. Is 32,17)[1020], entendida em sentido amplo como o respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da pessoa humana. A paz é um perigo quando ao homem não é reconhecido aquilo que lhe é devido enquanto homem, quando não é respeitada a sua dignidade e quando a convivência não é orientada em direção para o bem comum. Para a construção de uma sociedade pacífica e para o desenvolvimento integral de indivíduos, povos e nações, resulta essencial a defesa e a promoção dos direitos humanos[1021].
A paz é fruto também do amor: «a verdadeira paz é mais matéria de caridade que de justiça, pois a função da justiça é somente remover os obstáculos para a paz, como por exemplo, a injuria e o dano caudados; mas a paz mesma é ato próprio e específico da caridade»[1022].
495 A paz se constrói dia a dia na busca da ordem querida por Deus[1023]e pode florescer somente quando todos reconhecem as próprias responsabilidades na sua promoção[1024]. Para prevenir conflitos e violências, é absolutamente necessário que a paz comece a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada pessoa: assim pode estender-se nas famílias e nas diversas formas de agregação social, até envolver toda a comunidade política[1025]. Em um clima difuso de concórdia e de respeito à justiça, pode amadurecer uma autêntica cultura de paz[1026], capaz de difundir-se também na Comunidade Internacional. A paz é, portanto, «fruto de uma ordem inscrita na sociedade humana pelo seu Divino Fundador e que os homens, sempre desejosos de uma justiça mais perfeita, hão de fazer amadurecer»[1027]. Tal ideal de paz «não pode conseguir-se na terra se não se salvaguardar o bem dos indivíduos e os homens não comunicarem entre si com confiança as riquezas do seu espírito e das suas faculdades criadoras»[1028].
496 A violência nunca constitui uma resposta justa. A Igreja proclama, com a convicção da sua fé em Cristo e com a consciência de sua missão, «que a violência é um mal, que a violência é inaceitável como solução para os problemas, que a violência não é digna do homem. A violência é mentira, pois que se opõe à verdade da nossa fé, à verdade da nossa humanidade. A violência destrói o que ambiciona defender: a dignidade, a vida, a liberdade dos seres humanos»[1029].
Também o mundo atual necessita do testemunho dos profetas não armados, infelizmente objeto de escárnio em toda época[1030]: «Aqueles que renunciam à ação violenta e sangrenta e, para proteger os direitos do homem, recorrem a meios de defesa ao alcance dos mais fracos testemunham a caridade evangélica, contanto que isso seja feito sem lesar os direitos e as obrigações de outros homens e das sociedades. Atestam legitimamente a gravidade dos riscos físicos e morais do recurso à violência, com seu cortejo de mortes e ruínas»[1031].
III. O FALIMENTO DA PAZ: GUERRA
497 O Magistério condena «a crueldade da guerra»[1032] e pede que seja considerada com uma abordagem completamente nova[1033]: de fato, «não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados»[1034]. A Guerra é um «flagelo»[1035] e não representa nunca um meio idôneo para resolver os problemas que surgem entre as nações: «Nunca foi e jamais o será»[1036], porque gera conflitos novos e mais complexos[1037]. Quando deflagra, a guerra torna-se uma «carnificina inútil»[1038], uma «aventura sem retorno»[1039], que compromete o presente e coloca em risco o futuro da humanidade: «Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra»[1040]. Os danos causados por um conflito armado, de fato, não são apenas materiais, mas também morais[1041]: a guerra é, ao fim e ao cabo, «a falência de todo o autêntico humanismo»[1042], «é sempre uma derrota da humanidade»[1043]: «nunca mais uns contra os outros, nunca mais, nunca!... nunca mais a guerra, nunca mais a guerra! »[1044].498 A busca de soluções alternativas à guerra para resolver os conflitos internacionais assumiu atualmente um caráter de dramática urgência, porque «a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as conseqüências de um conflito»[1045]. É portanto essencial a busca das causas que originam um conflito bélico, em primeiro lugar as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é necessário intervir com o objetivo de removê-las: «Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento»[1046].
499 Os Estados nem sempre dispõem dos instrumentos adequados para promover eficazmente a própria defesa: disso resulta a necessidade e a importância das Organizações Internacionais e Regionais, que devem ser capazes de colaborar para fazer frente aos conflitos e de favorecer a paz, instaurando relações de confiança recíproca aptas a tornar impensável o recurso da guerra[1047]: «É lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns da natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e seus respectivos povos não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens»[1048].
a) A legítima defesa
500 Uma guerra de agressão é intrinsecamente imoral. No trágico caso em que esta se desencadeie, os responsáveis por um Estado agredido têm o direito e o dever de organizar a defesa inclusive recorrendo à força das armas[1049].O uso da força, para ser lícito, deve responder a algumas rigorosas condições: «que: ― o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade das nações seja durável, grave e certo; ― todos os outros meios de pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes; ― estejam reunidas as condições sérias de êxito; ― o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na avaliação desta condição. Estes são os elementos tradicionais enumerados na chamada doutrina da “guerra justa”. A avaliação dessas condições de legitimidade moral cabe ao juízo prudencial daqueles que estão encarregados do bem comum»[1050].
Se tal responsabilidade justifica a posse de meios suficientes para exercer o direito à defesa, permanece para os Estados a obrigação de fazer todo o possível para «garantir as condições de paz não apenas sobre o próprio território, mas em todo o mundo»[1051]. Não se deve esquecer que «uma coisa é utilizar as forças militares para justa defesa dos povos, outra coisa é querer subjugar outras nações. O poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político dele mesmo. E depois de lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se torna lícito entre as partes inimigas»[1052].
501 A Carta das Nações Unidas, nascida da tragédia da Segunda Guerra Mundial e voltada a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, se baseia na interdição generalizada do recurso à força para resolver as controvérsias entre os Estados, exceto em dois casos: a legítima defesa e as medidastomadas pelo Conselho de Segurança no âmbito das suas responsabilidades para manter a paz. Em todo caso, o exercício do direito a defender-se deve respeitar «os limites tradicionais de necessidade e de proporcionalidade»[1053].
Quando, ademais, a uma ação bélica preventiva, lançada sem provas evidentes de que uma agressão está para ser desferida, essa não pode deixar de levantar graves questões sob o aspecto moral e jurídico. Portanto, somente uma decisão dos organismos competentes, com base em rigorosas averiguações e motivações fundadas, pode dar legitimação internacional ao uso da força armada, identificando determinadas situações como uma ameaça à paz e autorizando uma ingerência na esfera do domínio reservado de um Estado.
b) Defender a paz
502 As exigências da legítima defesa justificam a existência, nos Estados, das forças armadas, cuja ação deve ser posta ao serviço da paz: os que com tal espírito tutelam a segurança e a liberdade de um País, dão um autêntico contributo à paz[1054]. Toda a pessoa que presta serviço nas forças armadas é concretamente chamada a defender o bem, a verdade e a justiça no mundo; não poucos são aqueles que nas forças armadas sacrificaram a própria vida por tais valores e para defender vidas inocentes. O crescente número de militares que atuam no seio de forças multinacionais, no âmbito das «missões humanitárias e de paz», promovidas pelas Nações Unidas, é um fato significativo[1055].
503 Todo membro das forças amadas está moralmente obrigado a opor-se às ordens que incitam a cumprir crimes contra o direito das nações e os seus princípios universais[1056].Os militares permanecem plenamente responsáveis pelas ações que cometem em violação dos direitos das pessoas e dos povos ou das normas do direito internacional humanitário. Tais atos não podem ser justificadas com o motivo da obediência a ordens superiores.
Os objetores de consciência, os quais se recusam por principio a efetuar o serviço militar nos casos em que este seja obrigatório, porque a sua consciência os leva a rejeitar qualquer forma de uso da força, ou mesmo a participação em um determinado conflito, devem estar disponíveis a desempenhar outros tipos de serviços: «Parece justo que as leis prevejam o caso dos que, por imperativos de consciência, recusam tomar as armas, desde que entretanto aceitem servir, de outra forma, a comunidade humana»[1057].
c) O dever de proteger os inocentes
504 O direito ao uso da força com o objetivo de legítima defesa é associado ao dever de proteger e ajudar as vítimas inocentes que não podem defender-se das agressões. Nos conflitos da era moderna, freqüentemente no seio do próprio Estado, as disposições do direito internacional humanitário devem ser plenamente respeitados. Em muitas circunstâncias a população civil é atingida, por vezes também como objetivo bélico. Em alguns casos, é brutalmente massacrada ou desenraizada das próprias casas e das próprias terras com transferências forçadas, sob o pretexto de uma «purificação étnica»[1058] inaceitável. Em tais trágicas circunstâncias, é necessário que as ajudas humanitárias cheguem à população civil e que não sejam jamais utilizadas para condicionar os beneficiados: o bem da pessoa humana deve ter precedência sobre os interesses das partes em conflito.
505 O princípio de humanidade, inscrito na consciência de cada pessoa e povo, comporta a obrigação de manter as populações civis ao abrigo dos efeitos da guerra: «Aquele mínimo de proteção à dignidade de todo o ser humano, garantido pelo direito internacional humanitário, é com muita freqüência violado em nome de exigências militares ou políticas, que jamais deveriam prevalecer sobre o valor da pessoa humana. Sente-se hoje a necessidade de encontrar um novo consenso sobre os princípios humanitários e de consolidar os fundamentos, a fim de impedir o repetir-se de atrocidades e abusos»[1059].
Uma categoria particular de vítimas da guerra é a dos refugiados, constrangidos pelos combates a fugir dos lugares em que vivem habitualmente, até mesmo a encontrar abrigo em países diferentes daqueles em que nasceram. A Igreja está do lado deles, não só com a presença pastoral e com o socorro material, mas também com o empenho de defender a sua dignidade humana: «A solicitude pelos refugiados deve esforçar-se por reafirmar e sublinhar os direitos humanos, universalmente reconhecidos, e a pedir que para eles sejam efetivamente realizados»[1060].
506 As tentativas de eliminação de inteiros grupos nacionais, étnicos, religiosos ou lingüísticos são delitos contra Deus e contra a própria humanidade e os responsáveis de tais crimes devem ser chamados a responder diante da justiça[1061]. O século XX caracterizou-se tragicamente por vários genocídios: daquele dos armênios ao dos ucranianos, do dos cambojanos àqueles ocorridos na África e nos Bálcãs. Dentre eles se destaca o holocausto do povo hebraico, a Shoah: «os dias da Shoah assinalaram uma verdadeira noite na história, registrando crimes inauditos contra Deus e contra o homem»[1062].
A Comunidade Internacional no seu conjunto tem a obrigação moral de intervir em favor destes grupos, cuja própria sobrevivência é ameaçada ou daqueles que os direitos fundamentais são maciçamente violados. Os estados, enquanto parte de uma comunidade internacional, não podem ficar indiferentes: ao contrário, se todos os outros meios à disposição se revelarem ineficazes, é «legítimo e até forçoso empreender iniciativas concretas para desarmar o agressor»[1063].O princípio da soberania nacional não pode ser aduzido como motivo para impedir a intervenção em defesa das vítimas[1064].As medidas adotadas devem ser realizadas no pleno respeito do direito internacional e do princípio fundamental da igualdade entre os Estados.
A Comunidade internacional dotou-se também de uma Corte Penal Internacional para punir os responsáveis por atos particularmente graves: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão. O Magistério não deixou de encorajar repetidamente tal iniciativa[1065].
d) Medidas contra quem ameaça a paz
507 As sanções, nas formas previstas do ordenamento internacional contemporâneo, miram a corrigir o comportamento do governo de um País que viola as regras da convivência internacional pacífica e ordenada ou que põe em prática formas graves de opressão sobre a população. As finalidades das sanções devem ser precisadas de modo inequívoco e as medidas adotadas devem ser periodicamente verificadas pelos organismos competentes da Comunidade Internacional, para uma objetiva avaliação da sua eficácia e do seu real impacto sobre a população civil. O verdadeiro objetivo de tais medidas é abrir o caminho para as tratativas e o diálogo. As sanções não devem jamais constituir um instrumento de punição direta contra toda uma população: não é lícito que devido às sanções venham sofrer inteiras populações e especialmente os seus membros mais vulneráveis. As sanções econômicas, em particular, são um instrumento a ser utilizado com grande ponderação e a ser submetidos a rígidos critérios jurídicos e éticos[1066]. O embargo econômico deve ser limitado no tempo e não pode ser justificado quando os efeitos que produzem se revelam indiscriminados.
e) O desarmamento
508 A doutrina social propõe a meta de um «desarmamento geral, equilibrado e controlado»[1067]. O enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz. O princípio de suficiência, em virtude do qual um Estado pode possuir unicamente os meios necessários para a sua legítima defesa, deve ser aplicado seja pelos Estados que compram armas, seja por aqueles que as produzem e as fornecem[1068]. Todo e qualquer acúmulo excessivo de armas ou o seu comércio generalizado não podem ser justificados moralmente; tais fenômenos devem ser avaliados também à luz da normativa internacional em matéria de não-proliferação, produção, comércio e uso dos diferentes tipos de armamentos. As armas não devem jamais ser consideradas à guisa dos outros bens intercambiados em plano mundial ou nos mercados internos[1069].
O Magistério, ademais, expressou uma avaliação moral do fenômeno da dissuasão: «A acumulação de armas parece a muitos uma maneira paradoxal de dissuadir da guerra os eventuais adversários. Vêem nisso o mais eficaz dos meios suscetíveis de garantir a paz entre as nações. Este procedimento de dissuasão impõe severas reservas morais. A corrida aos armamentos não garante a paz. Longe de eliminar as causas da guerra, corre o risco de agravá-las»[1070]. As políticas de dissuasão nuclear, típicas do período da chamada Guerra Fria, devem ser substituídos por medidas concretas de desarmamento, baseadas no diálogo e na negociação multilateral.
509 As armas de destruição de massa – biológicas, químicas e nucleares – representam uma ameaça particularmente grave; aqueles que as possuem têm uma responsabilidade enorme diante de Deus e de toda a humanidade[1071].O princípio da não proliferação das armas nucleares juntamente com as medidas de desarmamento nuclear, assim como a proibição dos testes nucleares, são objetivos estritamente ligados entre si, que devem ser atingidos o mais rápido possível mediante controles eficazes no plano internacional[1072].A proibição de desenvolvimento, de aumento de produção, de acúmulo e de emprego das armas químicas e biológicas, assim como as decisões que impõem a sua destruição, completam o quadro normativo internacional para o abandono de tais armas nefastas[1073], cujo uso é explicitamente reprovado pelo Magistério: «Toda a ação bélica, que tende indistintamente para a destruição de cidades inteiras e de extensas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e contra o próprio homem, e como tal deve ser condenada firmemente e sem hesitação»[1074].
510 O desarmamento deve estender-se à interdição das armas que infligem efeitos traumáticos excessivos ou cujo efeito é indiscriminado, assim como as minas anti-homem, um tipo de pequenos dispositivos, desumanamente insidiosos, pois que continuam a provocar vítimas mesmo muito tempo depois do fim das hostilidades: os Estados que as produzem, as comercializam ou as usam ainda são responsáveis por retardar gravemente a definitiva interdição de tais instrumentos mortíferos[1075]. A comunidade internacional deve continuar a empenhar-se na atividade de desativação das minas, promovendo uma cooperação eficaz, inclusive a formação técnica, com os países que não dispõem de meios próprios adequados para efetuar a urgentíssima depuração de seus territórios e que não são capazes fornecer uma assistência adequada às vítimas das minas.
511 Medidas apropriadas são necessárias para o controle da produção, da venda, da importação e da exportação de armas leves e individuais, que facilitam muitas manifestações de violência. A venda e o tráfico de tais armas constituem uma séria ameaça para a paz: estas são as armas mais utilizadas nos conflitos internacionais e a sua disponibilidade faz aumentar o risco de novos conflitos e a intensidade daqueles em curso. A postura dos Estados que aplicam severos controles sobre a transferência internacional de armamentos pesados, mas não prevêem nunca, ou tão-somente em raras ocasiões, restrições sobre o comércio das armas leves e individuais, é uma contradição inaceitável. É indispensável e urgente que os governos adotem regras adequadas para controlar a produção, o acúmulo, a venda e o tráfico de tais armas[1076],de modo a fazer frente à crescente difusão, em larga parte entre grupos de combatentes que não pertencem às forças militares de um Estado.
512 A utilização de crianças e adolescentes como soldados em conflitos armados ― não obstante o fato de que a sua jovem idade não deva permitir o se recrutamento ― deve ser denunciada. Eles são coagidas com a força a participar dos conflitos, ou ainda o fazem por iniciativa própria sem ser plenamente cônscios das conseqüências. São crianças privadas não apenas da instrução que deveriam receber e de uma infância normal, mas também adestradas a matar: tudo isto constitui um crime intolerável. O seu emprego nas forças combatentes de qualquer tipo deve ser impedido; contemporaneamente, é preciso fornecer toda a ajuda possível para a cura, a educação e a reabilitação daqueles que foram envolvidos nos combates.[1077]
f) A condenação ao terrorismo
513 O terrorismo é uma das formas mais brutais de violência que atualmente atribula a Comunidade Internacional: semeia ódio, morte, desejo de vingança e de represália[1078]. De estratégia subversiva típica somente de algumas organizações extremistas, ordenada à destruição das coisas e à morte de pessoas, o terrorismo se transformou em uma rede obscura de cumplicidades políticas, utiliza também meios técnicos sofisticados, vale-se freqüentemente de enormes recursos financeiros e elabora estratégias de vasta escala, atingindo pessoas totalmente inocentes, vítimas casuais das ações terroristas[1079]. Alvos dos ataques terroristas são, em geral, os lugares da vida cotidiana e não objetivos militares no contexto de uma guerra declarada. O terrorismo atua e ataca no escuro, fora das regras com que os homens procuraram disciplinar, por exemplo, mediante o direito internacional humanitário, os seus conflitos: «Em muitos casos, o uso dos métodos do terrorismo tem-se como novo sistema de guerra»[1080]. Não se devem descurar as causas que podem motivar tal inaceitável forma de reivindicação. A luta contra o terrorismo pressupõe o dever moral de contribuir para criar as condições a fim de que esse não nasça ou se desenvolva.
514 O terrorismo deve ser condenado do modo mais absoluto. Este manifesta o desprezo total da vida humana e nenhuma motivação pode justificá-lo, pois que o homem é sempre fim e nunca meio. Os atos de terrorismo atentam contra a dignidade do homem e constituem uma ofensa para a humanidade inteira: «Existe por isso um direito a defender-se do terrorismo»[1081]. Tal direito não pode, todavia ser exercido no vácuo de regras morais e jurídicas, pois que a luta contra o terrorismo deve ser conduzida no respeito dos direitos do homem e dos princípios de um Estado de direito[1082]. A identificação dos culpados deve ser devidamente provada, pois a responsabilidade penal é sempre pessoal e, portanto, não pode ser estendida às religiões, às nações, às etnias, às quais os terroristas pertencem. A colaboração internacional contra a atividade terrorista «não pode exaurir-se meramente em operações repressivas e punitivas. É essencial que o recurso necessário à força seja acompanhado por uma análise corajosa e lúcida das motivações subjacentes aos ataques terroristas»[1083]. É necessário também um particular empenho no plano «político e pedagógico»[1084] para revolver, com coragem e determinação, os problemas que, em algumas dramáticas situações, possam alimentar o terrorismo: «O recrutamento dos terroristas, de fato, é mais fácil em contextos sociais onde os direitos são espezinhados e as injustiças longamente toleradas»[1085].
515 É profanação e blasfêmia proclamar-se terrorista em nome de Deus[1086].Neste caso se instrumentaliza também a Deus e não apenas o homem, enquanto se presume possuir totalmente a Sua verdade ao invés de procurar ser possuído por ela. Definir «mártires» aqueles que morrem executando atos terroristas é distorcer o conceito de martírio, que é testemunho de quem se deixa matar por não renunciar a Deus e não de quem mata em nome de Deus.
Nenhuma religião pode tolerar o terrorismo e, menos ainda, pregá-lo[1087]. As religiões estão antes empenhadas em colaborar para remover as causas do terrorismo e para promover a amizade entre os povos[1088].
IV. O CONTRIBUTO DA IGREJA PARA A PAZ
516 A promoção da paz no mundo é parte integrante da missão com que a Igreja continua a obra redentora de Cristo sobre a terra. A Igreja, de fato, é, «em Cristo, “sacramento”, ou seja, sinal e instrumento de paz no mundo e para o mundo»[1089]. A promoção da verdadeira paz é uma expressão da fé cristã no amor que Deus nutre por cada ser humano. Da fé libertadora no amor de Deus derivam uma nova visão do mundo e um novo modo de aproximar-se do outro, seja esse outro um indivíduo ou um povo inteiro: é uma fé que muda e renova a vida, inspirada pela paz que Cristo deixou aos Seus discípulos (cf. Jo 14,27).Movida unicamente por tal fé, a Igreja entende promover a unidade dos cristãos e uma fecunda colaboração com os crentes de outras religiões. As diferenças religiosas não podem e não devem constituir uma causa de conflito: a busca comum da paz por parte de todos os crentes é antes um forte fator de unidade entre os povos[1090]. A Igreja exorta pessoas, povos, Estados e nações a se tornarem participantes da sua preocupação com o restabelecimento e a consolidação da paz, ressaltando em particular a importante função do direito internacional[1091].
517 A Igreja ensina que uma verdadeira paz só é possível através do perdão e da reconciliação[1092]. Não é fácil perdoar diante das conseqüências da guerra e dos conflitos, porque a violência, especialmente quando conduz «até aos abismos da desumanidade e da desolação»[1093], deixa sempre como herança um pesado fardo de dor, que pode ser aliviado somente por uma reflexão profunda, leal e corajosa, comum aos contendores, capaz de enfrentar as dificuldades do presente com uma atitude purificada pelo arrependimento. O peso do passado, que não pode ser esquecido, pode ser aceito somente na presença de um perdão reciprocamente oferecido e recebido: trata-se de um percurso longo e difícil, mas não impossível[1094].
518 O perdão recíproco não deve anular as exigências da justiça e nem, tão pouco, bloquear o caminho que leva à verdade: justiça e verdade representam, pelo contrário, os requisitos concretos da reconciliação. São oportunas as iniciativas que tendem a instituir Organismos judiciários internacionais. Semelhantes Organismos, valendo-se do princípio da jurisdição universal e apoiados em procedimentos adequados, respeitosos dos direitos dos imputados e das vítimas, podem acertar a verdade sobre crimes perpetrados durante os conflitos armados[1095]. É necessário, todavia, ir além das determinações dos comportamentos delituosos, tanto ativos como omissivos, e além das decisões referentes aos procedimentos de reparação, para chegar ao restabelecimento de relações de recíproco acolhimento entre os povos divididos, sob o signo da reconciliação[1096]. Ademais, é necessário promover o respeito do direito à paz: tal direito «favorece a construção duma sociedade no interior da qual as relações de força são substituídas por relações de colaboração em ordem ao bem comum»[1097].
519 A Igreja luta pela paz com a oração. A oração abre o coração não só a uma profunda relação com Deus, como também ao encontro com o próximo sob o signo do respeito, da confiança, da compreensão, da estima e do amor[1098]. A oração infunde coragem e dá apoio a todos «os verdadeiros amigos da paz»[1099], os quais procuram promovê-la nas várias circunstâncias em que se encontram a viver. A oração litúrgica é «simultaneamente cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e a fonte da qual promana toda a sua força»[1100]; em particular a celebração eucarística, «fonte e convergência de toda a vida cristã»[1101],é nascente inesgotável de todo autêntico compromisso cristão pela paz[1102].
520 Os Dias Mundiais da Paz são celebrações de particular intensidade para a oração de invocação da paz e para o compromisso de construir um mundo de paz. O Papa Paulo VI as instituiu com o objetivo de «que se dedique aos pensamentos e aos propósitos da Paz uma celebração especial, no primeiro dia do ano civil»[1103]. As Mensagens pontifícias por ocasião de celebração anual constituem uma rica fonte de atualização e de desenvolvimento da doutrina social e mostram o constante esforço da ação pastoral da Igreja em favor da paz: «A Paz impõe-se somente com a paz, com aquela paz nunca disjunta dos deveres da justiça, mas alimentada pelo sacrifico de si próprio, pela clemência, pela misericórdia e pela caridade»[1104].
SALVAGUARDAR O AMBIENTE I. ASPECTOS BÍBLICOS
SALVAGUARDAR O AMBIENTE
I. ASPECTOS BÍBLICOS
PONTIFÍCIO CONSELHO « JUSTIÇA E PAZ »
COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
A JOÃO PAULO II
MESTRE DE DOUTRINA SOCIAL TESTEMUNHA EVANGÉLICA DE JUSTIÇA E DE PAZ
ÍNDICE GERAL
Carta do Cardeal Angelo Sodano Apresentação
UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO
a) No alvorecer do terceiro milêniob) O significado do documentoc) Ao serviço da plena verdade sobre o homemd) Sob o signo da solidariedade, do respeito e do amor
I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL
II. JESUS CRISTO CUMPRIMENTO DO DESÍGNIO DE AMOR DO PAI
III. A PESSOA HUMANA NO DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
IV. DESÍGNIO DE DEUS E MISSÃO DA IGREJA
CAPÍTULO II
MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL
I. EVANGELIZAÇÃO E DOUTRINA SOCIAL
II. A NATUREZA DA DOUTRINA SOCIAL
III. A DOUTRINA SOCIAL DO NOSSO TEMPO: ACENOS HISTÓRICOS
CAPÍTULO III
A PESSOA E OS SEUS DIREITOS
II. A PESSOA HUMANA «IMAGO DEI»
III. A PESSOA HUMANA E OS SEUS VÁRIOS PERFIS
III. OS DIREITOS HUMANOS
CAPÍTULO IV
OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
II. O PRINCÍPIO DO BEM COMUM
III. A DESTINAÇÃO UNIVERSAL DOS BENS
IV. O PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE a) Origem e significadob) Indicações concretas
V. A PARTICIPAÇÃO
VI. O PRINCÍPIO DE SOLIDARIEDADE
VII. OS VALORES FUNDAMENTAIS DA VIDA SOCIAL
VIII. A VIA DA CARIDADE
CAPÍTULO V
A FAMÍLIA
I. A FAMÍLIA PRIMEIRA SOCIEDADE NATURAL
II. O MATRIMÔNIO FUNDAMENTO DA FAMÍLIA
III. A SUBJETIVIDADE SOCIAL DA FAMÍLIA
IV. A FAMÍLIA PROTAGONISTA DA VIDA SOCIAL
CAPÍTULO VI
O TRABALHO HUMANO
I. ASPECTOS BÍBLICOS
III. A DIGNIDADE DO TRABALHO
IV. O DIREITO AO TRABALHO
V. DIREITOS DOS TRABALHADORES
VI. SOLIDARIEDADE ENTRE OS TRABALHADORES
VII. AS «RES NOVAE» DO NOVO MUNDO DO TRABALHO
CAPÍTULO VII
A VIDA ECONÔMICA
I. ASPECTOS BÍBLICOS
II. MORAL E ECONOMIA
III. INICIATIVA PRIVADA E EMPRESA
IV. INSTITUIÇÕES ECONÔMICAS AO SERVIÇO DO HOMEM
V. AS «RES NOVAE» EM ECONOMIA
CAPÍTULO VIII
A COMUNIDADE POLÍTICA
I. ASPECTOS BÍBLICOS
II. O FUNDAMENTO E O FIM DA COMUNIDADE POLÍTICA
III. A AUTORIDADE POLÍTICA
IV. O SISTEMA DA BUROCRACIA
V. A COMUNIDADE POLÍTICA A SERVIÇO DA COMUNIDADE CIVIL
VI. O ESTADO E AS COMUNIDADES RELIGIOSAS
CAPÍTULO IX
A COMUNIDADE INTERNACIONAL
I. ASPECTOS BÍBLICOS
II. AS REGRAS FUNDAMENTAIS DA COMUNIDADE INTERNACIONAL
III. A ORGANIZAÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL
IV. A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO
CAPÍTULO X
SALVAGUARDAR O AMBIENTE
IV. UMA RESPONSABILIDADE COMUM
CAPÍTULO XI
A PROMOÇÃO DA PAZ
III. O FALIMENTO DA PAZ: GUERRA
CAPÍTULO XII
DOUTRINA SOCIAL E AÇÃO ECLESIAL
I. A AÇÃO PASTORAL NO ÂMBITO SOCIAL
II. DOUTRINA SOCIAL E COMPROMISSO DOS CRISTÃOS LEIGOS
POR UMA CIVILIZAÇÃO DO AMOR
a) A ajuda da Igreja ao homem contemporâneob) Tornar a partir da fé em Cristoc) Uma firme esperançad) Construir a «civilização do amor»
SECRETARIA DE ESTADO
CARTA DO CARDEAL ANGELO SODANO
AO CARDEAL RENATO RAFFAELE MARTINO PRESIDENTE DO PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ»
Do Vaticano, 29 de Junho de 2004.
N. 559.332 Senhor Cardeal, No decorrer da sua história, e em particular nos últimos cem anos, a Igreja jamais renunciou — de acordo com as palavras do Papa Leão XIII — a dizer a «palavra que lhe compete» sobre as questões da vida social. Continuando a elaborar e a atualizar o rico patrimônio da Doutrina Social Católica, o Papa João Paulo II publicou, por sua parte, três grandes Encíclicas — Laborem exercens, Sollicitudo rei socialis e Centesimus annus —, que constituem etapas fundamentais do pensamento católico sobre o assunto. Por sua parte, inúmeros Bispos, em toda parte do mundo, contribuíram nestes últimos anos para aprofundar a doutrina social da Igreja. Assim também inúmeros estudiosos católicos o fizeram, em todos os Continentes. 1. Era, portanto, de desejar que se redigisse um compêndio de toda a matéria, apresentando de modo sistemático as pilastras da doutrina social católica. Disto se encarregou de modo louvável o Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, dedicando à iniciativa um intenso trabalho ao longo dos últimos anos. Regozijo-me pela publicação do volume Compêndio da Doutrina Social da Igreja, compartilhando com Vossa Eminência a alegria de oferecê-lo aos fiéis e a todos os homens de boa vontade, como nutrição de crescimento humano e espiritual, pessoal e comunitário. 2. A obra mostra como a doutrina social católica tem também valor de instrumento de evangelização (cf. Centesimus annus, 54), porque põe em relação à pessoa humana e a sociedade com a luz do Evangelho. Os princípios da doutrina social da Igreja, que se apóiam sobre a lei natural, se vêem confirmados e valorizados, na fé da Igreja, pelo Evangelho de Cristo. Nesta luz, o homem é convidado antes de tudo a descobrir-se como ser transcendente, em qualquer dimensão da vida, inclusive a que se liga aos contextos sociais, econômicos e políticos. A fé leva à plenitude o significado da família que, fundada no matrimônio entre um homem e uma mulher, constitui a primeira e vital célula da sociedade; ela, ademais, ilumina a dignidade do trabalho que, enquanto atividade do homem destinada à sua realização, tem a prioridade sobre o capital e constitui título de participação aos frutos que dele derivam. 3. No presente texto emerge ademais a importância dos valores morais, fundamentados na lei natural inscrita na consciência de todo ser humano, que por isso está obrigado a reconhecê-la e a respeitá-la. A humanidade pede hoje mais justiça ao afrontar o vasto fenômeno da globalização; sente viva a preocupação pela ecologia e por uma correta gestão dos negócios públicos; adverte a necessidade de salvaguardar a consciência nacional, sem contudo perder de vista a via do direito e a consciência da unidade da família humana. O mundo do trabalho, profundamente modificado pelas modernas conquistas tecnológicas, conhece níveis de qualidade extraordinários, mas deve lamentavelmente registrar também formas inéditas de precariedade, de exploração e até de escravidão, no seio das mesmas sociedades assim ditas opulentas. Em diversas áreas do planeta o nível do bem-estar continua a crescer, mas aumenta ameaçadoramente o número dos novos pobres e se alarga, por várias regiões, o hiato entre países menos desenvolvidos e países ricos. O mercado livre, processo econômico com lados positivos, manifesta todavia os seus limites. Por outro lado, o amor preferencial pelos pobres representa uma opção fundamental da Igreja, e ela o propõe a todos os homens de boa vontade. Põe-se assim de manifesto como a Igreja não possa cessar de fazer ouvir a sua voz sobre as res novae, típicas da época moderna, porque a ela compete convidar todos a prodigar-se a fim de que se afirme cada vez mais uma civilização autêntica voltada para a busca de um desenvolvimento humano integral e solidário. 4. As atuais questões culturais e sociais envolvem sobretudo os fiéis leigos, chamados, como no-lo recorda o Concílio Ecumênico Vaticano II, a tratar as coisas temporais ordenando-as segundo Deus (cf. Lumen gentium, 31). Bem se compreende, portanto, a importância fundamental da formação dos leigos, para que com a santidade de sua vida e a força do seu testemunho, contribuam para o progresso da humanidade. Este documento entende ajudá-los em sua missão quotidiana. É igualmente interessante notar como numerosos elementos aqui recolhidos sejam compartilhados pelas outras Igrejas e Comunidades eclesiais, bem como por outras Religiões. O texto foi elaborado de modo que se possa fruir não somente ad intra, ou seja, entre os católicos, mas também ad extra. Com efeito, os irmãos que têm em comum conosco o mesmo Batismo, os adeptos de outras Religiões e todos os homens de boa vontade podem nele encontrar elementos fecundos de reflexão e impulso comum para o desenvolvimento integral de todo homem e do homem todo. 5. O Santo Padre faz votos de que o presente documento ajude a humanidade na busca operosa do bem comum e invoca as bênçãos de Deus sobre todos aqueles que se detiverem a refletir sobre os ensinamentos desta publicação. Ao formular também os meus votos pessoais de sucesso para esta obra, congratulo-me com Vossa Eminência e com os Colaboradores do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz pelo importante trabalho realizado e, com sentimentos de bem distinto obséquio, de bom grado me subscrevo
com devotamento no Senhor
Angelo Card. Sodano Secretário de Estado
***
APRESENTAÇÃO
É para mim motivo de viva satisfação apresentar o documento Compêndio da Doutrina Social da Igreja, elaborado, por encargo recebido do Santo Padre João Paulo II, para expor de modo sintético, mas completo, o ensinamento social da Igreja.Transformar a realidade social com a força do Evangelho, testemunhada por mulheres e homens fiéis a Jesus Cristo, sempre foi um desafio e, no início do terceiro milênio da era cristã, ainda o é. O anúncio de Jesus Cristo «boa nova» de salvação, de amor, de justiça e de paz, não é facilmente acolhido no mundo de hoje, ainda devastado por guerras, miséria e injustiças; justamente por isso o homem do nosso tempo mais do que nunca necessita do Evangelho: da fé que salva, da esperança que ilumina, da caridade que ama. A Igreja, perita em humanidade, em uma espera confiante e ao mesmo tempo operosa, continua a olhar para os «novos céus» e para a «terra nova» (2Pd 3, 13), e a indicá-los a cada homem, para ajuda-lo a viver a sua vida na dimensão do sentido autêntico. «Gloria Dei vivens homo»: o homem que vive em plenitude a sua dignidade dá glória a Deus, que lha conferiu. A leitura destas páginas é proposta antes de tudo para suster e animar a ação dos cristãos em campo social, especialmente dos fiéis leigos, dos quais este âmbito é próprio; toda a sua vida deve qualificar-se como uma fecunda obra evangelizadora. Cada fiel deve aprender antes de tudo a obedecer ao Senhor com a fortaleza da fé, a exemplo de São Pedro: «Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada apanhamos; mas por causa da tua palavra, lançarei as redes» (Lc 5, 5). Cada leitor de «boa vontade» poderá conhecer os motivos que levam a Igreja a intervir com uma doutrina em campo social, à primeira vista não de sua competência, e as razões para um encontro, um diálogo, uma colaboração para servir o bem comum. O meu predecessor, o saudoso e venerado cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuan, guiou com sabedoria, constância e largueza de visão, a complexa fase preparatória deste documento; a enfermidade impediu-o de conclui-la com a publicação. Esta obra a mim confiada, e ora entregue aos leitores, leva portanto o sigilo de uma grande testemunha da Cruz, forte na fé nos anos escuros e terríveis do Vietnam. Ele saberá acolher a nossa gratidão por todo o seu precioso trabalho, realizado com amor e dedicação, e bendizer a todos os que se detiverem a refletir sobre estas páginas. Invoco a intercessão de São José, Guardião do Redentor e Esposo da Bem-Aventurada Virgem Maria, Patrono da Igreja Universal e do trabalho, para que este texto possa dar copiosos frutos na vida social como instrumento de anúncio evangélico, de justiça e de paz. Cidade do Vaticano, 2 de Abril de 2004, Memória de São Francisco de Paula.
Renato Raffaele Card. Martino
Presidente
+ Giampaolo Crepaldi
Secretário
COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
INTRODUÇÃO
UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO
a) No alvorecer do terceiro milênio1 A Igreja, povo peregrino, entra no terceiro milênio da era cristã conduzida por Cristo, o «Grande Pastor»(Hb 13, 20): Ele é a «Porta Santa» (cf. Jo 10, 9) que transpusemos durante o Grande Jubileu do ano 2000[1]. Jesus Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo 14, 6): contemplando o Rosto do Senhor, confirmamos a nossa fé e a nossa esperança n’Ele, único Salvador e fim da história. A Igreja continua a interpelar todos os povos e todas as nações, porque somente no nome de Cristo a salvação é dada ao homem. A salvação, que o Senhor Jesus nos conquistou por um “alto preço” (cf. 1Cor 6, 20; 1Pd 1, 18-19), se realiza na vida nova que espera os justos após a morte, mas abrange também este mundo (cf. 1Cor 7, 31) nas realidades da economia e do trabalho, da sociedade e da política, da técnica e da comunicação, da comunidade internacional e das relações entre as culturas e os povos. «Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina»[2]. 2 Neste alvorecer do Terceiro Milênio, a Igreja não se cansa de anunciar o Evangelho que propicia salvação e autêntica liberdade, mesmo nas coisas temporais, recordando a solene recomendação dirigida por São Paulo ao discípulo Timóteo: «Prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, ameaça, exorta com toda paciência e empenho de instruir. Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, paciente nos sofrimentos, cumpre a missão de pregador do Evangelho, consagra-te ao teu ministério» (2 Tm 4, 2-5). 3 Aos homens e às mulheres do nosso tempo, seus companheiros de viagem, a Igreja oferece também a sua doutrina social. De fato, quando a Igreja «cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho, testemunha ao homem, em nome de Cristo, sua dignidade própria e sua vocação à comunhão de pessoas, ensina-lhes as exigências da justiça e da paz, de acordo com a sabedoria divina»[3]. Tal doutrina possui uma profunda unidade, que provém da Fé em uma salvação integral, da Esperança em uma justiça plena, da Caridade que torna todos os homens verdadeiramente irmãos em Cristo. Ela é expressão do amor de Deus pelo mundo, que Ele amou até dar «o seu Filho único» (Jo 3, 16). A lei nova do amor abrange a humanidade toda e não conhece confins, pois o anúncio da salvação de Cristo se estende «até aos confins do mundo » (At 1, 8). 4 Ao descobrir-se amado por Deus, o homem compreende a própria dignidade transcendente, aprende a não se contentar de si e a encontrar o outro, em uma rede de relações cada vez mais autenticamente humanas. Feitos novos pelo amor de Deus, os homens são capacitados a transformar as regras e a qualidade das relações, inclusive as estruturas sociais: são pessoas capazes de levar a paz onde há conflitos, de construir e cultivar relações fraternas onde há ódio, de buscar a justiça onde prevalece a exploração do homem pelo homem. Somente o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que os seres humanos têm entre si. Inserido nesta perspectiva, todo o homem de boa vontade pode entrever os vastos horizontes da justiça e do progresso humano na verdade e no bem. 5 O amor tem diante de si um vasto campo de trabalho e a Igreja, nesse campo, quer estar presente também com a sua doutrina social, que diz respeito ao homem todo e se volve a todos os homens. Tantos irmãos necessitados estão à espera de ajuda, tantos oprimidos esperam por justiça, tantos desempregados à espera de trabalho, tantos povos esperam por respeito: «Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se? E o cenário da pobreza poderá ampliar-se indefinidamente, se às antigas pobrezas acrescentarmos as novas que freqüentemente atingem mesmo os ambientes e categorias dotadas de recursos econômicos, mas sujeitos ao desespero da falta de sentido, à tentação da droga, à solidão na velhice ou na doença, à marginalização ou à discriminação social. [...] E como ficar indiferentes diante das perspectivas dum desequilíbrio ecológico, que torna inabitáveis e hostis ao homem vastas áreas do planeta? Ou em face dos problemas da paz, freqüentemente ameaçada com o íncubo de guerras catastróficas? Ou frente ao vilipêndio dos direitos humanos fundamentais de tantas pessoas, especialmente das crianças? »[4]. 6 O amor cristão move à denúncia, à proposta e ao compromisso de elaboração de projetos em campo cultural e social, a uma operosidade concreta e ativa, que impulsione a todos os que tomam sinceramente a peito a sorte do homem a oferecer o próprio contributo. A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupecfatos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã. b) O significado do documento 7 O cristão sabe poder encontrar na doutrina social da Igreja os princípios de reflexão, os critérios de julgamento e as diretrizes de ação donde partir para promover esse humanismo integral e solidário. Difundir tal doutrina constitui, portanto, uma autêntica prioridade pastoral, de modo que as pessoas, por ela iluminadas, se tornem capazes de interpretar a realidade de hoje e de procurar caminhos apropriados para a ação: « O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja »[5]. Nesta perspectiva, pareceu muito útil a publicação de um documento que ilustrasse as linhas fundamentais da doutrina social da Igreja e a relação que há entre esta doutrina e a nova evangelização[6]. O Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, que o elaborou e assume plena responsabilidade por ele, se valeu para tal fim de uma ampla consulta, envolvendo os seus Membros e Consultores, alguns Dicastérios da Cúria Romana, Conferências Episcopais de vários países, Bispos e peritos nas questões tratadas. 8 Este Documento entende apresentar de maneira abrangente e orgânica, se bem que sinteticamente, o ensinamento social da Igreja, fruto da sapiente reflexão magisterial e expressão do constante empenho da Igreja na fidelidade à Graça da salvação de Cristo e na amorosa solicitude pela sorte da humanidade. Os aspectos teológicos, filosóficos, morais, culturais e pastorais mais relevantes deste ensinamento são aqui organicamente evocados em relação às questões sociais. Destarte é testemunhada a fecundidade do encontro entre o Evangelho e os problemas com que se depara o homem no seu caminho histórico. No estudo do Compêndio será importante levar em conta que as citações dos textos do Magistério são extraídas de documentos de vário grau de autoridade. Ao lado dos documentos conciliares e das encíclicas, figuram também discursos Pontifícios ou documentos elaborados pelos Dicastérios da Santa Sé. Como se sabe, mas é oportuno realçá-lo, o leitor deve estar consciente de que se trata de níveis distintos de ensinamento. O documento, que se limita a oferecer uma exposição das linhas fundamentais da doutrina social, deixa às Conferências Episcopais a responsabilidade de fazer as oportunas aplicações requeridas pelas diversas situações locais[7]. 9 O documento oferece um quadro abrangente das linhas fundamentais do «corpus» doutrinal do ensinamento social católico. Tal quadro consente afrontar adequadamente as questões sociais do nosso tempo, que é mister enfrentar com uma adequada visão de conjunto, porque se caracterizam como questões cada vez mais interconexas, que se condicionam reciprocamente e que sempre mais dizem respeito a toda a família humana. A exposição dos princípios da doutrina social da Igreja entende sugerir um método orgânico na busca de soluções aos problemas, de sorte que o discernimento, o juízo e as opções sejam mais consentâneas com a realidade e a solidariedade e a esperança possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas. Os princípios, efetivamente, se evocam e iluminam uns aos outros, na medida em que exprimem a antropologia cristã[8], fruto da Revelação do amor que Deus tem para com a pessoa humana. Tenha-se, entretanto, na devida consideração que o transcurso do tempo e a mudança dos contextos sociais requererão constantes e atualizadas reflexões sobre os vários argumentos aqui expostos, para interpretar os novos sinais dos tempos. 10 O documento apresenta-se como um instrumento para o discernimento moral e pastoral dos complexos eventos que caracterizam o nosso tempo; como um guia para inspirar, assim no plano individual como no coletivo, comportamentos e opções que permitam a todos os homens olhar para o futuro com confiança e esperança; como um subsídio para os fiéis sobre o ensinamento da moral social. Dele pode derivar um novo compromisso capaz de responder às exigências do nosso tempo e proporcionado às necessidades e aos recursos do homem, mas sobretudo o anelo de valorizar mediante novas formas a vocação própria dos vários carismas eclesiais com vista à evangelização do social, porque « todos os membros da Igreja participam na sua dimensão secular»[9]. O texto é proposto, enfim, como motivo de diálogo com todos aqueles que desejam sinceramente o bem do homem. 11 Os primeiros destinatários deste Documento são os Bispos, que encontrarão as formas mais adequadas para a sua difusão e correta interpretação. Pertence, com efeito, ao seu « munus docendi » ensinar que «as próprias coisas terrenas e as humanas instituições se destinam também, segundo os planos de Deus Criador, à salvação dos homens, e podem por isso contribuir imenso para a edificação do Corpo de Cristo »[10]. Os sacerdotes, os religiosos e as religiosas e, em geral, os formadores nele encontrarão um guia seguro para o ensinamento e um instrumento de serviço pastoral. Os fiéis leigos, que buscam o Reino de Deus «ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus »[11], nele encontrarão luzes para o seu específico compromisso. As comunidades cristãs poderão utilizar este documento para analisar objetivamente as situações, esclarecê-las à luz das palavras imutáveis do Evangelho, haurir princípios de reflexão, critérios de julgamento e orientações para a ação[12]. 12 Este documento é proposto também aos irmãos de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais, aos sequazes de outras religiões, bem como a quantos, homens e mulheres de boa vontade, se empenham em servir o bem comum: queiram-no acolher como o fruto de uma experiência humana universal, constelada de inumeráveis sinais da presença do Espírito de Deus. É um tesouro de coisas novas e antigas (cf. Mt 13, 52), que a Igreja quer compartilhar, para agradecer a Deus, de quem provêm « toda dádiva boa e todo o dom perfeito » (Tg 1, 17). È um sinal de esperança o fato de que hoje as religiões e as culturas manifestem disponibilidade ao diálogo e advirtam a urgência de unir os próprios esforços para favorecer a justiça, a fraternidade, a paz e o crescimento da pessoa humana. A Igreja Católica une em particular o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades Eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como em campo prático. Juntamente com elas, a Igreja Católica está convencida de que do patrimônio comum dos ensinamentos sociais guardados pela tradição viva do povo de Deus derivem estímulos e orientações para uma colaboração cada vez mais estreita na promoção da justiça e da paz[13]. c) Ao serviço da plena verdade sobre o homem 13 Este Documento é um ato de serviço da Igreja às mulheres e aos homens do nosso tempo, aos quais oferece o patrimônio de sua doutrina social, segundo aquele estilo de diálogo com o qual o próprio Deus, no Seu Filho Unigênito feito homem, «fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e conversa com eles (cf. Bar 3, 38)»[14]. Inspirado na Constituição pastoral Gaudium et spes, também este documento põe como linha mestra de toda a exposição o homem, aquele « homem considerado na sua unidade e na sua totalidade, o homem, corpo e alma, coração e consciência, pensamento e vontade»[15]. Na perspectiva delineada, «nenhuma ambição terrena move a Igreja; ela tem em vista um só fim: continuar, sob o impulso do Espírito Santo, a obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido»[16]. 14 Com o presente documento a Igreja entende oferecer um contributo de verdade à questão do lugar do homem na natureza e na sociedade, afrontada pelas civilizações e culturas em que se manifesta a sabedoria da humanidade. Mergulhando as raízes num passado não raro milenar, estas se manifestam nas formas da religião, da filosofia e do gênio poético de todo o tempo e de cada povo, oferecendo interpretações do universo e da convivência humana e procurando dar um sentido à existência e ao mistério que a envolve. Quem sou eu? Por que a presença da dor, do mal, da morte, malgrado todo o progresso? A que aproveitam tantas conquistas alcançadas se o seu preço não raro é insuportável? O que haverá após esta vida? Estas perguntas fundamentais caracterizam o percurso do viver humano[17]. Pode-se, a propósito, recordar a admonição «Conhece-te a ti mesmo», esculpida na arquitrave do templo de Delfos, que está a testemunhar a verdade basilar segundo a qual o homem, chamado a distinguir-se entre todas as criaturas, se qualifica como homem justo enquanto constitutivamente orientado a conhecer-se a si mesmo. 15 A orientação que se dá à existência, à convivência social e à história dependem, em grande parte, das respostas dadas a estas questões sobre o lugar do homem na natureza e na sociedade, às quais o presente documento entende dar o seu contributo. O significado profundo do existir humano, com efeito, se revela na livre busca da verdade, capaz de oferecer direção e plenitude à vida, busca à qual tais questões solicitam incessantemente a inteligência e a vontade do homem. Elas exprimem a natureza humana no seu nível mais alto, porque empenham a pessoa em uma resposta que mede a profundidade do seu compromisso com a própria existência. Trata-se, ademais, de interrogações essencialmente religiosas: «quando o porquê das coisas é indagado a fundo em busca da resposta última e mais exaustiva, então a razão humana atinge o seu ápice e se abre à religiosidade. Com efeito, a religiosidade representa a expressão mais elevada da pessoa humana, porque é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda aspiração do homem à verdade, e está na base da busca livre e pessoal que ele faz do divino»[18]. 16 As interrogações radicais, que acompanham desde os inícios o caminho dos homens, adquirem, no nosso tempo, ainda maior significância, pela vastidão dos desafios, pela novidade dos cenários, pelas opções decisivas que as atuais gerações são chamadas a efetuar. O primeiro dentre os maiores desafios, frente aos quais a humanidade se encontra, é o da verdade mesma do ser-homem. O confim e a relação entre natureza, técnica e moral são questões que interpelam decisivamente a responsabilidade pessoal e coletiva em vista dos comportamentos que se devem ter, em face daquilo que o homem é, do que pode fazer e do que deve ser. Um segundo desafio é posto pela compreensão e pela gestão do pluralismo e das diferenças em todos os níveis: de pensamento, de opção moral, de cultura, de adesão religiosa, de filosofia do progresso humano e social. O terceiro desafio é a globalização, que tem um significado mais amplo e profundo do que o simplesmente econômico, pois que se abriu na história uma nova época, que concerne ao destino da humanidade. 17 Os discípulos de Jesus sentem-se envolvidos por estas interrogações, levam-nas eles mesmos no coração e querem empenhar-se, juntamente com todos os homens, na busca da verdade e do sentido da existência pessoal e social. Para tal busca contribuem com o seu generoso testemunho do dom que a humanidade recebeu: Deus dirigiu-lhe Sua Palavra no curso da história, antes, Ele mesmo entrou na história para dialogar com a humanidade e revelar-lhe o Seu desígnio de salvação, de justiça e de fraternidade. Em Seu Filho, Jesus Cristo, feito homem, Deus nos libertou do pecado e nos indicou o Caminho a percorrer e a meta à qual tender. d) Sob o signo da solidariedade, do respeito e do amor 18 A Igreja caminha com toda a humanidade ao longo das estradas da história. Ela vive no mundo e, mesmo sem ser do mundo (cf. Jo 17, 14-16), é chamada a servi-lo seguindo a própria íntima vocação. Uma tal atitude — que se pode entrever também no presente documento — apóia-se na profunda convicção de que é importante para o mundo reconhecer a Igreja como realidade e fermento da história, assim como para a Igreja não ignorar quanto tem recebido da história e do progresso do gênero humano[19]. O Concílio Vaticano II quis dar uma demonstração eloqüente da solidariedade, do respeito e do amor para com toda a família humana, instaurando com ela um diálogo sobre tantos problemas, «esclarecendo-os à luz do Evangelho e pondo à disposição do gênero humano o poder salvífico que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Com efeito, é a pessoa humana que se trata de salvar, é a sociedade humana que importa renovar»[20]. 19 A Igreja, sinal na história do amor de Deus para com os homens e da vocação de todo o gênero humano à unidade na filiação do único Pai[21], também com este documento sobre a sua doutrina social entende propor a todos os homens um humanismo à altura do desígnio de amor de Deus sobre a história, um humanismo integral e solidário, capaz de animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a se realizar na paz, na justiça e na solidariedade. Um tal humanismo pode realizar-se A tendência à unidade «só será possível, se os indivíduos e os grupos sociais cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade os valores morais e sociais, de forma que sejam verdadeiramente homens novos e artífices de uma nova humanidade, com o necessário auxílio da graça»[22].
PRIMEIRA PARTE
«A dimensão teológica revela-se necessária
para interpretar e resolver os problemas atuais da convivência humana» (Centesimus annus, 55)
CAPÍTULO I
O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
A TODA A HUMANIDADE
I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS
NA HISTÓRIA DE ISRAEL a) A proximidade gratuita de Deus 20 Toda autêntica experiência religiosa, em todas as tradições culturais, conduz a uma intuição do Mistério que, não raro, chega a divisar alguns traços do rosto de Deus. Ele aparece, por um lado, como origem daquilo que é, como presença que garante aos homens, socialmente organizados, as condições básicas de vida, pondo à disposição os bens necessários; por outro lado, como medida do que deve ser, como presença que interpela o agir humano ― tanto no plano pessoal como no social ― sobre o uso dos mesmos bens nas relações com os outros homens. Em toda experiência religiosa, portanto, se revelam importantes quer a dimensão do dom e da gratuidade, que se percebe como subjacente à experiência que a pessoa humana faz do seu existir junto com os outros no mundo, quer as repercussões desta dimensão sobre a consciência do homem, que adverte ser interpelado a gerir de forma responsável e convival o dom recebido. Prova disso é o reconhecimento universal da regra de ouro, em que se exprime, no plano das relações humanas, a lei que inscrita por Deus no homem: « Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles »[23]. 21 Sobre o pano de fundo, compartilhado em vária medida, da experiência religiosa universal, emerge a Revelação que Deus faz progressivamente de Si próprio a Israel. Ela responde à busca humana do divino de modo inopinado e surpreendente, graças aos gestos históricos, pontuais e incisivos, nos quais se manifesta o amor de Deus pelo homem. Segundo o livro do Êxodo, o Senhor dirige a Moisés a seguinte palavra: «Eu vi, eu vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo sair do Egito para uma terra fértil e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel» (Ex 3, 7-8). A proximidade gratuita de Deus ― à qual alude o Seu próprio Nome, que Ele revela a Moisés, «Eu sou aquele que sou» (cf. Ex 3, 14) ― manifesta-se na libertação da escravidão e na promessa, tornando-se ação histórica, na qual tem origem o processo de identificação coletiva do povo do Senhor, através da aquisição da liberdade e da terra que Deus lhe oferece em dom. 22 À gratuidade do agir divino, historicamente eficaz, acompanha constantemente o compromisso da Aliança, proposto por Deus e assumido por Israel. No Monte Sinai a iniciativa de Deus se concretiza na aliança com o Seu povo, ao qual é dado o Decálogo dos mandamentos revelados pelo Senhor (cf. Ex 19-24). As «dez palavras» (Ex 34, 28; cf. Dt 4, 13; 10, 4) «exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa amorosa do Senhor. É reconhecimento, homenagem a Deus e culto de ação de graças. É cooperação com o plano que Deus executa na história»[24]. Os dez mandamentos, que constituem um extraordinário caminho de vida indicam as condições mais seguras para uma existência liberta da escravidão do pecado, contêm uma expressão privilegiada da lei natural. Eles «ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e, portanto, indiretamente, os deveres fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana»[25]. Conotam a moral humana universal. Lembrados também por Jesus ao jovem rico do Evangelho (cf. Mt 19, 18), os dez mandamentos «constituem as regras primordiais de toda a vida social»[26]. 23 Do Decálogo deriva um compromisso que diz respeito não só ao que concerne à fidelidade ao Deus único e verdadeiro, como também às relações sociais no seio do povo da Aliança. Estas últimas são reguladas, em particular, pelo que se tem definido como o direito do pobre: « Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmão... não endurecerás o teu coração e não fecharás a mão diante do teu irmão pobre; mas abrir-lhe-ás a mão e emprestar-lhe-ás segundo as necessidades da sua indigência» (Dt 15, 7-8). Tudo isto vale também em relação ao forasteiro: «Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota e tu amá-lo-ás como a ti mesmo, por que vós fostes já estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus» (Lv 19, 33-34). O dom da libertação e da terra prometida, a Aliança do Sinai e o Decálogo estão, portanto, intimamente ligados a uma praxe que deve regular, na justiça e na solidariedade, o desenvolvimento da sociedade israelita. 24 Entre as multíplices disposições inspiradas por Deus, que tendem a concretizar o estilo de gratuidade e de dom, a lei do ano sabático (celebrado a cada sete anos) e do ano jubilar (cada cinqüenta anos)[27] se distingue como uma importante orientação — ainda que nunca plenamente realizada — para a vida social e econômica do povo de Israel. È uma lei que prescreve, além do repouso dos campos, a remissão das dívidas e uma libertação geral das pessoas e dos bens: cada um pode retornar à sua família e retomar posse do seu patrimônio. Esta legislação entende deixar assente que o evento salvífico do êxodo e a fidelidade à Aliança representam não somente o princípio fundante da vida social, política e econômica de Israel, mas também o princípio regulador das questões atinentes à pobreza econômica e às injustiças sociais. Trata-se de um princípio invocado para transformar continuamente e a partir de dentro a vida do povo da Aliança, de maneira a torná-la conforme ao desígnio de Deus. Para eliminar as discriminações e desigualdades provocadas pela evolução sócio-econômica, a cada sete anos a memória do êxodo e da Aliança é traduzida em termos sociais e jurídicos, de sorte que a questão da propriedade, das dívidas, das prestações de serviço e dos bens seja reconduzida ao seu significado mais profundo. 25 Os preceitos do ano sabático e do ano jubilar constituem uma doutrina social «in nuce»[28]. Eles mostram como os princípios da justiça e da solidariedade social são inspirados pela gratuidade do evento de salvação realizado por Deus e não têm somente o valor de corretivo de uma praxe dominada por interesses e objetivos egoístas, mas, pelo contrário, devem tornar-se, enquanto «prophetia futuri», a referência normativa à qual cada geração em Israel se deve conformar se quiser ser fiel ao seu Deus. Tais princípios tornam-se o fulcro da pregação profética, que visa a proporcionar a sua interiorização. O Espírito de Deus, derramado no coração do homem ― anunciam-no os Profetas ― fará aí medrar aqueles mesmos sentimentos de justiça e solidariedade que moram no coração do Senhor (cf. Jr 31, 33 e Ez 36, 26-27). Então a vontade de Deus, expressa na Decálogo doado no Sinai, poderá enraizar-se criativamente no próprio íntimo do homem. Desse processo de interiorização derivam maior profundidade e realismo para o agir social, tornando possível a progressiva universalização da atitude de justiça e solidariedade, que o povo da Aliança é chamado a assumir diante de todos os homens, de todo o povo e nação. b) Princípio da criação e agir gratuito de Deus 26 A reflexão profética e sapiencial atinge a manifestação primeira e a própria fonte do projeto de Deus sobre toda a humanidade, quando chega a formular o princípio da criação de todas as coisas por parte de Deus. No Credo de Israel, afirmar que Deus é criador não significa exprimir somente uma convicção teorética, mas perceber o horizonte originário do agir gratuito e misericordioso do Senhor em favor do homem. Ele, na verdade, livre e gratuitamente dá o ser e a vida a tudo aquilo que existe. O homem e a mulher, criados à Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-27), são por isso mesmo chamados a ser o sinal visível e o instrumento eficaz da gratuidade divina no jardim em que Deus os pôs quais cultivadores e guardiões dos bens da criação. 27 No agir gratuito de Deus Criador encontra expressão o sentido mesmo da criação, ainda que obscurecido e distorcido pela experiência do pecado. A narração do pecado das origens (cf. Gn 3, 1-24), com efeito, descreve a tentação permanente e ao mesmo tempo a situação de desordem em que a humanidade veio a encontrar-se com a queda dos primeiros pais. Desobedecer a Deus significa furtar-se ao seu olhar de amor e querer administrar por conta própria o existir e o agir no mundo. A ruptura da relação de comunhão com Deus provoca a ruptura da unidade interior da pessoa humana, da relação de comunhão entre o homem e a mulher e da relação harmoniosa entre os homens e as demais criaturas[29]. É nesta ruptura originária que se há de buscar a raiz mais profunda de todos os males que insidiam as relações sociais entre as pessoas humanas, de todas as situações que, na vida econômica e política, atentam contra a dignidade da pessoa, contra a justiça e a solidariedade.
II. JESUS CRISTO
CUMPRIMENTO DO DESÍGNIO DE AMOR DO PAI a) Em Jesus Cristo cumpre-se o evento decisivo da história de Deus com os homens 28 A benevolência e a misericórdia, que inspiram o agir de Deus e oferecem a sua chave de interpretação, tornam-se tão próximas do homem a ponto de assumir os traços do homem Jesus, o Verbo feito carne. Na narração de Lucas, Jesus descreve o Seu ministério messiânico com as palavras de Isaías que evocam o significado profético do jubileu: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor» (4, 18-19; cf. Is 61, 1-2). Jesus se coloca na linha do cumprimento, não só porque cumpre o que tinha sido prometido e que, portanto, era esperado por Israel, mas também no sentido mais profundo de que n’Ele se cumpre o evento definitivo da história de Deus com os homens. Com efeito, Ele proclama: «Aquele que me viu, viu também o Pai » (Jo 14, 9). Jesus, em outras palavras, manifesta de modo tangível e definitivo quem é Deus e como Ele se comporta com os homens. 29 O amor que anima o ministério de Jesus entre os homens é aquele mesmo experimentado pelo Filho na união íntima com o Pai. O Novo Testamento nos consente penetrar a experiência que Jesus mesmo vive e comunica do amor de Deus Seu Pai — Abbá — e, portanto, no mesmo coração da vida divina. Jesus anuncia a misericórdia libertadora de Deus para com aqueles que encontra no Seu caminho, a começar pelos pobres, pelos marginalizados, pelos pecadores, e convida à Sua seqüela, pois Ele por primeiro, e de modo de todo singular, obedece ao desígnio do amor de Deus qual Seu enviado no mundo. A consciência que Jesus tem de ser o Filho expressa precisamente esta experiência originária. O Filho recebeu tudo, e gratuitamente, do Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu» (Jo 16, 15). Ele, por Sua vez, tem a missão de tornar todos os homens partícipes desse dom e dessa relação filial: «Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai» (Jo 15, 15). Reconhecer o amor do Pai significa para Jesus inspirar a Sua ação na mesma gratuidade e misericórdia de Deus, geradoras de vida nova, e tornar-se assim, com a Sua própria existência, exemplo e modelo para os Seus discípulos. Estes são chamados a viver como Ele e, depois da Sua Páscoa de morte e ressurreição, também n’Ele e d’Ele, graças ao dom sobreabundante do Espírito Santo, o Consolador que interioriza nos corações o estilo de vida de Cristo mesmo. b) A revelação do Amor Trinitário 30 O testemunho do Novo Testamento, com o deslumbramento sempre novo de quem foi fulgurado pelo amor de Deus (cf. Rm 8, 26), colhe na luz da plena revelação do Amor trinitário proporcionada pela Páscoa de Jesus Cristo, o significado último da Encarnação do Filho de Deus e da Sua missão entre os homens. Escreve São Paulo: «Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele todas as coisas?» (Rm 8, 31-32). Semelhante linguagem usa-a também São João: «Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos Ele amado e enviado o seu Filho para expiar os nossos pecados» (1 Jo 4, 10). 31 O Rosto de Deus, progressivamente revelado na história da salvação, resplandece plenamente no Rosto de Jesus Cristo Crucifixo e Ressurrecto. Deus é Trindade: Pai, Filho, Espírito Santo, realmente distintos e realmente um, porque comunhão infinita de amor. O amor gratuito de Deus pela humanidade se revela, antes de tudo, como o amor fontal do Pai, de quem tudo provém; como comunicação gratuita que o Filho faz d’Ele, entregando-se ao Pai e doando-se aos homens; como fecundidade sempre nova do amor divino que o Espírito Santo derrama no coração dos homens (cf. Rm 5, 5). Com palavras e obras, e de modo pleno e definitivo com a Sua morte e ressurreição[30], Jesus revela à humanidade que Deus é Pai e que todos somos chamados por graça a ser filhos d’Ele no Espírito (cf. Rm 8, 15; Gal 4, 6), e por isso irmãos e irmãs entre nós. É por esta razão que a Igreja crê firmemente que « a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre »[31]. 32 Contemplando a inefável gratuidade e sobreabundância do dom divino do Filho por parte do Pai, que Jesus ensinou e testemunhou doando a Sua vida por nós, o Apóstolo predileto do Senhor daí aufere o profundo sentido e a mais lógica conseqüência: «Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos mutuamente, Deus permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito» (1 Jo 4, 11-12). A reciprocidade do amor é exigida pelo mandamento que Jesus mesmo define novo e Seu: «como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (Jo 13, 34). O mandamento do amor recíproco traça a via para viver em Cristo a vida trinitária na Igreja, Corpo de Cristo, e transformar com Ele a história até ao seu pleno cumprimento na Jerusalém Celeste. 33 O mandamento do amor recíproco, que constitui a lei de vida do povo de Deus[32], deve inspirar, purificar e elevar todas as relações humanas na vida social e política: «Humanidade significa chamada à comunhão interpessoal»[33], porque a imagem e semelhança do Deus trinitário são a raiz de «todo o “ethos” humano ... cujo vértice é o mandamento do amor»[34]. O fenômeno cultural, social, econômico e político hodierno da interdependência, que intensifica e torna particularmente evidentes os vínculos que unem a família humana, ressalta uma vez mais, à luz da Revelação, «um novo modelo de unidade do gênero humano, no qual, em última instância, a solidariedade se deve inspirar. Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra “comunhão”»[35]. III. A PESSOA HUMANA NO DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS34 A revelação em Cristo do mistério de Deus como Amor trinitário é também a revelação da vocação da pessoa humana ao amor. Tal revelação ilumina a dignidade e a liberdade pessoal do homem e da mulher, bem como a intrínseca sociabilidade humana em toda a profundidade: «Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta ... um existir em relação, em referência ao outro “eu” »[36], porque Deus mesmo, uno e trino, é comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na comunhão de amor que é Deus, em que as três Pessoas divinas se amam reciprocamente e são o Único Deus, a pessoa humana é chamada a descobrir a origem e a meta da sua existência e da história. Os Padres Conciliares, na Constituição Pastoral «Gaudium et spes», ensinam que «quando o Senhor Jesus pede ao Pai que “todos sejam um..., como nós também somos um” (Jo 17, 21-22), abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana, acena a uma certa semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus, na verdade e na caridade. Esta semelhança mostra que o homem, única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo (cf. Lc 17, 33)»[37]. 35 A revelação cristã projeta uma nova luz sobre a identidade, sobre a vocação e sobre o destino último da pessoa e do gênero humano. Toda a pessoa é por Deus criada, amada e salva em Jesus Cristo, e se realiza tecendo multíplices relações de amor, de justiça e de solidariedade com as outras pessoas, na medida em que desenvolve a sua multiforme atividade no mundo. O agir humano, quando tende a promover a dignidade e a vocação integral da pessoa, a qualidade das suas condições de existência, o encontro e a solidariedade dos povos e das nações, é conforme ao desígnio de Deus, que nunca deixa de mostrar o Seu amor e a Sua Providência para com Seus filhos. 36 As páginas do primeiro livro da Sagrada Escritura, que descrevem a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27), encerram um ensinamento fundamental sobre a identidade e a vocação da pessoa humana. Dizem-nos que a criação do homem e da mulher é um ato livre e gratuito de Deus; que o homem e a mulher constituem, porque livres e inteligentes, o tu criado de Deus e que somente na relação com Ele podem descobrir e realizar o significado autêntico e pleno de sua vida pessoal e social; que estes, precisamente na sua complementaridade e reciprocidade, são a imagem do Amor Trinitário no universo criado; que a eles, que são o ápice da criação, o Criador confia a tarefa de ordenar segundo o desígnio do seu Criador a natureza criada (cf. Gn 1, 28). 37 O livro da Gênese nos propõe algumas linhas mestras da antropologia cristã: a inalienável dignidade da pessoa humana, que tem a sua raiz e a sua garantia no desígnio criador de Deus; a sociabilidade constitutiva do ser humano, que tem o seu protótipo na relação originária entre o homem e a mulher, «união esta que foi a primeira expressão da comunhão de pessoas»[38]; o significado do agir humano no mundo, que é ligado à descoberta e ao respeito da lei natural que Deus imprimiu no universo criado, para que a humanidade o habite e guarde segundo o Seu projeto (cf. 2Pd 3, 13). Esta visão da pessoa humana, da sociedade e da história é radicada em Deus e é iluminada pela realização do Seu desígnio de salvação. b) A salvação cristã: para todos os homens e do homem todo 38 A salvação que, por iniciativa de Deus Pai, é oferecida em Jesus Cristo e é atualizada e difundida por obra do Espírito Santo, é salvação para todos os homens e do homem todo: é salvação universal e integral. Diz respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal e social, espiritual e corpórea, histórica e transcendente. Começa a realizar-se já na história, porque tudo o que é criado é bom e querido por Deus e porque o Filho de Deus se fez um de nós[39]. O seu cumprimento, porém, encontra-se no futuro que Deus nos reserva, quando formos chamados, com toda a criação (cf. Rm 8), a participar da ressurreição de Cristo e da comunhão eterna de vida com o Pai, na alegria do Espírito Santo. Esta perspectiva indica precisamente o erro e o engano das visões puramente imanentistas do sentido da história e das pretensões de auto-salvação do homem. 39 A salvação que Deus oferece aos Seus filhos requer a sua livre resposta e adesão. Nisso consiste a fé, «pela qual o homem se entrega livre e totalmente a Deus »[40], respondendo ao Amor preveniente e sobreabundante de Deus (cf. 1 Jo 4, 10) com o amor concreto aos irmãos e com firme esperança, «porque é fiel Aquele cuja promessa aguardamos» (Hb 10, 23). O plano divino de salvação, na verdade, não coloca a criatura humana num estado de mera passividade o de menoridade em relação ao seu Criador, porque a relação com Deus, que Jesus Cristo nos manifesta e no qual nos introduz gratuitamente por obra do Espírito Santo, é uma relação de filiação: a mesma que Jesus vive em relação ao Pai (cf. Jo 15-17; Gal 4, 6-7). 40 A universalidade e a integralidade da salvação, doada em Jesus Cristo, tornam incindível o nexo entre a relação que a pessoa é chamada a ter com Deus e a responsabilidade ética para com o próximo, na concretude das situações históricas. Isto se intui, ainda que confusamente e não sem erros, na universal busca humana de verdade e de sentido, mas torna-se estrutura fundamental da Aliança de Deus com Israel, como testemunham, por exemplo, as tábuas da Lei e a pregação profética. Tal nexo é expresso com clareza e em perfeita síntese no ensinamento de Jesus Cristo e confirmado definitivamente pelo testemunho supremo do dom de Sua vida, em obediência à vontade do Pai e por amor aos irmãos. Ao escriba que lhe pergunta: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» (Mc 12, 28), Jesus responde: «O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe » (Mc 12, 29-31). No coração da pessoa humana se entrelaçam indissoluvelmente a relação com Deus, reconhecido como Criador e Pai, fonte e termo da vida e da salvação, e a abertura ao amor concreto pelo homem, que deve ser tratado como um outro “eu”, ainda que seja um inimigo (cf. Mt 5, 43-44). Na dimensão interior e espiritual do homem se radicam, ao fim e ao cabo, o empenho pela justiça e pela solidariedade, pela edificação de uma vida social, econômica e política conforme com o desígnio de Deus. c) O discípulo de Cristo qual nova criatura 41 A vida pessoal e social assim como o agir humano no mundo são sempre insidiados pelo pecado, mas Jesus Cristo, «padecendo por nós, não nos deu simplesmente o exemplo para seguirmos os Seus passos, mas rasgou um caminho novo: se o seguirmos, a vida e a morte tornam-se santas e adquirem um sentido diferente»[41]. O discípulo de Cristo adere, na fé e mediante os sacramentos, ao mistério pascal de Jesus, de sorte que o seu homem velho, com as suas más inclinações, é crucificado com Cristo. Qual nova criatura ele então fica habilitado na graça a caminhar em «uma vida nova» (Rom 6, 4). Tal caminho, porém, «vale não apenas para os que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais, invisivelmente, opera a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e vocação última do homem é realmente uma só, a saber divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal»[42]. 42 A transformação interior da pessoa humana, na sua progressiva conformação a Cristo, é pressuposto essencial de uma real renovação das suas relações com as outras pessoas: «É preciso, então, apelar às capacidades espirituais e morais da pessoa e à exigência permanente de sua conversão interior, a fim de obter mudanças sociais que estejam realmente a seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração não elimina absolutamente, antes impõe, a obrigação de trazer às instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de pôr-lhe obstáculos»[43]. 43 Não é possível amar o próximo como a si mesmo e perseverar nesta atitude sem a firme e constante determinação de empenhar-se em prol do bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos[44]. Segundo o ensinamento conciliar, «também àqueles que pensam e fazem de modo diferente do nosso em matéria social, política e, inclusivamente, religiosa, deve estender-se o respeito e a caridade; quanto nos esforçamos para penetrar intimamente com benevolência e amor, nos seus modos de ver, mais fácil se tornará um diálogo com eles»[45]. Nesse caminho é necessária a graça, que Deus oferece ao homem para ajudá-lo a superar os falhanços, para arrancá-lo da voragem da mentira e da violência, para sustentá-lo e incentivá-lo a tecer de novo, com espírito sempre renovado e disponível, a rede das relações verdadeiras e sinceras com os seus semelhantes[46]. 44 Também a relação com o universo criado e as diversas atividades que o homem dedica ao seu cuidado e transformação, quotidianamente ameaçadas pela soberba e amor desordenado de si, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo: «Resgatado por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar, com efeito, as coisas criadas por Deus. Pois de Deus as recebe: vê-as como brotando da Sua mão e como tais as respeita. Dando graças por elas ao Benfeitor, e usando e gozando das criaturas em espírito de pobreza e liberdade, é então que entra deveras na posse do mundo, como quem nada tem e é dono de tudo: com efeito “tudo é vosso: vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23)»[47]. d) Transcendência da salvação e autonomia das realidades terrestres 45 Jesus Cristo é o Filho de Deus humanado no qual e graças ao qual o mundo e o homem haurem a sua autêntica e plena verdade. O mistério da infinita proximidade de Deus em relação ao homem – realizado na Encarnação de Jesus Cristo, levado até ao abandono na cruz e à morte – mostra que quanto mais o humano é visto à luz do desígnio de Deus e vivido em comunhão com Ele, tanto mais ele é potenciado e libertado na sua identidade e na mesma liberdade que lhe é própria. A participação na vida filial de Cristo, tornada possível pela Encarnação e pelo dom pascal do Espírito, longe de mortificar, tem o efeito de fazer desabrochar a autêntica e autônoma consistência e identidade dos seres humanos, em todas as suas expressões. Esta perspectiva orienta para uma visão mais correta das realidades terrestres e da sua autonomia, que é bem sublinhada pelo ensinamento do Concílio Vaticano II: «Se por autonomia das realidades terrestres se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm as suas leis e os seus valores próprios, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar, tal exigência de autonomia é plenamente legítima... corresponde à vontade do Criador. Com efeito, é pela virtude da própria criação que todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade, bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar, e reconhecer os métodos próprios de cada uma das ciências ou técnicas»[48]. 46 Não há conflituosidade entre Deus e o homem, mas uma relação de amor na qual o mundo e os frutos do agir do homem no mundo são objeto de recíproco dom entre o Pai e os filhos, e dos filhos entre si, em Cristo Jesus: n’Ele e graças a Ele, o mundo e o homem alcançam o seu significado autêntico e originário. Em uma visão universal do amor de Deus que abraça tudo o que é, Deus mesmo se nos revelou em Cristo como Pai e Doador de vida, e o homem nos é revelado como aquele que, em Cristo, tudo recebe de Deus como dom, em humildade e liberdade, e tudo possui verdadeiramente como seu, quando conhece e vive tudo como coisa de Deus, por Deus originada e a Deus destinada. A este propósito, o Concílio Vaticano II ensina: «Se por autonomia do temporal se entende que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las de tal maneira que as não refira ao Criador, não há ninguém que acredite em Deus, que não perceba quão falsas são tais afirmações. Na verdade, a criatura sem o Criador perde o sentido»[49]. 47 A pessoa humana, em si mesma e na sua vocação, transcende o horizonte do universo criado, da sociedade e da história: o seu fim último é o próprio Deus[50], que se revelou aos homens para convidá-los e recebê-los na comunhão com Ele[51]. «O homem não se pode doar a um projeto somente humano da realidade, nem a um ideal abstrato ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom»[52]. Por isso «alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana »[53]. 48 A pessoa humana não pode e não deve ser instrumentalizada por estruturas sociais, econômicas e políticas, pois todo homem tem a liberdade de orientar-se para o seu fim último. Por outro lado, toda a realização cultural, social, econômica e política, em que se atuam historicamente a sociabilidade da pessoa e a sua atividade transformadora do universo, deve sempre ser considerada também no seu aspecto de realidade relativa e provisória, porque «a figura desse mundo passa!» (1 Cor 7, 31). Trata-se de uma relatividade escatológica, no sentido de que o homem e o mundo vão ao encontro do fim, que é o cumprimento do seu destino em Deus; e de uma relatividade teológica, enquanto o dom de Deus, mediante o qual se cumprirá o destino definitivo da humanidade e da criação, supera infinitamente as possibilidades e as expectativas do homem. Qualquer visão totalitária da sociedade e do Estado e qualquer ideologia puramente intramundana do progresso são contrárias à verdade integral da pessoa humana e ao desígnio de Deus na história.
IV. DESÍGNIO DE DEUS E MISSÃO DA IGREJA
a) A Igreja, sinal e tutela da transcendência da pessoa humana 49 A Igreja, comunidade daqueles que são convocados pelo Cristo Ressuscitado e se põem no seu seguimento, é o «sinal e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana»[54]. Ela « é em Cristo como que sacramento ou sinal, e também instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano»[55]. A missão da Igreja é a de anunciar e comunicar a salvação realizada em Jesus Cristo, que Ele chama « Reino de Deus » (Mc 1, 15), ou seja, a comunhão com Deus e entre os homens. O fim da salvação, o Reino de Deus, abraça todos os homens e se realizará plenamente além da história, em Deus. A Igreja recebeu «a missão de anunciar e estabelecer em todas as gentes o Reino de Cristo e de Deus, e constitui ela própria na terra o germe e o início deste Reino»[56]. 50 A Igreja põe-se concretamente ao serviço do Reino de Deus, antes de mais nada, anunciando e comunicando o Evangelho da salvação e constituindo novas comunidades cristãs. Ela, ademais, «serve o Reino, difundindo pelo mundo os “valores evangélicos”, que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os “valores evangélicos” e se abra à ação do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica »[57]. Donde deriva, em particular, que a Igreja não se confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema político[58]. A comunidade política e a Igreja, no próprio campo, são efetivamente independentes e autônomas uma em relação à outra, e estão ambas, embora a diferentes títulos, «ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens »[59]. Pode-se, antes, afirmar que a distinção entre religião e política e o princípio da liberdade religiosa constituem uma aquisição específica do cristianismo, de grande relevo no plano histórico e cultural. 51 À identidade e à missão da Igreja no mundo, segundo o projeto de Deus realizado em Cristo, corresponde «uma finalidade salvífica e escatológica, que só pode ser plenamente alcançada no século futuro»[60]. Justo por isso, a Igreja oferece um contributo original e insubstituível à comunidade humana com a solicitude que a impele a tornar mais humana a família dos homens e a sua história, e a pôr-se como baluarte contra qualquer tentação totalitarista, indicando ao homem a sua vocação integral e definitiva[61]. Com a pregação do Evangelho, a graça dos sacramentos e a experiência da comunhão fraterna, a Igreja sana e eleva a dignidade da pessoa humana, «firmando a coesão da sociedade e dando à atividade diária dos homens um sentido e um significado mais profundos»[62]. No plano das dinâmicas históricas concretas, não se pode compreender o advento do Reino de Deus na perspectiva de uma organização social, econômica e política definida e definitiva. Ele é antes testemunhado pelo progresso de uma sociabilidade humana que é para os homens fermento de realização integral, de justiça e de solidariedade, na abertura ao Transcendente como termo referencial para a própria definitiva e plena realização pessoal. b) Igreja, Reino de Deus e renovação das relações sociais 52 Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens. Como ensina o apóstolo Paulo, a vida em Cristo faz vir à tona de modo pleno e novo a identidade e a sociabilidade da pessoa humana, com as suas concretas conseqüências no plano histórico e social: «Todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3, 26-28). Nesta perspectiva, as comunidade eclesiais, convocadas pela mensagem de Jesus Cristo e reunidas no Espírito Santo ao redor do Ressuscitado (cf. Mt 18, 20; 28, 19-20; Lc 24, 46-49), se propõem como lugar de comunhão, de testemunho e de missão e como fermento de redenção e de transformação das relações sociais. A pregação do Evangelho de Jesus induz os discípulos a antecipar o futuro renovando as relações recíprocas. 53 A transformação social que responde às exigências do Reino de Deus não está estabelecida nas suas determinações concretas uma vez por todas. Trata-se antes de uma tarefa confiada à comunidade cristã, que a deve elaborar e realizar através da reflexão e da praxe inspiradas no Evangelho. É o próprio Espírito do Senhor que conduz o povo de Deus e, concomitantemente, preenche o universo[63], inspirando, de tempos em tempos, soluções novas e atuais à criatividade responsável dos homens[64], à comunidade dos cristãos inserida nos dinamismos do mundo e da história e, por isso mesmo, aberta ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade, na busca comum dos germes de verdade e de liberdade disseminados no vasto campo da humanidade[65]. A dinâmica de uma tal renovação deve estar ancorada nos princípios imutáveis da lei natural, impressa por Deus Criador na Sua criatura (cf. Rm 2, 14-15) e iluminada escatologicamente mediante Jesus Cristo. 54 Jesus Cristo revela-nos que «Deus é amor» (1 Jo 4, 8) e nos ensina que «a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do mundo, é o mandamento novo do amor. Destarte, aos que crêem no amor divino dá-lhes a certeza de que abrir o caminho do amor a todos os homens e instaurar a fraternidade universal não são coisas vãs»[66]. Esta lei è chamada a tornar-se a medida e a norma última de todas as dinâmicas nas quais se desdobram as relações humanas. Em síntese, é o próprio mistério de Deus, o Amor trinitário, que funda o significado e o valor da pessoa, da sociabilidade e do agir do homem no mundo, na medida em que foi revelado e participado à humanidade, por meio de Cristo, no Seu Espírito. 55 A transformação do mundo se apresenta como uma instância fundamental também do nosso tempo. A esta exigência o Magistério social da Igreja entende oferecer as respostas que os sinais dos tempos invocam, indicando primeiramente no amor recíproco entre os homens, sob o olhar de Deus, o instrumento mais potente de mudança, no plano pessoal assim como no social. O amor recíproco, com efeito, na participação no amor infinito de Deus é o autêntico fim, histórico e transcendente, da humanidade. Portanto, «ainda que haja que distinguir cuidadosamente progresso terreno e crescimento do Reino de Cristo, contudo este progresso tem muita importância para o Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para uma melhor organização da sociedade humana»[67]. c) Novos céus e nova terra 56 A promessa de Deus e a ressurreição de Jesus Cristo suscitam nos cristãos a fundada esperança de que para todas as pessoas humanas é preparada uma nova e eterna morada, uma terra em que habita a justiça (cf. 2 Cor 5, 1-2; 2Pd 3, 13). «Então, depois de vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo e aquilo que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorruptibilidade; e permanecendo a caridade com as suas obras, todas as criaturas que Deus criou por causa do homem serão livres da servidão da vaidade»[68]. Esta esperança, longe de atenuar, deve antes impulsionar a solicitude pelo trabalho referente à realidade presente. 57 Os bens, quais a dignidade do homem, a fraternidade e a liberdade, todos os bons frutos da natureza e da nossa operosidade, esparsos pela terra no Espírito do Senhor e de acordo com o Seu preceito, limpos de toda a mancha, iluminados e transfigurados, pertencem ao Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz que Cristo entregará ao Pai e lá os encontraremos novamente. Ressoarão então para todos, na sua solene verdade, as palavras de Cristo: «Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim (...) todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes» (Mt 25, 34-36.40). 58 A realização da pessoa humana, atuada em Cristo graças ao dom do Espírito, matura na história e é mediada pelas relações da pessoa com as outras pessoas, relações que, por sua vez, alcançam a sua perfeição graças ao empenho por melhorar o mundo, na justiça e na paz. O agir humano na história é de per si significativo e eficaz para a instauração definitiva do Reino, ainda que este continue a ser dom de Deus, plenamente transcendente. Tal agir, quando respeitoso da ordem objetiva da realidade temporal e iluminado pela verdade e pela caridade, torna-se instrumento para uma atuação sempre mais plena e integral da justiça e da paz e antecipa no presente o Reino prometido. Configurando-se a Cristo Redentor, o homem se percebe como criatura querida por Deus e por Ele eternamente escolhida, chamada à graça e à glória, na plenitude do mistério de que se tornou partícipe em Jesus Cristo[69]. A configuração a Cristo e a contemplação do Seu Rosto[70] infundem no cristão um anelo indelével por antecipar neste mundo, no âmbito das relações humanas, o que será realidade no mundo definitivo, empenhando-se em dar de comer, de beber, de vestir, uma casa, a cura, o acolhimento e a companhia ao Senhor que bate à porta (cf. Mt 25, 35-37). d) Maria e o Seu «fiat» ao desígnio de amor de Deus 59 Herdeira da esperança dos justos de Israel e primeira dentre os discípulos de Jesus Cristo é Maria, Sua Mãe. Ela, com o Seu «fiat» ao desígnio de amor de Deus (cf. Lc 1, 38), em nome de toda a humanidade, acolhe na história o enviado do Pai, o Salvador dos homens. No canto do «Magnificat» proclama o advento do Mistério da Salvação, a vinda do «Messias dos pobres» (cf. Is 11, 4; 61, 1). O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré na exultação do Seu espírito, é Aquele que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias, dispersa os soberbos e conserva a Sua misericórdia para aqueles que O temem (cf. Lc 1, 50-53). Haurindo no coração de Maria, da profundidade da Sua fé expressa nas palavras do «Magnificat», os discípulos de Cristo são chamados a renovar cada vez melhor em si mesmos «a certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus »[71]. Maria, totalmente dependente de Deus e toda orientada para Ele, com o impulso da sua fé «é o ícone mais perfeito da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos»[72].
CAPÍTULO II
MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL
I. EVANGELIZAÇÃO E DOUTRINA SOCIAL
a) A Igreja, morada de Deus com os homens 60 A Igreja, partícipe das alegrias e esperanças, das angústias e das tristezas dos homens, é solidária com todo homem e a toda a mulher, de todo lugar e de todo tempo, e leva-lhes a Boa Nova do Reino de Deus, que com Jesus Cristo veio e vem em meio a eles[73]. A Igreja é, na humanidade e no mundo, o sacramento do amor de Deus e, por isso mesmo, da esperança maior, que ativa e sustém todo autêntico projeto e empenho de libertação e promoção humana. É, em meio aos homens, a tenda da companhia de Deus ― «o tabernáculo de Deus com os homens» (Ap 21, 3) ― de modo que o homem não se encontra só, perdido ou transtornado no seu empenho de humanizar o mundo, mas encontra amparo no amor redentor de Cristo. Ela é ministra de salvação, não em abstrato ou em sentido meramente espiritual, mas no contexto da história e do mundo em que o homem vive[74], onde o alcançam o amor de Deus e a vocação a corresponder ao projeto divino. 61 Único e irrepetível na sua individualidade, todo homem é um ser aberto à relação com os outros na sociedade. O conviver social na rede de relações que interliga indivíduos, famílias, grupos intermédios em relações de encontro, de comunicação e de reciprocidade, assegura ao viver uma qualidade melhor. O bem comum que eles buscam e conseguem formando a comunidade social é garantia do bem pessoal, familiar e associativo[75]. Por estas razões, se origina e prende forma a sociedade, com os seus componentes estruturais, ou seja, políticos, econômicos, jurídicos, culturais. Ao homem «enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas»[76], a Igreja se dirige com a sua doutrina social. «Perita em humanidade»[77], a Igreja é apta a compreendê-lo na sua vocação e nas suas aspirações, nos seus limites e nos seus apuros, nos seus direitos e nas suas tarefas, e a ter para ele uma palavra de vida que ressoe nas vicissitudes históricas e sociais da existência humana. b) Fecundar e fermentar com o Evangelho a sociedade 62 Com o seu ensinamento social a Igreja entende anunciar e atualizar o Evangelho na complexa rede de relações sociais. Não se trata simplesmente de alcançar o homem na sociedade ― o homem qual destinatário do anúncio evangélico ―, mas de fecundar e fermentar com o Evangelho a mesma sociedade[78]. Cuidar do homem significa, para a Igreja, envolver também a sociedade na sua solicitude missionária e salvífica. A convivência social, com efeito, não raro determina a qualidade da vida e, por conseguinte, as condições em que cada homem e cada mulher se compreendem a si próprios e decidem de si mesmos e da própria vocação. Por esta razão, a Igreja não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se vive, numa palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora, da vida social. A sociedade e, com ela, a política, a economia, o trabalho, o direito, a cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e portanto marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação. Efetivamente, a sociedade ― com tudo o que nela se realiza ― diz respeito ao homem. É a sociedade dos homens, que são «a primeira e fundamental via da Igreja»[79]. 63 Com a sua doutrina social a Igreja assume a tarefa de anúncio que o Senhor lhe confiou. Ela atualiza no curso da história a mensagem de libertação e de redenção de Cristo, o Evangelho do Reino. A Igreja, anunciando o Evangelho, «testemunha ao homem, em nome de Cristo, sua dignidade própria e sua vocação à comunhão de pessoas; ensina-lhe as exigências da justiça e da paz, de acordo com a sabedoria divina»[80]. Evangelho que, mediante a Igreja, ressoa no hoje do homem[81], a doutrina social é palavra que liberta. Isso significa que tem a eficácia de verdade e de graça do Espírito Santo, que penetra os corações, dispondo-os a cultivar pensamentos e projetos de amor, de justiça, de liberdade e de paz. Evangelizar o social é, pois, infundir no coração dos homens a carga de sentido e de libertação do Evangelho, de modo a promover uma sociedade à medida do homem porque à medida de Cristo: é construir uma cidade do homem mais humana porque mais conforme com o Reino de Deus. 64 A Igreja, com a sua doutrina social, não só não se afasta da própria missão, mas lhe é rigorosamente fiel. A redenção realizada por Cristo e confiada à sua missão salvífica é certamente de ordem sobrenatural. Esta dimensão não é expressão limitativa, mas integral da salvação[82]. O sobrenatural não deve ser concebido como uma entidade ou um espaço que começa onde termina o natural, mas como uma elevação deste, de modo que nada da ordem da criação e do humano é alheio ou excluído da ordem sobrenatural e teologal da fé e da graça, antes aí é reconhecido, assumido e elevado: «Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem (cf. Gên 1, 26-30) — aquele mundo que, entrando nele o pecado, “foi submetido à caducidade” (Rm 8, 20; cf. ibid., 8, 19-22) — readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito” (Jo 3, 16). Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado (cf. Rm 5, 12-21)»[83]. 65 A Redenção começa com a Encarnação, mediante a qual o Filho de Deus assume tudo do homem, exceto o pecado, segundo as solidariedades instituídas pela Sabedoria criadora divina, e tudo abraça em seu dom de Amor redentor. Por este Amor o homem é abraçado na inteireza do seu ser: ser corpóreo e espiritual, em relação solidária com os outros. O homem todo — não uma alma separada ou um ser encerrado na sua individualidade, mas a pessoa e a sociedade das pessoas — fica implicado na economia salvífica do Evangelho. Portadora da mensagem de Encarnação e de Redenção do Evangelho, a Igreja não pode percorrer outra via: com a sua doutrina social e com a ação eficaz que ela ativa, não somente não falseia o seu rosto e a sua missão, mas é fiel a Cristo e se revela aos homens como «sacramento universal da salvação»[84]. Isto é particularmente verdadeiro numa época como a nossa, caracterizada por uma crescente interdependência e por uma mundialização das questões sociais. c) Doutrina social, evangelização e promoção humana 66 A doutrina social é parte integrante do ministério de evangelização da Igreja. Daquilo que diz respeito à comunidade dos homens — situações e problemas referentes à justiça, à libertação, ao desenvolvimento, às relações entre os povos, à paz — nada é alheio à evangelização e esta não seria completa se não levasse em conta o recíproco apelo que se continuamente se fazem o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social do homem[85]. Entre evangelização e promoção humana há laços profundos: «laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto de problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da Redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que deve ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e autêntico progresso do homem?»[86]. 67 A doutrina social, «por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização»[87] e se desenvolve no encontro sempre renovado entre a mensagem evangélica e a história humana. Assim entendida, tal doutrina é via peculiar para o exercício do ministério da Palavra e da função profética da Igreja[88]: «para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas conseqüências diretas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador»[89]. Não estamos na presença de um interesse ou de uma ação marginal, que se apõe à missão da Igreja, mas no coração mesmo da sua ministerialidade: com a doutrina social a Igreja «anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo»[90]. Este é um ministério que procede não só do anúncio, mas também do testemunho. 68 A Igreja não se ocupa da vida em sociedade em todos os seus aspectos, mas com a sua competência própria, que é a do anúncio de Cristo Redentor[91]: «A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é de ordem política, econômica e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem religiosa. Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a Lei de Deus»[92]. Isto quer dizer que a Igreja, com a sua doutrina social, não entra em questões técnicas e não institui nem propõe sistemas ou modelos de organização social[93]: isto não faz parte da missão que Cristo lhe confiou. A Igreja tem a competência que lhe vem do Evangelho: da mensagem de libertação do homem anunciada e testemunhada pelo Filho de Deus humanado. d) Direito e dever da Igreja 69 Com a sua doutrina social a Igreja «se propõe assistir o homem no caminho da salvação»[94]: trata-se do seu fim precípuo e único. Não há outros objetivos tendentes a sub-rogar ou invadir atribuições de outrem, negligenciando as próprias; ou a perseguir objetivos alheios à sua missão. Tal missão configura o direito e juntamente o dever da Igreja de elaborar uma doutrina social própria e com ela exercer influxo sobre a sociedade e as suas estruturas, mediante as responsabilidades e as tarefas que esta doutrina suscita. 70 A Igreja tem o direito de ser para o homem mestra de verdades da fé: da verdade não só do dogma, mas também da moral que dimana da mesma natureza humana e do Evangelho[95]. A palavra do Evangelho, efetivamente, não deve somente ser ouvida, mas também posta em prática (cf. Mt 7, 24; Lc 6, 46-47; Jo 14, 21.23-24; Tg 1, 22): a coerência nos comportamentos manifesta a adesão do crente e não se restringe ao âmbito estritamente eclesial e espiritual, mas abarca o homem em todo o seu viver e segundo todas as suas responsabilidades. Conquanto seculares, estas têm como sujeito o homem, vale dizer, aquele a quem Deus chama, mediante a Igreja, a participar do Seu dom salvífico. Ao dom da salvação o homem deve corresponder, não com uma adesão parcial, abstrata ou verbal, mas com a sua vida inteira, segundo todas as relações que a conotam, de modo que nada se relegue ao âmbito profano e mundano, irrelevante ou alheio à salvação. Por isso a doutrina social não representa para a Igreja um privilégio, uma digressão, uma conveniência ou uma ingerência: é um direito seu evangelizar o social, ou seja, fazer ressoar a palavra libertadora do Evangelho no complexo mundo da produção, do trabalho, do empresariado, das finanças, do comércio, da política, do direito, da cultura, das comunicações sociais, em que vive o homem. 71 Este direito é, ao mesmo tempo, um dever, pois a Igreja não pode renunciar a ele sem se desmentir a si mesma e a sua fidelidade a Cristo: «Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16). A admonição que São Paulo dirige a si próprio ressoa na consciência da Igreja como um apelo a percorrer todas as vias da evangelização; não somente as que levam às consciências individuais, mas também as que conduzem às instituições públicas: de um lado não se deve atuar uma «redução errônea do fato religioso à esfera exclusivamente privada»[96], doutro lado não se pode orientar a mensagem cristã a uma salvação puramente ultraterrena, incapaz de iluminar a presença sobre a terra[97]. Pela relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos da injustiça, vale dizer, do pecado, a Igreja não pode ficar indiferente às vicissitudes sociais[98]: «Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas »[99].
II. A NATUREZA DA DOUTRINA SOCIAL
a) Um saber iluminado pela fé 72 A doutrina social da Igreja não foi pensada desde o princípio como um sistema orgânico; mas foi se formando pouco a pouco, com progressivos pronunciamentos do Magistério sobre os temas sociais. Tal gênese torna compreensível o fato que tenham podido intervir algumas oscilações acerca da natureza, do método e da estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja. Precedido por um significativo aceno na «Laborem exercens»[100], um esclarecimento decisivo nesse sentido está contido na Encíclica «Sollicitudo rei socialis»: a doutrina social da Igreja pertence, não ao campo da ideologia, mas ao «da teologia e precisamente da teologia moral»[101]. Ela não é definível segundo parâmetros sócio-econômicos. Não é um sistema ideológico ou pragmático, que visa definir e compor as relações econômicas, políticas e sociais, mas uma categoria a se. É «a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão»[102]. 73 A doutrina social, portanto, é de natureza teológica e especificamente teológico-moral, «tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas»[103]: «Ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história»[104]. Efetivamente, a doutrina social reflete os três níveis do ensinamento teológico-moral: o nível fundante das motivações; o diretivo das normas do viver social; o deliberativo das consciências, chamadas a mediar as normas objetivas e gerais nas situações sociais concretas e particulares. Estes três níveis definem implicitamente também o método próprio e a específica estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja. 74 A doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na Tradição da Igreja. Neste manancial, que vem do alto, ela haure a inspiração e a luz para compreender, julgar e orientar a experiência humana e a história. Antes e acima de tudo está o projeto de Deus sobre a criação e, em particular, sobre a vida e o destino do homem, chamado à comunhão trinitária. A fé, que acolhe a palavra divina e a põe em prática, interage eficazmente com a razão. A inteligência da fé, em particular da fé orientada à práxis, é estruturada pela razão e vale-se de todos os contributos que esta lhe oferece. Também a doutrina social, enquanto saber aplicado à contingência e à historicidade da praxe, conjuga juntas «fides et ratio»[105] e é expressão eloqüente da sua fecunda relação. 75 A fé e a razão constituem as duas vias cognoscitivas da doutrina social, em sendo duas as fontes nas quais esta haure: a Revelação e a natureza humana. O conhecer da fé compreende e dirige a vida do homem à luz do mistério histórico-salvífico, do revelar-se e doar-se de Deus em Cristo por nós homens. Esta inteligência da fé inclui a razão, mediante a qual esta explica e compreende a verdade revelada e a integra com a verdade da natureza humana, hauridas no projeto divino expresso pela criação[106], ou seja, a verdade integral da pessoa humana enquanto ser espiritual e corpóreo, em relação com Deus, com os outros seres humanos e com todas as demais criaturas[107]. O centrar-se sobre o mistério de Cristo, portanto, não enfraquece ou exclui o papel da razão e, por isso, não priva a doutrina social de plausibilidade racional e, portanto, da sua destinação universal. Dado que o mistério de Cristo ilumina o mistério do homem, a doutrina social confere plenitude de sentido à compreensão da dignidade humana e das exigências morais que a tutelam. A doutrina social da Igreja é um conhecer iluminado pela fé, que — precisamente por isso — expressa a sua maior capacidade de conhecimento. Ela dá razão a todos das verdades que afirma e dos deveres que comporta: pode encontrar acolhimento e aceitação por parte de todos. b) Em diálogo cordial com todo o saber 76 A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber donde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: «Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, econômicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em se os contributos que delas provêm»[108]. A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas. 77 Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana qual fonte e a razão qual via cognoscitiva da mesma fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja no argumentar que lhe é próprio. Afirmar que a doutrina social deve ser adscrita antes à teologia que à filosofia não significa desconhecer o menosprezar o papel e o aporte filosófico. A filosofia é, efetivamente, instrumento apto e indispensável para uma correta compreensão de conceitos basilares da doutrina social — como a pessoa, a sociedade, a liberdade, a consciência, a ética, o direito, a justiça, o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade, o Estado —, compreensão tal que inspire uma convivência social harmoniosa. É a filosofia ainda a ressaltar a plausibilidade racional da luz que o Evangelho projeta sobre a sociedade e a exigir de cada inteligência e consciência a abertura e o assentimento à verdade. 78 Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais[109]: pela parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A Igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do fato de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência. A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e atualidade. Graças a elas, a Igreja pode para compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, de falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social «parte»[110]. Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e «a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação»[111]. c) Expressão do ministério de ensinamento da Igreja 79 A doutrina social é da Igreja porque a Igreja é o sujeito que a elabora, difunde e ensina. Essa não é prerrogativa de uma componente do corpo eclesial, mas da comunidade inteira: expressão do modo como a Igreja compreende a sociedade e se coloca em relação às suas estruturas e às suas mudanças. Toda a comunidade eclesial — sacerdotes, religiosos e leigos — concorre para constituir a doutrina social, segundo a diversidade, no seu interior, de tarefas, carismas e ministérios. Os contributos multíplices e multiformes — expressões estas também do «sentido sobrenatural da fé (sensus fidei) do povo inteiro»[112] — são assumidos, interpretados e unificados pelo Magistério, que promulga o ensinamento social como doutrina da Igreja. O Magistério compete na Igreja àqueles que estão investidos do «munus docendi», ou seja, do ministério de ensinar no campo da fé e da moral com a autoridade recebida de Cristo. A doutrina social não é somente o fruto do pensamento e da obra de pessoas qualificadas, mas é o pensamento da Igreja, enquanto obra do Magistério, o qual ensina com a autoridade que Cristo conferiu aos Apóstolos e aos seus sucessores: o Papa e os Bispos em comunhão com ele[113]. 80 Na doutrina social da Igreja atua o Magistério em todas as suas componentes e expressões. Primário é o Magistério universal do Papa e do Concílio: é este Magistério que determina a direção e assinala o desenvolvimento da doutrina social. Ele, por sua vez, é integrado pelo Magistério episcopal, que especifica, traduz e atualiza o seu ensino na concretude e peculiaridade das múltiplas e diferentes situações locais[114]. O ensinamento social dos Bispos oferece valiosos contributos e estímulos ao Magistério do Romano Pontífice. Atua-se assim uma circularidade, que exprime de fato a colegialidade dos Pastores unidos ao Papa no ensinamento social da Igreja. O complexo doutrinal que daí resulta compreende e integra assim o ensinamento universal dos Papas e o particular dos Bispos. Enquanto parte do ensinamento moral da Igreja, a doutrina social reveste a mesma dignidade e possui autoridade idêntica à de tal ensinamento. Ela é Magistério autêntico, que exige a aceitação e a adesão por parte dos fiéis[115]. O peso doutrinal dos vários ensinamentos e o assentimento que requerem devem ser ponderados em função da sua natureza, do seu grau de independência em relação a elementos contingentes e variáveis, e da freqüência com que são reafirmados[116]. d) Por uma sociedade reconciliada na justiça e no amor 81 O objeto da doutrina social da Igreja é essencialmente o mesmo que constitui e motiva a sua razão de ser: o homem chamado à salvação e como tal confiado por Cristo à cura e à responsabilidade da Igreja[117]. Com a doutrina social, a Igreja se preocupa com a vida humana na sociedade, ciente de que da qualidade da experiência social, ou seja, das relações de justiça e de amor que a tecem, depende de modo decisivo a tutela e a promoção das pessoas, para as quais toda comunidade è constituída. Efetivamente, na sociedade estão em jogo a dignidade e os direitos das pessoas e a paz nas relações entre pessoas e entre comunidades de pessoas. Bens estes que a comunidade social deve perseguir e garantir. Nesta perspectiva, a doutrina social cumpre uma função de anúncio mas também de denúncia. Em primeiro lugar, o anúncio do que a Igreja tem de próprio: «uma visão global do homem e da humanidade»[118]. E isso não só no nível dos princípios, mas também prático. A doutrina social, com efeito, não oferece somente significados, valores e critérios de juízo, mas também as normas e as diretrizes de ação que daí decorrem[119]. Com a sua doutrina social, a Igreja não persegue fins de estruturação e organização da sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências. A doutrina social comporta também um dever de denúncia, em presença do pecado: é o pecado de injustiça e de violência que de vário modo atravessa a sociedade e nela toma corpo[120]. Tal denúncia se faz juízo e defesa dos direitos ignorados e violados, especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos, dos fracos[121], e tanto mais se intensifica quanto mais as injustiças e as violências se estendem, envolvendo inteiras categorias de pessoas e amplas áreas geográficas do mundo, e dão lugar a questões sociais, ou seja, a opressões e desequilíbrios que conturbam as sociedades. Boa parte do ensinamento social da Igreja é solicitado e determinado pelas grandes questões sociais, de que quer ser resposta de justiça social. 82 O intento da doutrina social da Igreja é de ordem religiosa e moral[122]. Religioso porque a missão evangelizadora e salvífica da Igreja abraça o homem «na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social»[123]. Moral porque a Igreja visa a um «humanismo total»[124], vale dizer à «libertação de tudo aquilo que oprime o homem»[125] e ao «desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens»[126]. A doutrina social indica e traça os caminhos a percorrer por uma sociedade reconciliada e harmonizada na justiça e no amor, antecipadora na história, de modo incoativo e prefigurativo, daqueles «novos céus e ... nova terra, nos quais habitará a justiça» (2Pd 3, 13). e) Uma mensagem para os filhos da Igreja e para a humanidade 83 A primeira destinatária da doutrina social é a comunidade eclesial em todos os seus membros, porque todos têm responsabilidades sociais a assumir. A consciência é interpelada pelo ensinamento social para reconhecer e cumprir os deveres de justiça e de caridade na vida social. Tal ensinamento é luz de verdade moral, que suscita respostas apropriadas segundo a vocação e o ministério próprios de cada cristão. Nas tarefas de evangelização, a saber, de ensinamento, de catequese e de formação, que a doutrina social da Igreja suscita, essa é destinada a todo cristão, segundo as competências, os carismas, os ofícios e a missão de anúncio próprios de cada um[127]. A doutrina social implica, outrossim, responsabilidades referentes à construção, à organização e ao funcionamento da sociedade: obrigações políticas, econômicas, administrativas, vale dizer, de natureza secular, que pertencem aos fiéis leigos, não aos sacerdotes e aos religiosos[128]. Tais responsabilidades competem aos leigos de modo peculiar, em razão da condição secular do seu estado de vida e da índole secular da sua vocação[129]: mediante essas responsabilidades, os leigos põem em prática o ensinamento social e cumprem a sua missão secular da Igreja[130]. 84 Além da destinação, primária e específica, aos filhos da Igreja, a doutrina social tem uma destinação universal. A luz do Evangelho, que a doutrina social reverbera sobre a sociedade, ilumina todos os homens, e cada consciência e inteligência se torna apta a colher a profundidade humana dos significados e dos valores por ela expressos, bem como a carga de humanidade e de humanização das suas normas de ação. De modo que todos, em nome do homem, da sua dignidade una e única, e da sua tutela e promoção na sociedade, todos, em nome do único Deus, Criador e fim último do homem, são destinatários da doutrina social da Igreja[131]. A doutrina social é um ensinamento expressamente dirigido a todos os homens de boa vontade[132] e efetivamente é escutada pelos membros de outras Igrejas e comunidades eclesiais, pelos sequazes de outras tradições religiosas e por pessoas que não pertencem a algum grupo religioso. f) No signo da continuidade e da renovação 85 Orientada pela luz perene do Evangelho e constantemente atenta à evolução da sociedade, a doutrina social da Igreja caracteriza-se pela continuidade e pela renovação[133]. Essa manifesta em primeiro lugar a continuidade de um ensinamento que se remonta aos valores universais que derivam da Revelação e da natureza humana. Por este motivo a doutrina social da Igreja não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias, das várias opiniões: ela é um ensinamento constante, que «se mantém idêntica na sua inspiração de fundo, nos seus “princípios de reflexão”, nos seus “critérios de julgamento”, nas suas basilares “diretrizes de ação” e, sobretudo, na sua ligação vital com o Evangelho do Senhor»[134]. Neste seu núcleo principal e permanente a doutrina social da Igreja atravessa a história, sem sofrer os condicionamentos e não corre o risco da dissolução. Por outro lado, no seu constante voltar-se à história, deixando-se interpelar pelos eventos que nela se produzem, a doutrina social da Igreja manifesta uma capacidade de contínua renovação. A firmeza nos princípios não faz dela um sistema de ensinamentos rígido e inerte, mas um Magistério capaz de abrir-se às coisas novas, sem se desnaturar nelas[135]: um ensinamento sempre novo, «sujeito a necessárias e oportunas adaptações, sugeridas pela mudança das condições históricas e pelo incessante fluir dos acontecimentos, que incidem no desenrolar da vida dos homens e das sociedades»[136]. 86 A doutrina social da Igreja se apresenta assim como um «canteiro» sempre aberto, em que a verdade perene penetra e permeia a novidade contingente, traçando caminhos inéditos de justiça e de paz. A fé não pretende aprisionar num esquema fechado a mutável realidade sócio-política[137]. É verdade antes o contrario: a fé é fermento de novidade e criatividade. O ensinamento que nela sempre se inicia «se desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contato com as situações deste mundo, sob o impulso do Evangelho qual fonte de renovação»[138]. Mãe e Mestra, a Igreja não se fecha nem se retrai em si mesma, mas está sempre exposta, inclinada e voltada para o homem, cujo destino de salvação é a sua própria razão de ser. Ela é entre os homens o ícone vivente do Bom Pastor, que vai buscar e encontrar o homem onde ele se encontra, na condição existencial e histórica do seu viver. Aqui a Igreja se torna para ele encontro com o Evangelho, mensagem de libertação e de reconciliação, de justiça e de paz.
III. A DOUTRINA SOCIAL DO NOSSO TEMPO:
ACENOS HISTÓRICOS a) O início de um novo caminho 87 A locução doutrina social remonta a Pio XI[139] e designa o corpus doutrinal referente à sociedade que, a partir da Encíclica Rerum novarum[140] (1891) de Leão XIII, se desenvolveu na Igreja através do Magistério dos Romanos Pontífices e dos Bispos em comunhão com eles[141]. A solicitude social certamente não teve início com tal documento, porque a Igreja jamais deixou de se interessar pela sociedade; não obstante a Encíclica «Rerum novarum» dá início a um novo caminho: inserindo-se numa tradição plurissecular, ela assinala um novo início e um substancial desenvolvimento do ensinamento em campo social[142]. Na sua contínua atenção ao homem na sociedade, a Igreja acumulou assim um rico patrimônio doutrinal. Ele tem as suas raízes na Sagrada Escritura, especialmente no Evangelho e nos escritos apostólicos, e tomou forma e corpo na doutrina dos Padres da Igreja, dos grandes Doutores da Idade Média, constituindo uma doutrina na qual, mesmo sem pronunciamentos magisteriais explícitos e diretos, a Igreja se foi pouco a pouco reconhecendo. 88 Os eventos de natureza econômica que se deram no século XIX tiveram conseqüências sociais, políticas e culturais lacerantes. Os acontecimentos ligados à revolução industrial subverteram a secular organização da sociedade, levantando graves problemas de justiça e pondo a primeira grande questão social, a questão operária, suscitada pelo conflito entre capital e trabalho. Nesse quadro, a Igreja advertiu a necessidade de intervir de modo novo: as « res novae », constituídas por tais eventos, representavam um desafio ao seu ensinamento e motivavam uma especial solicitude pastoral para com as ingentes massas de homens e mulheres. Era necessário um renovado discernimento da situação, apto a delinear soluções apropriadas para problemas insólitos e inexplorados. b) Da «Rerum novarum» aos nossos dias 89 Em resposta à primeira grande questão social, Leão XIII promulga a primeira encíclica social, a «Rerum novarum»[143]. Ela examina a condição dos trabalhadores assalariados, particularmente penosa para os operários das indústrias, afligidos por uma indigna miséria. A questão operária é tratada segundo a sua real amplitude: é explorada em todas as suas articulações sociais e políticas, para ser adequadamente e avaliada à luz dos princípios doutrinais baseados na Revelação, na lei e na moral natural. A «Rerum novarum» enumera os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo como remédio e expõe, precisando-a e atualizando-a, «a doutrina católica acerca do trabalho, do direito de propriedade, do princípio de colaboração contraposto à luta de classe como meio fundamental para a mudança social, sobre o direito dos fracos, sobre a dignidade dos pobres e sobre as obrigações dos ricos, sobre o aperfeiçoamento da justiça mediante a caridade, sobre o direito a ter associações profissionais»[144]. A «Rerum novarum» tornou-se a «carta magna» da atividade cristã em campo social[145]. O tema central da doutrina social da Encíclica é o da instauração de uma ordem social justa, em vista do qual é mister individuar critérios de juízo que ajudem a avaliar os ordenamentos sócio-políticos existentes e formular linhas de ação para uma sua oportuna transformação. 90 A « Rerum novarum » enfrentou a questão operária com um método que se tornará «um paradigma permanente »[146] para o desenvolvimento da doutrina social. Os princípios afirmados por Leão XIII serão retomados e aprofundados pelas encíclicas sociais sucessivas. Toda a doutrina social poderia ser entendida como uma atualização, um aprofundamento e uma expansão do núcleo originário de princípios expostos na «Rerum novarum». Com este texto, corajoso e de longo alcance, o Papa Leão XIII «conferiu à Igreja quase um “estatuto de cidadania” no meio das variáveis realidades da vida pública»[147] e «escreveu esta palavra decisiva»[148], que se tornou «um elemento permanente da doutrina social da Igreja»[149], afirmando que os graves problemas sociais «só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes»[150] e acrescentando também: «Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte»[151]. 91 No início dos anos Trinta, em seguida à grave crise econômica de 1929, o Papa Pio XI publica a Encíclica «Quadragesimo anno» (1931)[152], comemorativa dos quarenta anos da «Rerum novarum». O Papa relê o passado à luz de uma situação econômico-social em que, à industrialização se ajuntara a expansão do poder dos grupos financeiros, em âmbito nacional e internacional. Era o período pós-bélico, em que se iam afirmando na Europa os regimes totalitários, enquanto se exacerbava a luta de classe. A encíclica adverte acerca da falta de respeito à liberdade de associação e reafirma os princípios de solidariedade e de colaboração para superar as antinomias sociais. As relações entre capital e trabalho devem dar-se sob o signo da colaboração[153]. A «Quadragesimo anno» reafirma o princípio segundo o qual o salário deve ser proporcionado não só às necessidades do trabalhador, mas também às de sua família. O Estado, nas relações com o setor privado, deve aplicar o princípio de subsidiariedade, princípio que se tornará um elemento permanente da doutrina social. A encíclica refuta o liberalismo entendido como concorrência ilimitada das forças econômicas, mas reconfirma o direito à propriedade privada, evocando-lhe a sua função social. Em uma sociedade por reconstruir desde as bases econômicas, que se torna ela mesma e toda inteira «a questão» a enfrentar, «Pio XI sentiu o dever e a responsabilidade de promover um maior conhecimento, uma mais exata interpretação e uma urgente aplicação da lei moral reguladora das relações humanas... para superar o conflito de classes e estabelecer uma nova ordem social baseada na justiça e na caridade»[154]. 92 Pio XI não deixou de elevar a voz contra os regimes totalitários que durante o seu pontificado se afirmaram na Europa. Já no dia 29 de Junho de 1931 Pio XI havia protestado contra os abusos do regime totalitário fascista na Itália com a Encíclica «Non abbiamo bisogno»[155]. Em 1937 publicou a Encíclica «Mit brennender Sorge», sobre a situação da Igreja Católica no Reich Germânico (14 de Março de 1937)[156]. O texto da «Mit brennender Sorge» foi lido do púlpito em todas as Igrejas, depois de ter sido distribuído no máximo segredo. A encíclica aparecia após anos de abusos e de violências e fora expressamente pedida a Pio XI pelos bispos alemães, após as medidas cada vez mais coativas e repressivas tomadas pelo Reich em 1936, particularmente em relação aos jovens, obrigados a inscrever-se na «Juventude hitlerista». O Papa dirige-se diretamente aos sacerdotes e aos religiosos, aos fiéis leigos, para os incentivar e chamar à resistência, enquanto uma verdadeira paz entre a Igreja e o Estado não se restabelecesse. Em 1938, perante a difusão do anti-semitismo, Pio XI afirmou: «Somos espiritualmente semitas»[157]. Com a Carta encíclica «Divini Redemptoris», sobre o comunismo ateu e sobre a doutrina social cristã (19 de Março de 1937)[158], Pio XI criticou de modo sistemático o comunismo, definido como «intrinsecamente perverso»[159], e indicou como meios principais para pôr remédio aos males por ele produzidos, a renovação da vida cristã, o exercício da caridade evangélica, o cumprimento dos deveres de justiça no plano interpessoal e social, em vista do bem comum, a institucionalização de corpos profissionais e interprofissionais. 93 As Radiomensagens natalinas de Pio XII[160], juntamente com outros importantes pronunciamentos em matéria social, aprofundam a reflexão magisterial sobre uma nova ordem social, governado pela moral e pelo direito e fundado na justiça e na paz. Durante o seu pontificado, Pio XII atravessou os anos terríveis da Segunda Guerra Mundial e os tempos difíceis da reconstrução. Ele não publicou encíclicas sociais, mas manifestou constantemente, em numerosos contextos, a sua preocupação com a ordem internacional subvertida: «Nos anos da guerra e do após-guerra, o Magistério social de Pio XII representou para muitos povos de todos os continentes e para milhões de crentes e não crentes a voz da consciência universal (...). Com a sua autoridade moral e o seu prestígio, Pio XII levou a luz da sabedoria cristã a inumeráveis homens de todas as categorias e nível social»[161]. Uma das características fundamentais dos pronunciamentos de Pio XII está na importância dada à conexão entre moral e direito. O Papa insiste sobre a noção de direito natural, como alma de um ordenamento social concretamente operante quer no plano nacional quer no plano internacional. Um outro aspecto importante do ensinamento de Pio XII está na atenção dada às categorias profissionais e empresariais, chamadas a concorrer em plena consciência para a consecução do bem comum: «Pela sua sensibilidade e inteligência em detectar os “sinais dos tempos”, Pio XII pode considerar-se o precursor imediato do Concílio Vaticano II e do ensinamento social dos Papas que lhe sucederam»[162]. 94 Os anos Sessenta abrem horizontes promissores: o reinício após as devastações da guerra, a descolonização da África, os primeiros tímidos sinais de um desgelo nas relações entre os dois blocos, americano e soviético. Neste clima, o beato João XXIII lê em profundidade os «sinais dos tempos»[163]. A questão social se está universalizando e abarca todos os países: ao lado da questão operária e da revolução industrial, se delineiam os problemas da agricultura, das áreas em via de desenvolvimento, do incremento demográfico e os referentes à necessidade de cooperação econômica mundial. As desigualdades, antes advertidas no interior das nações, aparecem no âmbito internacional e fazem emergir cada vez mais a situação dramática em que se encontra o Terceiro Mundo. João XXIII, na Encíclica «Mater et Magistra»[164] (1961), «pretende atualizar os documentos já conhecidos e avançar no sentido de comprometer toda a comunidade cristã»[165]. As palavras-chave da encíclica são comunidade e socialização[166]: a Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a colaborar com todos os homens para construir uma autêntica comunhão. Por tal via o crescimento econômico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas poderá promover também a sua dignidade. 95 Com a Encíclica « Pacem in terris »[167], João XXIII põe de realce o tema da paz, numa época marcada pela proliferação nuclear. A «Pacem in terris» contém, ademais, uma primeira aprofundada reflexão da Igreja sobre os direitos; é a Encíclica da paz e da dignidade humana. Ela prossegue e completa o discurso da «Mater et Magistra » e, na direção indicada por Leão XIII, sublinha a importância da colaboração entre todos: é a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a «todas as pessoas de boa vontade»[168], que são chamados a uma «imensa tarefa de recompor as relações da convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade»[169]. A «Pacem in terris» se detém sobre os poderes públicos da comunidade mundial, chamados a enfrentar «os problemas de conteúdo econômico, social, político ou cultural, (...) da alçada do bem comum universal»[170]. No décimo aniversário da «Pacem in terris», o Cardeal Maurice Roy, Presidente da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, enviou a Paulo VI uma Carta juntamente com um documento com uma série de reflexões sobre a capacidade do ensinamento da Encíclica joanina de iluminar os problemas novos relacionados com a promoção da paz[171]. 96 A Constituição pastoral «Gaudium et spes»[172] (1965), do Concílio Vaticano II, constitui uma significativa resposta da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo. Na citada Constituição, «em sintonia com a renovação eclesiológica, se reflete numa nova concepção de ser comunidade dos crentes e povo de Deus. Ela suscitou, portanto, novo interesse pela doutrina contida nos documentos precedentes acerca do testemunho e da vida dos cristãos, como caminhos autênticos para tornar visível a presença de Deus no mundo»[173]. A «Gaudium et spes» traça o rosto de uma Igreja «verdadeiramente solidária com o gênero humano e com a sua história»[174], que caminha juntamente com a humanidade inteira e experimenta com o mundo a mesma sorte terrena, mas que ao mesmo tempo «é como que o fermento e a alma da sociedade humana, destinada a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus»[175]. A «Gaudium et spes» aborda organicamente os temas da cultura, da vida econômico-social, do matrimônio e da família, da comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica cristã e da missão da Igreja. Tudo é considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa: «a única criatura que Deus quis por se mesma»[176]. A sociedade, as suas estruturas e o seu desenvolvimento não podem ser queridos por si mesmos mas para o «aperfeiçoamento da pessoa humana»[177]. Pela primeira vez o Magistério solene da Igreja, no seu mais alto nível, se exprime tão amplamente acerca dos diversos aspectos temporais da vida cristã: «Deve reconhecer-se que a atenção da Constituição em relação às mudanças sociais, psicológicas, políticas, econômicas, morais e religiosas estimulou cada vez mais, no último vintênio, a preocupação pastoral da Igreja pelos problemas dos homens e o diálogo com o mundo»[178]. 97 Um outro documento do Concílio Vaticano II muito importante no «corpus» da doutrina social da Igreja é a declaração «Dignitatis humanae»[179] (1965), no qual se proclama o direito à liberdade religiosa. O documento trata o tema em dois capítulos. No primeiro, de caráter geral, se afirma que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana e afirmam que ele deve ser reconhecido e sancionado como direito civil no ordenamento jurídico da sociedade. O segundo capítulo aborda o tema à luz da Revelação esclarecendo as suas implicações pastorais, recordando tratar-se de um direito que concerne não somente às pessoas individualmente consideradas, ma também às diversas comunidades. 98 «O desenvolvimento é o novo nome da paz»[180] proclama solenemente Paulo VI na Encíclica «Populorum progressio»[181] (1967), que pode ser considerada uma amplificação do capítulo sobre a vida econômico-social da «Gaudium et spes», com a introdução porém de algumas novidades significativas. Em particular ela traça as coordenadas de um desenvolvimento integral do homem e de um desenvolvimento solidário da humanidade: «duas temáticas estas que devem considerar-se como eixos à volta dos quais se estrutura o tecido da encíclica. Querendo convencer os destinatários da urgência de uma ação solidária, o Papa apresenta o desenvolvimento como “a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” e especifica as suas características»[182]. Esta passagem não está circunscrita às dimensões meramente econômicas e técnicas, mas implica para cada pessoa a aquisição da cultura, o respeito da dignidade dos outros, o reconhecimento «dos valores supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles »[183]. O desenvolvimento favorável todos responde a uma exigência de justiça em escala mundial que garanta uma paz planetária e torne possível a realização de «um humanismo total»[184], governado pelos valores espirituais. 99 Nesta perspectiva, Paulo VI instituiu, em 1967, a Pontifícia Comissão «Justitia et Pax», realizando um voto dos Padres Conciliares, para os quais é «muito oportuna a criação de um organismo da Igreja universal, com o fim de despertar a comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões indigentes e a justiça social entre as nações»[185]. Por iniciativa de Paulo VI, a começar de 1968, a Igreja celebra no primeiro dia do ano o Dia Mundial da Paz. O mesmo Pontífice dá início à feliz tradição das Mensagens que se ocupam do tema de cada Dia Mundial da Paz, acrescendo assim o «corpus» da doutrina social. 100 No início dos anos Setenta, num clima turbulento de contestação fortemente ideológica, Paulo VI retoma a mensagem social de Leão XIII e a atualiza, por ocasião do octogésimo aniversário da «Rerum novarum», com a Carta apostólica «Octogesima adveniens»[186]. O Papa reflete sobre a sociedade pós-industrial com todos os seus complexos problemas salientando a insuficiência das ideologias para responder a tais desafios: a urbanização, a condição juvenil, a condição da mulher, o desemprego, as discriminações, a emigração, o incremento demográfico, o influxo dos meios de comunicação social, o ambiente natural. 101 Noventa anos depois da «Rerum novarum» João Paulo II dedica a Encíclica «Laborem exercens »[187] ao trabalho: bem fundamental para a pessoa, fator primário da atividade econômica e chave de toda a questão social. A «Laborem exercens » delineia uma espiritualidade e uma ética do trabalho, no contexto de uma profunda reflexão teológica e filosófica. O trabalho não deve ser entendido somente em sentido objetivo e material, mas há que se levar em conta a sua dimensão subjetiva, enquanto atividade que exprime sempre a pessoa. Além de ser o paradigma decisivo da vida social, o trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização a vocação natural e sobrenatural da pessoa. 102. Com a Encíclica «Sollicitudo rei socialis»[188], João Paulo II comemora o vigésimo aniversário da «Populorum progressio» e aborda novamente o tema do desenvolvimento, para sublinhar dois dados fundamentais: «por um lado, a situação dramática do mundo contemporâneo, sob o aspecto do desenvolvimento que falta no Terceiro Mundo, e por outro lado, o sentido, as condições e as exigências dum desenvolvimento digno do homem»[189]. A Encíclica introduz a, diferença entre progresso e desenvolvimento, e afirma que «o verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação dos bens e dos serviços, isto é, àquilo que se possui, mas deve contribuir para a plenitude do “ser” do homem. Deste modo pretende-se delinear com clareza a natureza moral do verdadeiro desenvolvimento»[190]. João Paulo II, evocando o moto do pontificado de Pio XII, «Opus iustitiae pax», a paz como fruto da justiça, comenta: «Hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax, a paz como fruto da solidariedade»[191]. 103 No centésimo aniversário da «Rerum novarum», João Paulo II promulga a sua terceira encíclica social, a «Centesimus annus»[192], da qual emerge a continuidade doutrinal de cem anos de Magistério social da Igreja. Retomando um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política, que fora o tema central da Encíclica precedente, o Papa escreve: «o princípio, que hoje designamos de solidariedade ... várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome “amizade”...; desde Pio XI é designado pela expressão mais significativa “caridade social”, enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das múltiplas dimensões atuais da questão social, falava de “civilização do amor”»[193]. João Paulo II realça como o ensinamento social da Igreja corre ao longo do eixo da reciprocidade entre Deus e o homem: reconhecer a Deus em cada homem e cada homem em Deus é a condição de um autêntico desenvolvimento humano. A análise articulada e aprofundada das «res novæ», e especialmente a grande guinada de 1989, com a derrocada do sistema soviético, contém um apreço pela democracia e pela economia livre, no quadro de uma indispensável solidariedade. c) À luz e sob o impulso do Evangelho 104 Os documentos aqui evocados constituem as pedras fundamentais do caminho da doutrina social da Igreja dos tempos de Leão XIII aos nossos dias. Esta resenha sintética alongar-se-ia de muito se se levassem em conta todos os pronunciamentos motivados, mais do que por um tema específico, pela «preocupação pastoral de propor à comunidade cristã e a todos os homens de boa vontade os princípios fundamentais, os critérios universais e as orientações idôneas para sugerir as opções de fundo e a praxe coerente para cada situação concreta»[194]. Na elaboração e no ensinamento desta doutrina, a Igreja foi e é animada por intentos não teoréticos, mas pastorais, quando se encontra diante das repercussões das mutações sociais sobre os seres humanos individualmente tomados, sobre multidões de homens e mulheres, sobre a sua mesma dignidade humana, nos contextos em que «se procura uma organização temporal mais perfeita, sem que este progresso seja acompanhado de igual desenvolvimento espiritual»[195]. Por estas razões, se constituiu e desenvolveu a doutrina social: «um corpo doutrinal atualizado, que se articula à medida em que a Igreja, dispondo da plenitude da Palavra revelada por Cristo Jesus e com a assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14, 16. 26; 16, 13-15), vai lendo os acontecimentos, enquanto eles se desenrolam no decurso da história»[196].
CAPÍTULO III
A PESSOA E OS SEUS DIREITOS
I. DOUTRINA SOCIAL E PRINCÍPIO PERSONALISTA
105 A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem do próprio Deus vivo; imagem que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profundamente plena explicação de si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, revelador de Deus ao homem e do homem a si mesmo. A este homem, que recebeu do próprio Deus uma incomparável e inalienável dignidade, a Igreja se volta e lhe rende o serviço mais alto e singular, chamando-o constantemente à sua altíssima vocação, para que dela seja cada vez mais consciente e digno. Cristo, o Filho de Deus, «com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada homem»[197]; por isso a Igreja reconhece como sua tarefa fundamental fazer com que tal união se possa continuamente atuar e renovar. Em Cristo Senhor, a Igreja indica e entende, ela mesma por primeiro, percorrer a via do homem[198], que convida a reconhecer em toda e qualquer pessoa, próxima ou distante, conhecido ou desconhecido, e sobretudo no pobre e em quem sofre, um irmão «pelo qual Cristo morreu» (1 Cor 8,11; Rm 14, 15)[199].106 Toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana. De tal fato a Igreja sempre soube, amiúde e de muitos modos, fazer-se intérprete autorizada, reconhecendo e afirmando a centralidade da pessoa humana em todo âmbito e manifestação da sociabilidade: «A sociedade humana é objeto da doutrina social da Igreja, visto que ela não se encontra nem fora nem acima dos homens socialmente unidos, mas existe exclusivamente neles e, portanto, para eles»[200]. Este importante reconhecimento encontra expressão na afirmação de que «longe de ser o objeto e o elemento passivo da vida social», o homem, pelo contrário, «é, e dela deve ser e permanecer, o sujeito, o fundamento e o fim»[201]. Nele, portanto, tem origem a vida social, a qual não pode renunciar a reconhecê-lo seu sujeito ativo e responsável e a ele deve ser finalizada toda e qualquer modalidade expressiva da sociedade. 107 O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração e a alma do ensinamento social católico[202]. Toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana[203]. Mediante as multíplices expressões dessa consciência, a Igreja entendeu, antes de tudo, tutelar a dignidade humana perante toda tentativa de repropor imagens redutivas e distorcidas; ademais, ela tem repetidas vezes denunciado as muitas violações de tal dignidade. A história atesta que da trama das relações sociais emergem algumas dentre as mais amplas possibilidades de elevação do homem, mas aí se aninham também as mais execráveis desconsiderações da sua dignidade. II. A PESSOA HUMANA «IMAGO DEI»a) Criatura à imagem de Deus 108. A mensagem fundamental da Sagrada Escritura anuncia que a pessoa humana é criatura de Deus (cf. Sal 139, 14-18) e identifica o elemento que a caracteriza e distingue no seu ser à imagem de Deus: «Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher» (Gên 1, 27). Deus põe a criatura humana no centro e no vértice da criação: no homem (em hebraico «Adam»), plasmado com a terra («adamah»), Deus insufla-lhe pelas narinas o hálito da vida (cf. Gên 2, 7). Portanto, «por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com o seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar»[204]. 109 A semelhança com Deus põe em luz o fato de que a essência e a existência do homem são constitucionalmente relacionadas com Deus do modo mais profundo[205]. É uma relação que existe por si mesma, não começa, por assim dizer, num segundo momento e não se acrescenta a partir de fora. Toda a vida do homem é uma pergunta e uma busca de Deus. Esta relação com Deus pode ser tanto ignorada como esquecida ou removida, mas nunca pode ser eliminada. Dentre todas as criaturas, com efeito, somente o homem é «“capaz”de Deus» («homo est Dei capax »)[206]. O ser humano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, que somente na relação pode viver e exprimir-se e que tende naturalmente a Ele[207]. 110 A relação entre Deus e o homem reflete-se na dimensão relacional e social da natureza humana. O homem, com efeito, não é um ser solitário, mas «por sua natureza íntima um ser social» e «sem relações com os outros não pode nem viver nem desenvolver seus dotes»[208]. Em relação a isso é muito significativo o fato de que Deus criou o ser humano como homem e mulher (cf. Gn 1, 27)[209]. Muito eloqüente é, efetivamente, «aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20). Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflete-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa»[210]. 111 O homem e a mulher têm a mesma dignidade e são de igual nível e valor[211], não só porque ambos, na sua diversidade, são imagem de Deus, mas ainda mais profundamente porque é imagem de Deus o dinamismo de reciprocidade que anima o nós do casal humano[212]. Na relação de comunhão recíproca, homem e mulher realizam-se a si próprios profundamente, redescobrindo-se como pessoas através do dom sincero de si[213]. Seu pacto de união é apresentado nas Sagradas Escrituras como uma imagem do Pacto de Deus com os homens (cf. Os 1-3; Is 54; Ef 5, 21-33) e, ao mesmo tempo, como um serviço à vida[214]. O casal humano pode participar, assim, da criatividade de Deus: «Deus os abençoou: “Frutificai, disse Ele, e multiplicai-vos, enchei a terra”» (Gên 1, 28). 112 O homem e a mulher estão em relação com os outros antes de tudo como guardiães de sua vida[215]. « E ao homem pedirei conta da alma do homem, seu irmão » (Gn 9, 5), reafirma Deus a Noé após o dilúvio. Nesta perspectiva, a relação com Deus exige que se considere a vida do homem sagrada e inviolável[216]. O quinto mandamento «Não matarás» (Ex 20, 13; Dt 5, 17) tem valor porque só Deus é Senhor da vida e da morte[217]. O respeito que se deve à inviolabilidade e à integridade da vida física tem o seu cume no mandamento positivo: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18), com que Jesus Cristo obriga a responsabilizar-se pelo próximo (cf. Mt 22, 37-40; Mc 12, 29-31; Lc 10, 27-28). 113 Com esta particular vocação para a vida, o homem e a mulher se encontram também diante de todas as outras criaturas. Eles podem e devem submetê-los ao próprio serviço e usufruir delas, mas o seu senhorio sobre o mundo exige o exercício da responsabilidade, não é uma liberdade de desfrute arbitrário e egoístico. Toda a criação, na verdade, tem o valor de «coisa boa » (cf. Gên 1, 10.12.18.21.25) aos olhos de Deus, que é o seu Autor. O homem deve descobrir e respeitar este valor: é este um desafio maravilhoso à sua inteligência, que o deve elevar como uma asa[218] rumo à contemplação da verdade de todas as suas criaturas, ou seja, daquilo que Deus viu de bom nelas. O Livro da Gênese ensina, efetivamente, que o domínio do homem sobre o mundo consiste em dar nome às coisas (cf. Gn 2, 19-20): com a denominação o homem deve reconhecer as coisas por aquilo que são e estabelecer com cada uma delas uma relação de responsabilidade[219]. 114 O homem está em relação também consigo mesmo e pode refletir sobre si próprio. As Sagradas Escrituras falam, nesse sentido, do coração do homem. O coração designa precisamente a interioridade espiritual do homem, ou seja, aquilo que o distingue de todas as outras criaturas: com efeito, «todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração [dos homens], a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro» (Ecl 3, 11). O coração indica, ao fim e ao cabo, as faculdades espirituais mais próprias do homem, que são suas prerrogativas, enquanto criado à imagem do seu Criador: a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre[220]. Quando escuta a aspiração profunda do seu coração, o homem não pode deixar de fazer próprias as palavras de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós »[221]. b) O drama do pecado 115 A admirável visão da criação do homem por parte de Deus é incindível do quadro dramático do pecado das origens. Com uma afirmação lapidar o apóstolo Paulo sintetiza a narração da queda do homem contida nas primeiras páginas da Bíblia: «por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte» (Rom 5, 12). O homem, contra a proibição de Deus, se deixa seduzir pela serpente e deita a mão à árvore da vida caindo em poder da morte. Com esse gesto o homem tenta forçar o seu limite de criatura, desafiando Deus, único Senhor do homem e fonte da vida. Um pecado de desobediência (cf. Rm 5, 19) que separa o homem de Deus[222]. Da Revelação sabemos que Adão, o primeiro homem, com a transgressão do mandamento de Deus, perde a santidade e a justiça em que estava constituído, recebidas não somente para si, mas para toda a humanidade: « ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais»[223]. 116 Na raiz das lacerações pessoais e sociais, que ofendem em vária medida o valor e a dignidade da pessoa humana, encontra-se uma ferida no íntimo do homem: «À luz da fé chamamos-lhe pecado, começando pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma herança recebida dos primeiros pais, até aos pecados que cada um comete, abusando da própria liberdade»[224]. A conseqüência do pecado, enquanto ato de separação de Deus, é precisamente a alienação, isto é, a ruptura do homem não só com Deus, como também consigo mesmo, com os demais homens e com o mundo circunstante: «a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão entre os irmãos. Na descrição do “primeiro pecado”, a ruptura com Javé espedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Gênesis que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro; depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. Segundo a narração dos fatos de Babel, a conseqüência do pecado é a desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na sua forma social»[225]. Refletindo sobre o mistério do pecado não se pode deixar de considerar esta trágica concatenação de causa e de efeito. 117 O mistério do pecado se compõe de uma dúplice ferida, que o pecador abre no seu próprio flanco e na relação com o próximo. Por isso se pode falar de pecado pessoal e social: todo o pecado é pessoal sob um aspecto; sob um outro aspecto, todo o pecado é social, enquanto e porque tem também conseqüências sociais. O pecado, em sentido verdadeiro e próprio, é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de liberdade de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade, mas a cada pecado se pode atribuir indiscutivelmente o caráter de pecado social, tendo em conta o fato de que «em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros»[226]. Não é todavia legítima e aceitável uma acepção do pecado social que, mais ou menos inconscientemente, leve a diluir e quase a eliminar a sua componente pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais. No fundo de cada situação de pecado encontra-se sempre a pessoa que peca. 118 Alguns pecados, ademais, constituem, pelo próprio objeto, uma agressão direta ao próximo. Tais pecados, em particular, se qualificam como pecados sociais. É igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crer em Deus e de adorá-l’O; todo o pecado contra a dignidade e a honra do próximo. Social é todo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Enfim, é social aquele pecado que «diz respeito às relações entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e paz entre os indivíduos, os grupos, os povos»[227]. 119 As conseqüências do pecado alimentam as estruturas de pecado, que se radicam no pecado pessoal e, portanto, estão sempre coligadas aos atos concretos das pessoas, que as introduzem, consolidam e tornam difíceis de remover. E assim se reforçam, se difundem e se tornam fontes de outros pecados, condicionando a conduta dos homens[228]. Trata-se de condicionamentos e obstáculos que duram muito mais do que as ações feitas no breve arco da vida de um indivíduo e que interferem também no processo de desenvolvimento dos povos, cujo retardo ou lentidão devem ser julgados também sob este aspecto[229]. As ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as estruturas a que elas induzem parecem ser hoje sobretudo duas: «por outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: “a qualquer preço”»[230]. c) Universalidade do pecado e universalidade da salvação 120 A doutrina do pecado original, que ensina a universalidade do pecado, tem uma importância fundamental: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós» (1 Jo 1, 8). Esta doutrina induz o homem a não permanecer na culpa e a não tomá-la com leviandade, buscando continuamente bodes expiatórios nos outros homens e justificações no ambiente, na hereditariedade, nas instituições, nas estruturas e nas relações. Trata-se de um ensinamento que desmascara tais engodos. A doutrina da universalidade do pecado, todavia, não deve ser desligada da consciência da universalidade da salvação em Jesus Cristo. Se dela isolada, gera uma falsa angústia do pecado e uma consideração pessimista do mundo e da vida, que induz a desprezar as realizações culturais e civis dos homens. 121 O realismo cristão vê os abismos do pecado, mas na luz da esperança, maior do que todo e qualquer mal, dada pelo ato redentor de Cristo que destruiu o pecado e a morte (cf. Rm 5, 18-21; 1 Cor 15, 56-57): «N’Ele, Deus reconciliou o homem consigo»[231]. Cristo, Imagem de Deus (cf. 2 Cor 4, 4; Col 1, 15), é Aquele que ilumina plenamente e leva ao cumprimento a imagem e semelhança de Deus no homem. A Palavra que se fez homem em Jesus Cristo é desde sempre a vida e a luz do homem, luz que ilumina todo homem (cf. Jo 1, 4.9). Deus quer no único mediador Jesus Cristo, Seu Filho, a salvação de todos os homens (cf. 1 Tm 2,4-5). Jesus é, ao mesmo tempo, o Filho de Deus e o novo Adão, ou seja, o novo homem (cf. 1 Cor 15, 47-49; Rm 5,14): «Cristo, novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e do seu amor, manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade da sua vocação»[232]. N’Ele fomos por Deus predestinados para sermos «conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos» (Rm 8,29). 122 A realidade nova que Jesus nos dá não se enxerta na natureza humana, não se lhe acresce a partir de fora: é, antes, aquela realidade de comunhão com o Deus trinitário para a qual os homens desde sempre são orientados no mais profundo do seu ser, graças à sua semelhança criatural com Deus; mas trata-se também de uma realidade que eles não podem alcançar somente com as próprias forças. Mediante o Espírito de Jesus Cristo, Filho encarnado de Deus, no qual tal realidade de comunhão é já realizada de modo singular, os homens são acolhidos como filhos de Deus (cf. Rm 8, 14-17; Gal 4,4-7). Por meio de Cristo, participamos da natureza de Deus, que se doa infinitamente mais « do que tudo quanto pedimos ou entendemos» (Ef 3,20). O que os homens já receberam não é senão uma antecipação ou um « penhor » (2 Cor 1, 22; Ef 1,14) daquilo que obterão completamente somente diante de Deus, visto «face a face» (1 Cor 13,12), ou seja, um penhor da vida eterna: « Ora, a vida eterna consiste em que te conheçam a Ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste» (Jo 17, 3). 123 A universalidade desta esperança inclui, ademais dos homens e das mulheres de todos os povos, também o céu e a terra: «Que os céus, das alturas, derramem o seu orvalho, que as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e brote a felicidade e ao mesmo tempo faça germinar a justiça! Sou eu, o Senhor, a causa de tudo isso» (Is 45, 8). Segundo o Novo Testamento, com efeito, a criação inteira juntamente com toda a humanidade aguardam o Redentor: submetida à caducidade, avança plena de esperança, entre gemidos e dores de parto, esperando ser libertada da corrupção (cf. Rm 8, 18-22).
III. A PESSOA HUMANA E OS SEUS VÁRIOS PERFIS
124 Fazendo tesouro da admirável mensagem bíblica, a doutrina social da Igreja se detém antes de tudo sobre as principais e incindíveis dimensões da pessoa humana, de modo a poder captar os matizes mais relevantes do seu mistério e da sua dignidade. Com efeito não faltaram no passado, e aparecem ainda dramaticamente no cenário da história atual, multíplices concepções redutivas, de caráter ideológico ou devidas simplesmente a formas difusas do costume e do pensamento, referentes à consideração do homem, da sua vida e dos seus destinos, unificadas pela tentativa de ofuscar-lhe a imagem através da enfatização de uma só das suas características, em detrimento das demais[233]. 125 A pessoa não pode jamais ser pensada unicamente como absoluta individualidade, edificada por si mesma ou sobre si mesma, como se as suas características próprias não dependessem senão de si mesmas. Nem pode ser pensada como pura célula de um organismo disposto a reconhecer-lhe, quando muito, um papel funcional no interior de um sistema. As concepções redutivas da plena verdade do homem foram já freqüentes vezes objeto da solicitude social da Igreja, que não deixou de elevar a sua voz contra estas e outras perspectivas, drasticamente redutivas, preocupando-se, antes, em anunciar que «os indivíduos não nos aparecem desligados entre si quais grãos de areia, mas sim unidos por relações (...) orgânicas, harmoniosas e mútuas»[234] e que, vice-versa, o homem não pode ser considerado «simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social»[235], cuidando destarte que à afirmação do primado da pessoa não correspondesse uma visão individualista ou massificada. 126 A fé cristã, ao mesmo tempo em que convida a procurar em toda a parte o que é bom e digno do homem (cf. 1 Tes 5,21), «situa-se num plano superior e, algumas vezes, oposto ao das ideologias, na medida em que ela reconhece Deus, transcendente e criador, o qual interpela o homem como liberdade responsável, através de toda a gama do criado»[236]. A doutrina social ocupa-se de diferentes dimensões do mistério do homem, que exige ser abordado «na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social»[237], com uma atenção específica, de sorte a consentir a sua valoração mais pontual. A) A UNIDADE DA PESSOA 127 O homem foi criado por Deus como unidade de alma e corpo[238]. «A alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este existe como um todo — “corpore et anima unus” — enquanto pessoa. Estas definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios atos morais»[239]. 128 Mediante a sua corporeidade o homem unifica em si os elementos do mundo material, «que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor»[240]. Esta dimensão permite ao homem inserir-se no mundo material, lugar da sua realização e da sua liberdade, não como numa prisão ou num exílio. Não é lícito desprezar a vida corporal; o homem, ao contrário, «deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia»[241]. A dimensão corporal, contudo, após a ferida original, faz com que o homem experimente as rebeliões do corpo e as perversas inclinações do coração, sobre as quais ele deve sempre vigiar para não se deixar escravizar e para não se tornar vítima de uma visão puramente terrena da vida. Com a espiritualidade o homem supera a totalidade das coisas e penetra na estrutura espiritual mais profunda da realidade. Quando se volta ao seu coração, isto é, quando reflete sobre o próprio destino, o homem se descobre superior ao mundo material, pela sua dignidade única de interlocutor de Deus, sob cujo olhar decide a sua própria sorte. Ele, na sua vida interior, transcende o universo sensível e material, reconhece «em si mesmo a alma espiritual e imortal» e sabe não ser «somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana»[242]. 129 O homem, portanto, tem duas diferentes características: é um ser material, ligado a este mundo mediante o seu corpo, e um ser espiritual, aberto à transcendência e à descoberta de «uma verdade mais profunda», em razão de sua inteligência, com a qual participa «da luz da inteligência divina»[243]. A Igreja afirma: «A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza»[244]. Nem o espiritualismo, que despreza a realidade do corpo, nem o materialismo, que considera o espírito mera manifestação da matéria, dão conta da natureza complexa, da totalidade e da unidade do ser humano. a) Aberta à transcendência 130 À pessoa humana pertence a abertura à transcendência: o homem é aberto ao infinito e a todos os seres criados. É aberto antes de tudo ao infinito, isto é, a Deus, porque com a sua inteligência e a sua vontade se eleva acima de toda a criação e de si mesmo, torna-se independente das criaturas, é livre perante todas as coisas criadas e tende à verdade e ao bem absolutos. É aberto também ao outro, aos outros homens e ao mundo, porque somente enquanto se compreende em referência a um tu pode dizer eu. Sai de si, da conservação egoística da própria vida, para entrar numa relação de diálogo e de comunhão com o outro. A pessoa é aberta à totalidade do ser, ao horizonte ilimitado do ser. Tem em si a capacidade de transcender cada objeto particular que conhece, efetivamente, graças a esta sua abertura ao ser sem confins. A alma humana é, num certo sentido, pela sua dimensão cognoscitiva, todas as coisas: «todas as coisas imateriais gozam de uma certa infinidade, enquanto abraçam tudo, ou porque se trata da essência de uma realidade espiritual que serve de modelo e semelhança de tudo, como é no caso de Deus, ou porque possui a semelhança de tudo, ou em ato como nos Anjos, ou em potência como nas almas»[245]. b) Única e irrepetível 131 O homem existe como ser único e irrepetível, existe com « eu», capaz de autocompreender-se, de autopossuir-se, de autodeterminar-se. A pessoa humana é um ser inteligente e consciente, capaz de refletir sobre si mesma e, portanto, de ter consciência dos próprios atos. Não são, porém, a inteligência, a consciência e a liberdade a definir a pessoa, mas é a pessoa que está na base dos atos de inteligência, de consciência, de liberdade. Tais atos podem mesmo faltar, sem que por isso o homem cesse de ser pessoa. A pessoa humana há de ser sempre compreendida na sua irrepetível e ineliminável singularidade. O homem existe, com efeito, antes de tudo como subjetividade, como centro de consciência e de liberdade, cuja história única e não comparável com nenhuma outra expressa a sua irredutibilidade a toda e qualquer tentativa de constrangê-lo dentro de esquemas de pensamento ou sistemas de poder, ideológicos ou não. Isto impõe, antes de tudo, a exigência não somente do simples respeito por parte de todos, e especialmente das instituições políticas e sociais e dos seus responsáveis para com cada homem desta terra, mas bem mais, isto comporta que o primeiro compromisso de cada um em relação ao outro e sobretudo destas mesmas instituições, seja precisamente a promoção do desenvolvimento integral da pessoa. c) O respeito da dignidade humana 132 Uma sociedade justa pode ser realizada somente no respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Esta representa o fim último da sociedade, que a ela é ordenada: «Também a ordem social e o seu progresso devem subordinar-se constantemente ao bem da pessoa, visto que a ordem das coisas deve submeter-se à ordem pessoal e não o contrário»[246]. O respeito pela dignidade da pessoa não pode absolutamente prescindir da obediência ao princípio de considerar «o próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente»[247]. É necessário, portanto, que todos os programas sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado de cada ser humano[248]. 133 Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao seu mesmo progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente em Deus e em Seu projeto salvífico: efetivamente o homem, na sua interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si mesma[249]. Por esta razão nem a sua vida, nem o desenvolvimento do seu pensamento, nem os seus bens, nem os que compartilham as sua história pessoal e familiar, podem ser submetidos a injustas restrições no exercício dos próprios direitos e da própria liberdade. A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro. È necessário portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para que toda a restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que seja garantida a efetiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo isto, uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, como sujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamente com a comunidade de que faz parte. 134 As autênticas transformações sociais são efetivas e duradouras somente se fundadas sobre mudanças decididas da conduta pessoal. Nunca será possível uma autêntica moralização da vida social, senão a partir das pessoas e em referência a elas: efetivamente: «o exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa»[250]. Às pessoas cabe evidentemente o desenvolvimento daquelas atitudes morais fundamentais em toda a convivência que se queira dizer verdadeiramente humana (justiça, honestidade, veracidade, etc.), que de modo algum poderá ser simplesmente esperada dos outros ou delegada às instituições. A todos, e de modo particular àqueles que de qualquer modo detêm responsabilidades políticas, jurídicas ou profissionais em relação aos outros, incumbe o dever de ser consciência vígil da sociedade e, eles mesmos por primeiro, ser testemunhas de uma convivência civil e digna do homem. C) A LIBERDADE DA PESSOA a) Valor e limites da liberdade 135 O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como sinal altíssimo da Sua imagem[251]: «Deus quis “deixar o homem nas mãos do seu desígnio” (cf. Eclo 15, 14), para que ele procure espontaneamente o seu Criador e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e bem-aventurada perfeição. A dignidade humana exige, portanto, que o homem atue segundo a sua consciente e livre escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por um impulso interior cego, ou por mera coação externa»[252]. O homem justamente aprecia a liberdade e com paixão a busca: justamente quer e deve formar e guiar, de sua livre iniciativa, a sua vida pessoal e social, assumindo por ela plena responsabilidade[253]. A liberdade, com efeito, não só muda convenientemente o estado de coisas externas ao homem, mas determina o crescimento do seu ser pessoa, mediante escolhas conformes ao verdadeiro bem[254]: desse modo, o homem gera-se a si próprio, é pai do próprio ser[255], constrói a ordem social[256]. 136 A liberdade não se opõe à dependência criatural do homem para com Deus[257]. A Revelação ensina que o poder de determinar o bem e o mal não pertence ao homem, mas somente a Deus (cf. Gn 2, 16-17). «O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer “de todas as árvores do jardim”. Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “árvore da ciência do bem e do mal”, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente nesta aceitação»[258]. 137 O reto exercício do livre arbítrio exige precisas condições de ordem econômica, social, política e cultural que «são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os fortes como os frágeis à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina»[259]. A libertação das injustiças promove a liberdade e a dignidade humana: porém é «necessário, antes de tudo, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter mudanças econômicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem»[260]. b) O vínculo da liberdade com a verdade e a lei natural 138. No exercício da liberdade, o homem põe atos moralmente bons, construtivos da pessoa e da sociedade, quando obedece à verdade, ou seja, quando não pretende ser criador e senhor absoluto desta última e das normas éticas[261]. A liberdade, com efeito, «não tem o seu ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na existência em que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um limite e uma possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade»[262]. Caso contrário, morre como liberdade, destrói o homem e a sociedade[263]. 139 A verdade sobre o bem e o mal é reconhecida prática e concretamente pelo juízo da consciência, o qual leva a assumir a responsabilidade do bem realizado e do mal cometido: «Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe à pessoa a obrigação de cumprir um determinado ato, revela-se o vínculo da liberdade com a verdade. Precisamente por isso a consciência se exprime com atos de “juízo” que refletem a verdade do bem, e não com “decisões” arbitrárias. E a maturidade e responsabilidade daqueles juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu sujeito — medem-se, não pela libertação da consciência da verdade objetiva em favor de uma suposta autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por uma procura insistente da verdade deixando-se guiar por ela no agir»[264]. 140 O exercício da liberdade implica a referência a uma lei moral natural, de caráter universal, que precede e unifica todos os direitos e deveres[265]. A Lei natural «não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus ao homem na criação»[266] e consiste na participação na Sua lei eterna, a qual se identifica com o próprio Deus[267]. Esta lei é chamada natural porque a razão que a promulga é própria da natureza humana. Ela é universal, estende-se a todos os homens enquanto estabelecida pela razão. Nos seus preceitos principais, a lei divina e natural é exposta no Decálogo e indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral[268]. Ela tem como eixo a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo o bem, e bem assim o sentido do outro como igual a si mesmo. A lei natural exprime a dignidade da pessoa humana e estabelece as bases dos seus direitos e dos seus deveres fundamentais[269]. 141 Na diversidade das culturas, a lei natural liga os homens entre si, impondo princípios comuns. Por quanto a sua aplicação requeira adaptações à multiplicidade de condições de vida, segundo os lugares, as épocas e as circunstâncias[270], ela é imutável, permanece «sob o influxo das idéias e dos costumes e constitui a base para o seu progresso... Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la, nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades»[271]. Os seus preceitos, todavia, não são percebidos por todos de modo claro e imediato. As verdades religiosas e morais podem ser conhecidas «por todos e sem dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro»[272], somente com a ajuda da Graça e da Revelação. A lei natural é um fundamento preparado por Deus para a Lei revelada e para a Graça, em plena harmonia com a obra do Espírito[273]. 142 A lei natural, que é lei de Deus, não pode ser cancelada pela iniqüidade humana[274]. Ela põe o fundamento moral indispensável para edificar a comunidade dos homens e para elaborar a lei civil que tira conseqüências de natureza concreta e contingente dos princípios da lei natural[275]. Se se ofusca a percepção da universalidade da lei moral, não se pode edificar uma comunhão real e duradoura com o outro, porque sem uma convergência para a verdade e o bem, «de forma imputável ou não, os nossos atos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos»[276]. Somente uma liberdade radicada na comum natureza pode tornar todos os homens responsáveis e é capaz de justificar a moral pública. Quem se autoproclama medida única das coisas e da verdade não pode conviver e colaborar com os próprios semelhantes[277]. 143 A liberdade é misteriosamente inclinada a trair a abertura à verdade e ao bem humano e, muito freqüentemente, prefere o mal e o fechamento egoístico, arvorando-se em divindade criadora do bem e do mal: «Estabelecido por Deus na justiça, o homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da história — lê-se na Gaudium et spes —, abusou da sua liberdade, erguendo-se contra Deus e desejando alcançar o seu fim à margem de Deus. [...] Recusando muitas vezes reconhecer Deus como seu princípio, o homem, por isso mesmo, desfaz a justa ordenação para o seu fim último e simultaneamente para consigo mesmo e também para com os outros homens e todas as coisas criadas»[278]. A liberdade do homem necessita, portanto, de ser libertada. Cristo, com a força do Seu mistério pascal liberta o homem do amor desordenado de si mesmo[279], que é fonte do desprezo do próximo e das relações caracterizadas pelo domínio sobre o outro; Ele revela que a liberdade se realiza no dom sincero de si[280] e, com o Seu sacrifício na Cruz, reintroduz todo homem na comunhão com Deus e com os próprios semelhantes. 144. «Deus não faz distinção de pessoas» (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança[281]. A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas as pessoas quanto à dignidade: «Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3, 28; cf. Rm 10, 12; 1 Cor 12, 13; Col 3, 11). Uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens[282]. Este é o fundamento último da radical igualdade e fraternidade entre os homens independentemente da sua raça, nação, sexo, origem, cultura, classe. 145 Somente o reconhecimento da dignidade humana pode tornar possível o crescimento comum e pessoal de todos (cf. Tg 2, 1-9). Para favorecer um semelhante crescimento é necessário, em particular, apoiar os últimos, assegurar efetivamente condições de igual oportunidade entre homem e mulher, garantir uma objetiva igualdade entre as diversas classes sociais perante a lei[283]. Também nas relações entre povos e Estados, condições de eqüidade e de paridade são o pressuposto para um autêntico progresso da comunidade internacional[284]. Apesar dos avanços nesta direção, não se deve esquecer de que ainda existem ainda muitas desigualdades e formas de dependência[285]. A uma igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade. Somente pela ação concorde dos homens e dos povos sinceramente interessados no bem de todos os outros, é que se pode alcançar uma autêntica fraternidade universal[286]; vice-versa, a permanência de condições de gravíssima disparidade e desigualdade empobrece a todos. 146 O “masculino” e o “feminino” diferenciam dois indivíduos de igual dignidade, que porém não refletem uma igualdade estática, porque o específico feminino é diferente do específico masculino e esta diversidade na igualdade é enriquecedora e indispensável para uma harmoniosa convivência humana: «A condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da condição masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementaridade com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua estrutura e o seu significado pessoal»[287]. 147 A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem se completam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e psíquico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do «masculino» e do «feminino» que o «humano» se realiza plenamente. É «a unidade dos dois»[288], ou seja, uma “unidualidade” relacional, que consente a cada um sentir a própria relação interpessoal e recíproca como um dom que é ao mesmo tempo uma missão: «A esta “unidade dos dois”, está confiada por Deus não só a obra da procriação e a vida da família, mas a construção mesma da história»[289]. «A mulher é “auxiliar” para o homem, assim como o homem é “auxiliar” para a mulher!»[290]: no seu encontro realiza-se uma concepção unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da auto-afirmação, mas na lógica do amor e da solidariedade. 148 As pessoas deficientes são sujeitos plenamente humanos, titulares de direitos e deveres: «apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas suas faculdades, põem mais em relevo a dignidade e a grandeza do homem»[291]. Dado que a pessoa deficiente é um sujeito com todos os seus direitos, ela deve ser ajudada a participar na vida familiar e social em todas as suas dimensões e em todos os níveis acessíveis às suas possibilidades. É necessário promover com medidas eficazes e apropriadas os direitos da pessoa deficiente: «Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da humanidade comum admitir à vida da sociedade, e portanto ao trabalho, só os membros na plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo, recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes»[292]. Uma grande atenção deverá ser reservada não só às condições físicas e psicológicas de trabalho, à justa remuneração, à possibilidade de promoções e à eliminação dos diversos obstáculos, mas também às dimensões afetivas e sexuais da pessoa deficiente: «Também ela precisa de amar e de ser amada, precisa de ternura, de proximidade, de intimidade»[293], segundo as próprias possibilidades e no respeito da ordem moral, que é a mesma para os sãos e para os que têm uma deficiência. 149 A pessoa é constitutivamente um ser social[294], porque assim a quis Deus que a criou[295]. A natureza do homem se patenteia, destarte, como natureza de um ser que responde às próprias necessidades a base de uma subjetividade relacional, ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, que reconhece a necessidade de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz de comunhão com eles na ordem do conhecimento e do amor: «Uma sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas. Assembléia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma sociedade que perdura no tempo; ela recolhe o passado e prepara o futuro»[296]. Importa pôr de manifesto que a vida comunitária é uma característica natural que distingue o homem do resto das criaturas terrenas. O agir social comporta um sinal particular do homem e da humanidade, o de uma pessoa operante em uma comunidade de pessoas: este sinal determina a sua qualificação interior e constitui, num certo sentido, a sua própria natureza[297]. Tal característica relacional, à luz da fé, adquire um sentido mais profundo e estável. Feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), e constituído no universo visível para viver em sociedade (cf. Gên 2, 20.23) e dominar a terra (cf. Gn 1, 26.28-30), a pessoa humana é, por isso, desde o princípio, chamada à vida social: «Deus não criou o homem como um “ser solitário”, mas o quis como um “ser social”. A vida social não é, portanto, extrínseca ao homem, dado que ele não pode crescer nem realizar a sua vocação senão em relação com os outros»[298]. 150 A sociabilidade humana não desemboca automaticamente na comunhão das pessoas, no dom de si. Por causa da soberba e do egoísmo, o homem descobre em si gérmenes de insociabilidade, de fechamento individualista e de opressão do outro[299]. Toda sociedade digna desse nome pode considerar estar na verdade quando cada membro seu, graças à própria capacidade de conhecer o bem, persegue-o para si e para os outros. É por amor do bem próprio e de outrem que se dá a união em grupos estáveis, tendo como fim a conquista de um bem comum. Também as várias sociedades devem adentrar por relações de solidariedade, de comunicação e de colaboração, a serviço do homem e do bem comum[300]. 151 A sociabilidade humana não é uniforme, mas assume multíplices expressões. O bem comum depende, efetivamente, de um são pluralismo social. As múltiplas sociedades são chamadas a constituir um tecido unitário e harmônico, onde cada uma possa conservar e desenvolver a própria fisionomia e autonomia. Algumas sociedades, como a família, a comunidade civil e a comunidade religiosa são mais imediatamente conexas com a íntima natureza do homem, enquanto outras procedem da vontade livre: «A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações e instituições de livre escolha, “com fins econômicos, culturais, sociais, esportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial”. Esta “socialização” exprime, igualmente, a tendência natural que impele os seres humanos a se associarem para atingir objetivos que ultrapassam as capacidades individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente seu espírito de iniciativa e de responsabilidade. Ajuda a garantir seus direitos»[301].
III. OS DIREITOS HUMANOS
a) O valor dos direitos humanos 152 O movimento rumo à identificação e à proclamação dos direitos do homem é um dos mais relevantes esforços para responder de modo eficaz às exigências imprescindíveis da dignidade humana[302]. A Igreja entrevê em tais direitos a extraordinária ocasião que o nosso tempo oferece para que, mediante o seu afirmar-se, a dignidade humana seja mais eficazmente reconhecida e promovida universalmente como característica impressa pelo Deus Criador na Sua criatura[303]. O Magistério da Igreja não deixou de apreciar positivamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, que João Paulo II definiu como «uma pedra miliária no caminho do progresso moral da humanidade»[304]. 153 A raiz dos direitos do homem, com efeito, há de ser buscada na dignidade que pertence a cada ser humano[305]. Tal dignidade, conatural à vida humana e igual em cada pessoa, se apreende antes de tudo com a razão. O fundamento natural dos direitos se mostra ainda mais sólido se, à luz sobrenatural, se considerar que a dignidade humana, doada por Deus e depois profundamente ferida pelo pecado, foi assumida e redimida por Jesus Cristo mediante a Sua encarnação, morte e ressurreição[306]. A fonte última dos direitos humanos não se situa na mera vontade dos seres humanos[307], na realidade do Estado, nos poderes públicos, mas no mesmo homem e em Deus seu Criador. Tais direitos são «universais, invioláveis e inalienáveis»[308]. Universais, porque estão presentes em todos os seres humanos, sem exceção alguma de tempo, de lugar e de sujeitos. Invioláveis, enquanto «inerentes à pessoa humana e à sua dignidade»[309] e porque «seria vão proclamar os direitos, se simultaneamente não se envidassem todos os esforços a fim de que seja devidamente assegurado o seu respeito por parte de todos, em toda a parte e em relação a quem quer que seja»[310]. Inalienáveis, enquanto «ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele quem for, porque isso significaria violentar a sua natureza»[311]. 154 Os direitos do homem hão de ser tutelados não só cada um singularmente, mas no seu conjunto: uma proteção parcial traduzir-se-ia em uma espécie de não reconhecimento. Eles correspondem às exigências da dignidade humana e comportam, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades essenciais da pessoa, em campo espiritual e material: «tais direitos tocam todas as fases da vida e todo o contexto político, social, econômico ou cultural. Formam um conjunto unitário, visando resolutamente a promoção do bem, em todos os seus aspectos, da pessoa e da sociedade... A promoção integral de todas as categorias dos direitos humanos é a verdadeira garantia do pleno respeito de cada um deles»[312]. Universalidade e indivisibilidade são os traços distintivos dos direitos humanos: «são dois princípios orientadores que postulam a exigência de radicar os direitos humanos nas diversas culturas e aprofundar a sua delineação jurídica para lhes assegurar o pleno respeito»[313]. b) A especificação dos direitos 155 Os ensinamentos de João XXIII[314], do Concílio Vaticano II[315], de Paulo VI[316] ofereceram amplas indicações da concepção dos direitos humanos delineada pelo Magistério. Na Encíclica «Centesimus annus» João Paulo II sintetizou-as num elenco: «o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa»[317]. O primeiro direito a ser enunciado neste elenco é direito à vida, desde o momento da sua concepção até ao seu fim natural[318], que condiciona o exercício de qualquer outro direito e comporta, em particular, a ilicitude de toda forma de aborto procurado e de eutanásia[319]. É sublinhado o altíssimo valor do direito à liberdade religiosa: «Todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros»[320]. O respeito de tal direito assume um valor emblemático «do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes»[321]. c) Direitos e deveres 156 Intimamente conexo com o tema dos direitos é o tema dos deveres do homem, que encontra nos pronunciamentos do Magistério uma adequada acentuação. Freqüentemente se evoca a recíproca complementaridade entre direitos e deveres, indissoluvelmente unidos, em primeiro lugar na pessoa humana que é o seu sujeito titular[322]. Tal liame apresenta também uma dimensão social: «no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais»[323]. O Magistério sublinha a contradição ínsita numa afirmação dos direitos que não contemple uma correlativa responsabilidade: «os que reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói»[324]. d) Direitos dos povos e das nações 157 O campo dos direitos humanos se alargou aos direitos dos povos e das nações[325]: com efeito, «o que é verdadeiro para o homem é verdadeiro também para os povos»[326]. O Magistério recorda que o direito internacional «se funda no princípio de igual respeito dos Estados, do direito à autodeterminação de cada povo e da livre cooperação em vista do bem comum superior da humanidade»[327]. A paz funda-se não só no respeito dos direitos do homem como também no respeito do direito dos povos, sobretudo o direito à independência[328]. Os direitos das nações «não são outra coisa senão os “direitos humanos” compreendidos neste específico nível da vida comunitária»[329]. A nação tem «um fundamental direito o direito à existência»; à «própria língua e cultura, mediante as quais um povo exprime e promove ... a sua originaria “soberania” espiritual»; a «modelar a própria vida segundo as suas tradições, excluindo, naturalmente, toda a violação dos direitos humanos fundamentais e, em particular, a opressão das minorias»; a «edificar o próprio futuro, oferecendo às gerações mais jovens uma educação apropriada»[330]. A ordem internacional requer um equilíbrio entre particularidade e universalidade, ao qual são chamadas todas as nações, para as quais o primeiro dever é o de viver em atitude de paz, respeito e solidariedade com as outras nações. e) Colmatar a distância entre letra e espírito 158 A solene proclamação dos direitos do homem é contradita por uma dolorosa realidade de violações, guerras e violências de todo tipo, em primeiro lugar os genocídios e as deportações em massa, a difusão quase que por toda a parte de formas sempre novas de escravidão quais o tráfico de seres humanos, as crianças soldados, a exploração dos trabalhadores, o tráfico de drogas, a prostituição: «Também nos países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes direitos são totalmente respeitados»[331] Existe, infelizmente, uma distância entre a «letra» e o «espírito» dos direitos do homem[332] aos quais freqüentemente se vota um respeito puramente formal. A doutrina social, em consideração ao privilégio conferido pelo Evangelho aos pobres, reafirma repetidas vezes que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poder colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros» e que uma afirmação excessiva de igualdade «pode dar azo a um individualismo em que cada qual reivindica os seus direitos, sem querer ser responsável pelo bem comum»[333]. 159 A Igreja, cônscia de que a sua missão essencialmente religiosa inclui a defesa e a promoção dos direitos fundamentais do homem[334], «tem em grande apreço o dinamismo do nosso tempo que, em toda parte, dá novo impulso aos mesmos direitos »[335]. A Igreja adverte profundamente a exigência de respeitar dentro do seu próprio âmbito a justiça[336] e os direitos do homem[337]. O empenho pastoral se desenvolve numa dúplice direção: de anúncio do fundamento cristão dos direitos do homem e de denúncia das violações de tais direitos[338]: em todo caso, «o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia, e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a verdadeira solidez e a força da motivação mais alta»[339]. Para ser mais eficaz, tal empenho é aberto à colaboração ecumênica, ao diálogo com as outras religiões, a todos os oportunos contactos com os organismos, governamentais e não governamentais, nos planos nacional e internacional. A Igreja confia, sobretudo na ajuda do Senhor e do Seu Espírito que, derramado nos corações, é a garantia mais segura do respeito da justiça e dos direitos humanos, e de contribuir, portanto, para a paz: «promover a justiça e a paz, penetrar com a luz e o fermento evangélico todos os campos da existência social, tem sido sempre um constante empenho da Igreja em nome do mandato que ela recebeu do Senhor»[340].
CAPÍTULO IV
OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
I. SIGNIFICADO E UNIDADE DOS PRINCÍPIOS
160 Os princípios permanentes da doutrina social da Igreja[341] constituem os verdadeiros e próprios gonzos do ensinamento social católico: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana ― já tratado no capítulo anterior ― no qual todos os demais princípios ou conteúdos da doutrina social da Igreja têm fundamento[342], do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade. Estes princípios, expressões da verdade inteira sobre o homem conhecida através da razão e da fé, promanam «do encontro da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor com os problemas que emanam da vida da sociedade»[343]. A Igreja, no curso da história e à luz do Espírito, refletindo sapientemente no seio da própria tradição de fé, pôde dar-lhes fundamentação e configuração cada vez mais acuradas, individualizando-os progressivamente no esforço de responder com coerência às exigências dos tempos e aos contínuos progressos da vida social. 161 Estes princípios têm um caráter geral e fundamental, pois que se referem à realidade social no seu conjunto: das relações interpessoais, caracterizadas pela proximidade e por serem imediatas, às mediadas pela política, pela economia e pelo direito; das relações entre indivíduos ou grupos às relações entre os povos e as nações. Pela sua permanência no tempo e universalidade de significado, a Igreja os indica como primeiro e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenômenos sociais, necessários porque deles se podem apreender os critérios de discernimento e de orientação do agir social, em todos os âmbitos. 162 Os princípios da doutrina social devem ser apreciados na sua unidade, conexão e articulação. Uma tal exigência tem suas raízes no significado que a Igreja mesma atribui à própria doutrina social; «corpus» doutrinal unitário que interpreta de modo orgânico as realidade sociais[344]. A atenção a cada princípio na sua especificidade não deve levar ao seu emprego parcial e errado, como acontece quando evocado de modo desarticulado e desconexo em relação aos demais. O aprofundamento teórico e a própria aplicação, ainda que somente de um dos princípios sociais, fazem vir à tona com clareza a reciprocidade, a complementaridade, os nexos que os estruturam. Estes eixos fundamentais da doutrina da Igreja representam, além disso, bem mais do que um patrimônio permanente de reflexão que, diga-se a propósito, é parte essencial da mensagem cristã, pois indicam todos os caminhos possíveis para edificar uma vida social verdadeira, boa, autenticamente renovada[345]. 163 Os princípios da vida social, no seu conjunto, constituem aquela primeira articulação da verdade da sociedade, pela qual cada consciência é interpelada e convidada a interagir com todas as demais, na liberdade, em plena co-responsabilidade com todos e em relação a todos. À questão da verdade e do sentido do viver social, com efeito, o homem não se pode furtar, pois a sociedade não é uma realidade estranha ao seu mesmo existir. Estes princípios têm um significado profundamente moral porque remetem aos fundamentos últimos e ordenadores da vida social. Para compreendê-los plenamente, é preciso agir na sua direção, na via do desenvolvimento por eles indicado para uma vida digna do homem. A exigência moral ínsita nos grandes princípios sociais concerne quer ao agir pessoal dos indivíduos, enquanto primeiros e insubstituíveis sujeitos da vida social em todos os níveis, quer, ao mesmo tempo, às instituições, representadas por leis, normas de consuetudinárias e estruturas civis, dada a sua capacidade de influenciar e condicionar as opções de muitos e por muito tempo. Os princípios recordam, com efeito, que a sociedade historicamente existente promana do entrelace das liberdades de todas as pessoas que nela interagem, contribuindo, mediante as suas opções, para edificá-la ou para empobrecê-la.
II. O PRINCÍPIO DO BEM COMUM
a) Significado e principais implicações 164 Da dignidade, unidade e igualdade de todas as pessoas deriva, antes de tudo, o princípio do bem comum, a que se deve relacionar cada aspecto da vida social para encontrar pleno sentido. Segundo uma primeira e vasta acepção, por bem comum se entende: «o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição»[346]. O bem comum não consiste na simples soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social. Sendo de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo, também em vista do futuro. Assim como o agir moral do indivíduo se realiza em fazendo o bem, assim o agir social alcança a plenitude realizando o bem comum. O bem comum pode ser entendido como a dimensão social e comunitária do bem moral. 165 Uma sociedade que, em todos os níveis, quer intencionalmente estar ao serviço do ser humano é a que se propõe como meta prioritária o bem comum, enquanto bem de todos os homens e do homem todo[347]. A pessoa não pode encontrar plena realização somente em si mesma, prescindindo do seu ser «com» e «pelos» outros. Essa verdade impõe-lhe não uma simples convivência nos vários níveis da vida social e relacional, mas a busca incansável, de modo prático e não só ideal, do bem ou do sentido e da verdade que se podem encontrar nas formas de vida social existentes. Nenhuma forma expressiva da sociabilidade — da família ao grupo social intermédio, à associação, à empresa de caráter econômico, à cidade, à região, ao Estado, até à comunidade dos povos e das nações — pode evitar a interrogação sobre o próprio bem comum, que é constitutivo do seu significado e autêntica razão de ser da sua própria subsistência[348]. b) A responsabilidade de todos pelo bem comum 166 As exigências do bem comum derivam das condições sociais de cada época e estão estreitamente conexas com o respeito e com a promoção integral da pessoa e dos seus direitos fundamentais[349]. Essas exigências referem-se, antes de mais, ao empenho pela paz, à organização dos poderes do Estado, a uma sólida ordem jurídica, à salvaguarda do ambiente, à prestação dos serviços essenciais às pessoas, alguns dos quais são, ao mesmo tempo, direitos do homem: alimentação, morada, trabalho, educação e acesso à cultura, saúde, transportes, livre circulação das informações e tutela da liberdade religiosa[350]. Não se há de olvidar o aporte que cada nação tem o dever de dar para uma verdadeira cooperação internacional, em vista do bem comum da humanidade inteira, inclusive para as gerações futuras[351]. 167. O bem comum empenha todos os membros da sociedade: ninguém está escusado de colaborar, de acordo com as próprias possibilidades, na sua busca e no seu desenvolvimento[352]. O bem comum exige ser servido plenamente, não segundo visões redutivas subordinadas às vantagens de parte que se podem tirar, mas com base em uma lógica que tende à mais ampla responsabilização. O bem comum correspondente às mais elevadas inclinações do homem[353], mas é um bem árduo de alcançar, porque exige a capacidade e a busca constante do bem de outrem como se fosse próprio. Todos têm também o direito de fruir das condições de vida social criadas pelos resultados da consecução do bem comum. Soa ainda atual o ensinamento de Pio XI: «Deve procurar-se que a repartição dos bens criados, a qual não há quem não reconheça ser hoje causa de gravíssimos inconvenientes pelo contraste estridente que há entre os poucos ultra-ricos e a multidão inumerável dos indigentes, seja reconduzida à conformidade com as normas do bem comum e da justiça social»[354]. c) As tarefas da comunidade política 168 A responsabilidade de perseguir o bem comum compete, não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois que o bem comum é a razão de ser da autoridade política[355]. Na verdade, o Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil da qual é expressão[356], de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. O indivíduo humano, a família, as corpos intermédios não são capazes por si próprias de chegar ao seu pleno desenvolvimento; daí serem necessárias as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários — materiais, culturais, morais, espirituais — para levar uma vida verdadeiramente humana. O fim da vida social é o bem comum historicamente realizável[357]. 169 Para assegurar o bem comum, o governo de cada País tem a tarefa específica de harmonizar com justiça os diversos interesses setoriais[358]. A correta conciliação dos bens particulares de grupos e de indivíduos é uma das funções mais delicadas do poder público. Além disso, não se há de olvidar que, no Estado democrático — no qual as decisões são geralmente tomadas pela maioria dos representantes da vontade popular —, aqueles que têm responsabilidade de governo estão obrigados a interpretar o bem comum do seu País, não só segundo as orientações da maioria, mas também na perspectiva do bem efetivo de todos os membros da comunidade civil, inclusive dos que estão em posição de minoria. 170 O bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação. Deus é o fim último de suas criaturas e por motivo algum se pode privar o bem comum da sua dimensão transcendente, que excede, mas também dá cumprimento à dimensão histórica[359]. Esta perspectiva atinge a sua plenitude em força da fé na Páscoa de Jesus, que oferece plena luz acerca da realização do verdadeiro bem comum da humanidade. A nossa história — o esforço pessoal e coletivo de elevar a condição humana — começa e culmina em Jesus: graças a Ele, por meio d’Ele e em vista d’Ele, toda a realidade, inclusa a sociedade humana, pode ser conduzida ao seu Bem Sumo, à sua plena realização. Uma visão puramente histórica e materialista acabaria por transformar o bem comum em simples bem-estar econômico, destituído de toda finalização transcendente ou bem da sua mais profunda razão de ser.
III. A DESTINAÇÃO UNIVERSAL DOS BENS
a) Origem e significado 171 Dentre as multíplices implicações do bem comum, assume particular importância o princípio da destinação universal dos bens: «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade»[360]. Este princípio se baseia no fato de que: «a origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos (Cf. Gn 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz da destinação universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana»[361]. A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as condições basilares para a sua existência; estes bens lhe são absolutamente indispensáveis para alimentar-se e crescer, para comunicar, para associar-se e para poder conseguir as mais altas finalidades a que é chamada[362]. 172 O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Todo o homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»[363] e «princípio típico da doutrina social cristã»[364]. Por esta razão a Igreja considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se, antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica; ademais, tal direito é «originário»[365]. É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método econômico-social: «Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados [à destinação universal dos bens]: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira»[366]. 173 A atuação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os diferentes contextos culturais e sociais, implica uma precisa definição dos modos, dos limites, dos objetos. Destinação e uso universal não significam que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Se é verdade que todos nascem com o direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, para assegurar o seu exercício eqüitativo e ordenado, é necessário que se atue uma regulamentação, fruto de acordos nacionais e internacionais, e um ordenamento jurídico que determine e especifique tal exercício. 174 O princípio da destinação universal dos bens convida a cultivar uma visão da economia inspirada em valores morais que permitam nunca perder de vista nem a origem, nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo eqüitativo e solidário, em que a formação da riqueza possa assumir uma função positiva. A riqueza, com efeito, apresenta esta valência, na multiplicidade das formas que podem exprimi-la como o resultado de um processo produtivo de elaboração técnico-econômica dos recursos disponíveis, naturais e derivados, guiado pela inventiva, pela capacidade concretizar projetos, pelo trabalho dos homens, e empregada como meio útil para promover o bem-estar dos homens e dos povos e para contrastar-lhes a exclusão e exploração. 175 O destinação universal dos bens comporta, portanto, um esforço comum que mira obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano, «onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para a sua sujeição»[367]. Este princípio corresponde ao apelo que o Evangelho incessantemente dirige ao homem e às sociedades de todos os tempos, sempre expostos às tentações da avidez da posse, a que o próprio Senhor Jesus quis submeter-Se (Cf. Mc 1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,1-13) ensinando-nos o caminho para superá-la com a Sua graça. b) Destinação universal dos bens e propriedade privada 176 Mediante o trabalho, o homem, usando a sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada: «Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual»[368]. A propriedade privada, bem como as outras formas de domínio privado dos bens, «assegura a cada qual um meio absolutamente necessário para a autonomia pessoal e familiar e deve ser considerada como uma prolongação da liberdade humana [...], constitui uma certa condição das liberdades civis, porque estimula ao exercício da sua função e responsabilidade»[369]. A propriedade privada é elemento essencial de uma política econômica autenticamente social e democrática e é garantia de uma reta ordem social. A doutrina social requer que a propriedade dos bens seja eqüitativamente acessível a todos[370], de modo que todos sejam, ao menos em certa medida, proprietários, e exclui o recurso a formas de «domínio comum e promíscuo»[371]. 177 A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável: «pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens»[372]. O princípio da destinação universal dos bens afirma seja o pleno e perene senhorio de Deus sobre toda a realidade, seja a exigência que os bens da criação sejam e permaneçam finalizados e destinados ao desenvolvimento de todo homem e de toda a humanidade[373]. Este princípio, porém, não se opõe ao direito de propriedade[374], indica antes a necessidade de regulamentá-lo. A propriedade privada, com efeito, quaisquer que sejam as formas concretas dos regimes e das normas jurídicas que lhes digam respeito, é, na sua essência, somente um instrumento para o respeito do princípio da destinação universal dos bens, e portanto, em última análise, não um fim, mas um meio[375]. 178 O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada[376], com a clara referência às exigências imprescindíveis do bem comum[377]. O homem «que possui legitimamente as coisas materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido que elas possam ser úteis não somente a ele mas também aos outros»[378]. A destinação universal dos bens comporta vínculos ao seu uso por parte dos legítimos proprietários. Cada pessoa, ao agir, não pode prescindir dos efeitos do uso dos próprios recursos, mas deve atuar de modo a perseguir, ademais da vantagem pessoal e familiar, igualmente o bem comum. Donde decorre o dever dos proprietários de não manter ociosos os bens possuídos e de os destinar à atividade produtiva, também confiando-os a quem tem desejo e capacidade de os levar a produzir. 179 A atual fase histórica, colocando à disposição da sociedade bens novos, de todo desconhecidos até a tempos recentes, impõe uma releitura do princípio da destinação universal dos bens da terra, tornando necessário estendê-lo de sorte que compreenda também os frutos do recente progresso econômico e tecnológico. A propriedade dos novos bens, fruto do conhecimento, da técnica e do saber, torna-se cada vez mais decisiva, pois «a riqueza das nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais»[379]. Os novos conhecimentos técnicos e científicos devem ser postos ao serviço das necessidades primarias do homem, para que possa acrescer gradualmente o patrimônio comum da humanidade. A plena atuação do princípio da destinação universal dos bens requer, portanto, ações no plano internacional e iniciativas programadas por parte de todos os países: «Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento»[380]. 180 Se no processo de desenvolvimento econômico e social, adquirem notável relevância formas de propriedade desconhecidas no passado, não se podem, todavia, esquecer as tradicionais. A propriedade individual não é a única forma legítima de posse. Reveste também particular importância a antiga forma de propriedade comunitária que, mesmo se presentes nos países economicamente avançados, caracteriza, de modo particular, a estrutura social de numerosos povos indígenas. É uma forma de propriedade que incide com uma profundidade tal na vida econômica, cultural e política daqueles povos, que chega a constituir um elemento fundamental para a sua sobrevivência e bem-estar. A defesa e a valorização da propriedade comunitária não devem, todavia, excluir a consciência do fato de que também este tipo de propriedade é destinado a evoluir. Se se agisse de modo a garantir-lhe tão-somente a conservação, correr-se-ia o risco de atá-la ao passado e, deste modo, de comprometê-la[381]. Permanece sempre crucial, sobretudo nos países em via de desenvolvimento ou que saíram de sistemas coletivistas ou de colonização, a distribuição eqüitativa da terra. Nas zonas rurais a possibilidade de aceder à terra mediante a oportunidade oferecida também pelos mercados do trabalho e do crédito é condição necessária para o acesso aos outros bens e serviços; além de constituir um caminho eficaz para a salvaguarda do ambiente, tal possibilidade representa um sistema de segurança social realizável também nos países que têm uma estrutura administrativa frágil[382]. 181 Da propriedade deriva para o sujeito possessor, quer seja um indivíduo, quer seja uma comunidade, uma série de objetivas vantagens: melhores condições de vida, segurança para o futuro, oportunidades de escolha mais amplas. Da propriedade, por outro lado, pode provir também uma série de promessas ilusórias e tentadoras. O homem ou a sociedade que chegam ao ponto de absolutizar o papel da propriedade, acabam por experimentar a mais radical escravidão. Nenhuma posse, com efeito, pode ser considerada indiferente pelo influxo que tem tanto sobre os indivíduos, quanto sobre as instituições: o possessor que incautamente idolatra os seus bens (Cf. Mt 6, 24; 19, 21-26; Lc 16, 13) acaba por ser, mais do que nunca, possuído e escravizado[383]. Somente reconhecendo a sua dependência em relação a Deus Criador e ordenando-os ao bem comum é possível conferir aos bens materiais a função de instrumentos úteis ao crescimento dos homens e dos povos. c) Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres 182 O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado. A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres[384]. «Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor»[385]. 183 A miséria humana é o sinal manifesto da condição de fragilidade do homem e da sua necessidade de salvação[386]. Dela teve compaixão Cristo Salvador, que se identificou com os Seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45): «Jesus Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos o sinal da presença de Cristo quando “os pobres são evangelizados” (Mt. 11, 5)»[387]. Jesus diz « pobres sempre os tereis convosco, mas a Mim nem sempre Me tereis» (Mt 26,11; cf. Mc 14, 7; Jo 12,1-8) não para contrapor ao serviço dos pobres a atenção que se Lhe devota. O realismo cristão, enquanto por um lado aprecia os louváveis esforços que se fazem para vencer a pobreza, por outro põe em guarda contra posições ideológicas e messianismos que alimentam a ilusão de que se possa suprimir deste mundo de maneira total o problema da pobreza. Isto acontecerá somente no Seu retorno, quando Ele estará de novo conosco para sempre. Neste interregno, os pobres ficam confiados a nós e sobre esta responsabilidade seremos julgados no fim (Cf. Mt 25, 31-46): «Nosso Senhor adverte-nos de que seremos separados dele se deixarmos de ir ao encontro das necessidades dos pobres e dos pequenos que são Seus irmãos»[388]. 184 O amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na Sua atenção aos pobres. Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa[389]. A Igreja, «desde as suas origens, apesar das falhas de muitos de seus membros, não deixou nunca de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz por meio de inúmeras obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda parte, indispensáveis»[390]. Inspirada no preceito evangélico: « Recebestes de graça, de graça dai » (Mt 10,8), a Igreja ensina a socorrer o próximo nas suas várias necessidades e difunde na comunidade humana inúmeras obras de misericórdia corporais e espirituais. «Dentre estes gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus»[391], ainda que a prática da caridade não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza. Sobre esta relação entre caridade e justiça o ensinamento da Igreja retorna constantemente: «Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas lhes devolvemos o que é deles. Cumprimos um dever de justiça e não um ato de caridade»[392]. Os Padres Conciliares recomendam fortemente que se cumpra tal dever «para que não ofereçamos como dom de caridade aquilo que já é devido por justiça»[393]. O amor pelos os pobres é certamente «incompatível com o amor imoderado pelas riquezas ou o uso egoístico delas»[394] (Cf. Tg 5,1-6).
IV. O PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE
a) Origem e significado185. A subsidiariedade está entre as mais constantes e características diretrizes da doutrina social da Igreja, presente desde a primeira grande encíclica social[395]. É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, em outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo econômico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social[396]. É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária e graças à «a subjetividade criativa do cidadão»[397]. A rede destas relações inerva o tecido social e constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade[398]. 186 A exigência de tutelar e de promover as expressões originárias da sociabilidade é realçada pela Igreja na Encíclica «Quadragesimo anno», na qual o princípio de subsidiariedade é indicado como princípio importantíssimo da filosofia social»: «uma vez que não é lícito tolher aos indivíduos o que eles podem realizar com as forças e a indústria própria para confiá-lo à comunidade, assim também é injusto remeter a uma sociedade maior e mais alta aquilo que as comunidades menores e inferiores podem fazer ... porque o objeto natural de todo e qualquer intervento da sociedade mesma consiste em ajudar de maneira supletiva os membros do corpo social, não já destruí-las e absorvê-las»[399]. Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda («subsidium») — e portanto de apoio, promoção e incremento — em relação às menores. Desse modo os corpos sociais intermédios podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outros entes sociais de nível superior, pelas quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, e por ver-se negar, ao fim e ao cabo, dignidade própria e espaço vital. À subsidiariedade entendida em sentido positivo, como ajuda econômica, institucional, legislativa oferecida às entidades sociais menores, corresponde uma série de implicações em negativo, que impõem ao Estado abster-se de tudo o que, de fato, restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade. Não se deve suplantar a sua iniciativa, liberdade e responsabilidade. b) Indicações concretas 187. O princípio de subsidiariedade protege as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e solicita estas últimas a ajudar os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família e corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade. A experiência revela que a negação da subsidiariedade, ou a sua limitação em nome de uma pretensa democratização ou igualdade de todos na sociedade, limita e, às vezes, também anula, o espírito de liberdade e de iniciativa. Com o princípio de subsidiariedade estão em contraste formas de centralização, de burocratização, de assistencialismo, de presença injustificada e excessiva do Estado e do aparato público: «Ao intervir diretamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas»[400]. A falta de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado da iniciativa privada, também econômica, e da sua função pública, bem como os monopólios, concorrem para mortificar o princípio de subsidiariedade. À atuação do princípio de subsidiariedade correspondem: o respeito e a promoção efetiva do primado da pessoa e da família; a valorização das associações e das organizações intermédias, nas próprias opções fundamentais e em todas as que não podem ser delegadas ou assumidas por outros; o incentivo oferecido à iniciativa privada, de tal modo que cada organismo social, com as próprias peculiaridades, permaneça ao serviço do bem comum; a articulação pluralista da sociedade e a representação das suas forças vitais; a salvaguarda dos direitos humanos e das minorias; a descentralização burocrática e administrativa; o equilíbrio entre a esfera pública e a privada, com o conseqüente reconhecimento da função social do privado; uma adequada responsabilização do cidadão no seu «ser parte» ativa da realidade política e social do País. 188. Diversas circunstâncias podem aconselhar que o Estado exerça uma função de suplência.[401] Pense-se, por exemplo, nas situações em que é necessário que o Estado mesmo promova a economia, por causa da impossibilidade de a sociedade civil assumir autonomamente a iniciativa; pense-se também nas realidades de grave desequilíbrio e injustiça social, em que só a intervenção pública pode criar condições de maior igualdade, de justiça e de paz. À luz do princípio de subsidiariedade, porém, esta suplência institucional não se deve prolongar e estender além do estritamente necessário, já que encontra justificação somente no caráter excepcional da situação. Em todo caso, o bem comum corretamente entendido, cujas exigências não deverão de modo algum estar em contraste com a tutela e a promoção do primado da pessoa e das suas principais expressões sociais, deverá continuar a ser o critério de discernimento acerca da aplicação do princípio de subsidiariedade.
V. A PARTICIPAÇÃO
a) Significado e valor 189. Conseqüência característica da subsidiariedade é a participação[402], que se exprime, essencialmente, em uma série de atividades mediante as quais o cidadão, como indivíduo ou associado com outros, diretamente ou por meio de representantes, contribui para a vida cultural, econômica, política e social da comunidade civil a que pertence[403]: a participação é um dever a ser conscientemente exercitado por todos, de modo responsável e em vista do bem comum[404]. Ela não pode ser delimitada ou reduzida a alguns conteúdos particulares da vida social, dada a sua importância para o crescimento, humano antes de tudo, em âmbitos como o mundo do trabalho e as atividades econômicas nas suas dinâmicas internas[405], a informação e a cultura e, em grau máximo, a vida social e política até aos níveis mais altos, como são aqueles dos quais depende a colaboração de todos os povos para a edificação de uma comunidade internacional solidária[406]. Nesta perspectiva, torna-se imprescindível a exigência de favorecer a participação sobretudo dos menos favorecidos, bem como a alternância dos dirigentes políticos, a fim de evitar que se instaurem privilégios ocultos; é necessária ademais uma forte tensão moral para que a gestão da vida pública seja fruto da co-responsabilidade de cada um em relação ao bem comum. b) Participação e democracia 190 A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros[407], mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa[408]. Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha. 191 A participação pode ser obtida em todas as possíveis relações entre o cidadão e as instituições: para tanto, particular atenção deve ser dada aos contextos históricos e sociais em que esta pode verdadeiramente atuar-se. A superação dos obstáculos culturais, jurídicos e sociais que não raro se interpõem como verdadeiras barreiras à participação solidária dos cidadãos à sorte da própria comunidade exige uma autêntica obra informativa e educativa[409]. Merecem uma preocupada consideração, neste sentido, todas as atitudes que levam o cidadão a formas participativas insuficientes ou incorretas e à generalizada desafeição por tudo o que concerne à esfera da vida social e política: atente-se, por exemplo, para as tentativas dos cidadãos de «negociar» com as instituições as condições mais vantajosas para si, como se estas últimas estivessem ao serviço das necessidades egoísticas, e para a praxe de limitar-se à expressão da opção eleitoral, chegando também, em muitos casos, a abster-se dela[410]. No âmbito da participação, uma ulterior fonte de preocupação é representada pelos países de regime totalitário ou ditatorial, em que o fundamento do direito a participar da vida pública é negado na raiz, porque considerado como uma ameaça para o próprio Estado[411]; por outros países em que tal direito é só formalmente declarado, mas concretamente não se pode exercer; por outros ainda nos quais a elefantíase do aparato burocrático nega de fato ao cidadão a possibilidade de se propor como um verdadeiro ator da vida social e política[412].
VI. O PRINCÍPIO DE SOLIDARIEDADE
a) Significado e valor 192 A solidariedade confere particular relevo à intrínseca sociabilidade da pessoa humana, à igualdade de todos em dignidade e direitos, ao caminho comum dos homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta. Nunca como hoje, houve uma consciência tão generalizada do liame de interdependência entre os homens e os povos, que se manifesta em qualquer nível[413]. A rapidíssima multiplicação das vias e dos meios de comunicação «em tempo real», como são os telemáticos, os extraordinários progressos da informática, o crescente volume dos intercâmbios comerciais e das informações estão a testemunhar que, pela primeira vez desde o início da história da humanidade, ao menos tecnicamente, é já possível estabelecer relações também entre pessoas muito distantes umas das outras ou desconhecidos. Em face do fenômeno da interdependência e da sua constante dilatação, subsistem, por outro lado, em todo o mundo, desigualdades muito fortes entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, alimentadas também por diversas formas de exploração, de opressão e de corrupção, que influem negativamente na vida interna e internacional de muitos Estados. O processo de aceleração da interdependência entre as pessoas e os povos deve ser acompanhado com um empenho no plano ético-social igualmente intensificado, para evitar as nefastas conseqüências de uma situação de injustiça de dimensões planetárias, destinada a repercutir muito negativamente até nos próprios países atualmente mais favorecidos[414]. b) A solidariedade como princípio social e como virtude moral 193 As novas relações de interdependência entre homens e povos, que são de fato formas de solidariedade, devem transformar-se em relações tendentes a uma verdadeira e própria solidariedade ético-social, que é a exigência moral ínsita a todas as relações humanas. A solidariedade, portanto, se apresenta sob dois aspectos complementares: o de princípio social[415] e o de virtude moral[416]. A solidariedade deve ser tomada antes de mais nada, no seu valor de princípio social ordenador das instituições, em base ao qual devem ser superadas as «estruturas de pecado»[417], que dominam os relações entre as pessoas e os povos, devem ser superadas e transformadas em estruturas de solidariedade, mediante a criação ou a oportuna modificação de leis, regras do mercado, ordenamentos. A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral, não «um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»[418]. A solidariedade eleva-se ao grau de virtude social fundamental, pois se coloca na dimensão da justiça, virtude orientada por excelência para o bem comum, e na «aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para “perder-se” em benefício do próximo em vez de o explorar, e para “servi-lo” em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27)»[419]. c) Solidariedade e crescimento comum dos homens 194 A mensagem da doutrina social acerca da solidariedade põe de realce a existência de estreitos vínculos entre solidariedade e bem comum, solidariedade e destinação universal dos bens, solidariedade e igualdade entre os homens e os povos, solidariedade e paz no mundo[420]. O termo «solidariedade», amplamente empregado pelo Magistério[421], exprime em síntese a exigência de reconhecer, no conjunto dos liames que unem os homens e os grupos sociais entre si, o espaço oferecido à liberdade humana para prover ao crescimento comum, de que todos partilhem. A aplicação nesta direção se traduz no positivo contributo que não se há de deixar faltar à causa comum e na busca dos pontos de possível acordo, mesmo quando prevalece uma lógica de divisão e fragmentação; na disponibilidade a consumir-se pelo bem do outro, para além de todo individualismo e particularismo[422]. 195 O princípio da solidariedade comporta que os homens do nosso tempo cultivem uma maior consciência do débito que têm para com a sociedade na qual estão inseridos: são devedores daquelas condições que tornam possível vivível a existência humana, bem como do patrimônio, indivisível e indispensável, constituído da cultura, do conhecimento científico e tecnológico, dos bens materiais e imateriais, de tudo aquilo que a história da humanidade produziu. Um tal débito há de ser honrado nas várias manifestações do agir social, de modo que o caminho dos homens não se interrompa, mas continue aberto às gerações presentes e às futuras, chamadas juntas, umas e outras, a compartilhar na solidariedade do mesmo dom. d) A solidariedade na vida e na mensagem de Jesus Cristo 196 O vértice insuperável da perspectiva indicada é a vida de Jesus de Nazaré, o Homem novo, solidário com a humanidade até à «morte de cruz» (Fil 2,8): n’Ele é sempre possível reconhecer o Sinal vivente daquele amor incomensurável e transcendente do Deus-conosco, que assume as enfermidades do seu povo, caminha com ele, salva-o e o constitui na unidade[423]. N’Ele a solidariedade alcança as dimensões do mesmo agir de Deus. N’Ele, e graças a Ele, também a vida social pode ser redescoberta, mesmo com todas as suas contradições e ambigüidade, como lugar de vida e de esperança, enquanto sinal de uma graça que de continuo é a todos oferecida e que, enquanto dono, invita às formas mais altas e abrangentes de partilha. Jesus de Nazaré faz resplandecer aos olhos de todos os homens o nexo entre solidariedade e caridade, iluminando todo o seu significado[424]: «À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: “dar a vida pelos próprios irmãos” (cf. 1 Jo 3, 16)»[425].
VII. OS VALORES FUNDAMENTAIS DA VIDA SOCIAL
a) Relação entre princípios e valores 197 A doutrina social da Igreja, ademais dos princípios que devem presidir à edificação de uma sociedade digna do homem, indica também valores fundamentais. A relação entre princípios e valores é indubitavelmente de reciprocidade, na medida em que os valores sociais expressam o apreço que se deve atribuir àqueles determinados aspectos do bem moral que os princípios se propõem conseguir, oferecendo-se como pontos de referência para a oportuna estruturação e a condução ordenada da vida social. Os valores requerem, portanto, quer a prática dos princípios fundamentais da vida social, quer o exercício pessoal das virtudes, e, portanto, das atitudes morais correspondentes aos valores mesmos[426]. Todos os valores sociais são inerentes à dignidade da pessoa humana, da qual favorecem o autêntico desenvolvimento e são, essencialmente: a verdade, a liberdade, a justiça, o amor[427]. A sua prática constitui a via segura e necessária para alcançar um aperfeiçoamento pessoal e uma convivência social mais humana; eles constituem a referência imprescindível para os responsáveis pela coisa pública, chamados a realizar «as reformas substanciais das estruturas econômicas, políticas, culturais e tecnológicas e as mudanças necessárias nas instituições»[428]. O respeito pela legítima autonomia das realidades terrestres faz com que a Igreja não se reserve competências específicas de ordem técnica o temporal[429], mas não a impede de se pronunciar para mostrar como, nas diferentes opções do homem, tais valores são afirmados ou, vice-versa, negados[430]. b) A verdade 198 Os homens estão obrigados de modo particular a tender continuamente à verdade, a respeitá-la e a testemunhá-la responsavelmente[431]. Viver na verdadetem um significado especial nas relações sociais: a convivência entre os seres humanos em uma comunidade é efetivamente ordenada, fecunda e condizente com a sua dignidade de pessoas quando se funda na verdade[432]. Quanto mais as pessoas e os grupos sociais se esforçam por resolver os problemas sociais segundo a verdade, tanto mais se afastam do arbítrio e se conformam às exigências objetivas da moralidade. O nosso tempo exige uma intensa atividade educativa[433] e um correspondente empenho por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre toda tentativa de relativizar-lhe as exigências ou de causar-lhe qualquer tipo de ofensa[434]. É uma questão que incumbe especialmente ao mundo da comunicação pública e ao da economia. Neles, o uso descomedido do dinheiro faz com que surjam questões cada vez mais urgentes, que necessariamente reclamam uma necessidade de transparência e honestidade no agir pessoal e social. c) A liberdade 199 A liberdade é no homem sinal altíssimo da imagem divina e, conseqüentemente, sinal da sublime dignidade de toda pessoa humana[435]: «A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana»[436]. Não se deve restringir o significado da liberdade, considerando-a numa perspectiva puramente individualista e reduzindo-a ao exercício arbitrário e incontrolado da própria autonomia pessoal: «Longe de realizar-se na total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas»[437]. A compreensão da liberdade torna-se profunda e ampla na medida em que é tutelada, também no âmbito social, na totalidade das suas dimensões. 200 O valor da liberdade, enquanto expressão da singularidade de cada pessoa humana, é respeitado e honrado na medida em que se consente a cada membro da sociedade realizar a própria vocação pessoal; buscar a verdade e professar as próprias idéias religiosas, culturais e políticas; manifestar as próprias opiniões; decidir o próprio estado de vida e, na medida do possível, o próprio trabalho; assumir iniciativas de caráter econômico, social e político. Isto deve acontecer dentro de um «sólido contexto jurídico»[438], nos limites do bem comum e da ordem pública e, em todo caso, sob o signo da responsabilidade. A liberdade deve desdobrar-se, por outro lado, também como capacidade de recusa de tudo o que é moralmente negativo, seja qual for a forma em que se apresente[439], como capacidade de efetivo desapego de tudo o que possa obstar o crescimento pessoal, familiar e social. A plenitude da liberdade consiste na capacidade de dispor de si em vista do autêntico bem, no horizonte do bem comum universal[440]. d) A justiça 201 A justiça é um valor, que acompanha o exercício da correspondente virtude moral cardeal[441]. Segundo a sua formulação mais clássica, «ela consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido»[442]. Do ponto de vista subjetivo a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade de reconhecer o outro como pessoa, ao passo que, do ponto de vista objetivo, essa constitui o critério determinante da moralidade no âmbito inter-subjetivo e social[443]. O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: a comutativa, a distributiva, a legal[444]. Um relevo cada vez maior no Magistério tem adquirido a justiça social[445], que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da justiça geral, reguladora dos relações sociais com base no critério da observância da lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções[446]. 202 A justiça mostra-se particularmente importante no contexto atual, em que o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, a despeito das proclamações de intentos, é seriamente ameaçado pela generalizada tendência a recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade e do ter. Também a justiça, com base nestes critérios, é considerada de modo redutivo, ao passo que adquire um significado mais pleno e autêntico na antropologia cristã. A justiça, com efeito, não é uma simples convenção humana, porque o que é «justo» não é originariamente determinado pela lei, mas pela identidade profunda do ser humano[447]. 203 A plena verdade sobre o homem permite superar a visão contratualista da justiça, que é visão limitada, e abrir também para a justiça o horizonte da solidariedade e do amor: «A justiça sozinha não basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor»[448]. Ao valor da justiça a doutrina social da Igreja acosta o da solidariedade, enquanto via privilegiada da paz. Se a paz é fruto da justiça, «hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax: a paz é o fruto da solidariedade»[449]. A meta da paz, com efeito, «será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor»[450].
VIII. A VIA DA CARIDADE
204 Entre as virtudes no seu conjunto e, em particular, entre virtudes, valores sociais e caridade, subsiste um profundo liame, que deve ser cada vez mais acuradamente reconhecido. A caridade, não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, ou limitada aos aspectos somente subjetivos do agir para o outro, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social. Dentre todos os caminhos, mesmo os procurados e percorridos para enfrentar as formas sempre novas da atual questão social, o « mais excelente de todos» (1 Cor 12,31) é a via traçada pela caridade. 205 Os valores da verdade, da justiça, do amor e da liberdade nascem e se desenvolvem do manancial interior da caridade: a convivência humana é ordenada, fecunda de bens e condizente com a dignidade do homem, quando se funda na verdade; realiza-se segundo a justiça, ou seja, no respeito efetivo pelos direitos e no leal cumprimento dos respectivos deveres; é realizada na liberdade que condiz com a dignidade dos homens, levados pela sua mesma natureza racional a assumir a responsabilidade pelo próprio agir; é vivificada pelo amor, que faz sentir como próprias as carências e as exigências alheias e torna sempre mais intensas a comunhão dos valores espirituais e a solicitude pelas necessidades materiais[451]. Estes valores constituem pilastras das quais recebe solidez e consistência o edifício do viver e do agir: são valores que determinam a qualidade de toda a ação e instituição social. 206 A caridade pressupõe e transcende a justiça: esta última «deve ser completada pela caridade»[452]. Se a justiça «é, em si mesma, apta para “servir de árbitro” entre os homens na recíproca repartição justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos “misericórdia”), é capaz de restituir o homem a si próprio»[453]. Não se podem regular as relações humanas unicamente com a medida da justiça: «A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida humana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria»[454]. A justiça, com efeito, «em toda a gama das relações entre os homens, deve submeter-se, por assim dizer, a uma “correção” notável, por parte daquele amor que, como proclama S. Paulo, “é paciente” e “benigno”, ou por outras palavras, que encerra em si as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho como para o Cristianismo»[455]. 207 Nenhuma legislação, nenhum sistema de regras ou de pactos conseguirá persuadir homens e povos a viver na unidade, na fraternidade e na paz, nenhuma argumentação poderá superar o apelo da caridade. Somente a caridade, na sua qualidade de «forma virtutum»[456], pode animar e plasmar o agir social no contexto de um mundo cada vez mais complexo. Para que tudo isto aconteça, é necessário que se cuide de mostrar a caridade não só como inspiradora da ação individual, mas também como força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e para e renovar profundamente desde o interior das estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos. Nesta perspectiva, a caridade se torna caridade social e política: a caridade social nos leva a amar o bem comum[457] e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une. 208 A caridade social e política não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem, que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, mirando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto. Sob tantos aspectos, o próximo a ser amado se apresenta «em sociedade», de sorte que amá-lo realmente, prover às suas necessidades ou à sua indigência pode significar algo de diferente do bem que se lhes pode querer no plano puramente inter-individual: amá-lo no plano social significa, de acordo com as situações, valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência. Sem dúvida alguma, é um ato de caridade a obra de misericórdia com que se responde aqui e agora a uma necessidade real e impelente do próximo, mas é um ato de caridade igualmente indispensável o empenho com miras a organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial.
SEGUNDA PARTE
«... a doutrina social, por si mesma, tem o valor
de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto dos direitos humanos de cada um e, em particular, do «proletariado», da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida econômica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte...»Centesimus annus, 54)
CAPÍTULO V
A FAMÍLIA
CÉLULA VITAL DA SOCIEDADE
I. A FAMÍLIA PRIMEIRA SOCIEDADE NATURAL
209 A importância e a centralidade da família, em vista da pessoa e da sociedade, é repetidamente sublinhada na Sagrada Escritura: «Não é bom que o homem esteja só» (Gn 2,18). Desde os textos que narram a criação do homem (cf. Gn 1,26-28; 2,7-24), vem à tona como — no desígnio de Deus — o casal constitua « a primeira forma de comunhão de pessoas »[458]. Eva é criada semelhante a Adão, como aquela que, na sua alteridade, o completa (cf. Gn 2, 18) para formar com ele « uma só carne » (cf. Gn 2, 24)[459]. Ao mesmo tempo, ambos estão empenhados na tarefa da procriação, que faz deles colaboradores do Criador: « sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra » (Gn 1,28). A família delineia-se, no desígnio do Criador, como «lugar primário da “humanização” da pessoa e da sociedade» e «berço da vida e do amor»[460]. 210 Na família se aprende a conhecer o amor e a fidelidade do Senhor e a necessidade de corresponder-lhe (cf. Ex 12,25-27; 13,8.14-15; Dt 6,20-25; 13,7-11; l Sam 3,13); os filhos aprendem as primeiras e mais decisivas lições da sabedoria prática com que são conexas as virtudes (cf. Pr 1,8-9; 4,1-4; 6,20-21; Sir 3,1-16; 7,27-28). Por tudo isso, o Senhor se faz garante do amor e da fidelidade conjugal (cf. Mc 2,14-15). Jesus nasceu e viveu em uma família concreta acolhendo todas as características próprias desta vida[461] e conferiu uma excelsa dignidade ao instituto matrimonial, constituindo-o como sacramento da nova aliança (cf. Mt 19,3-9). Nesta perspectiva, o casal encontra toda a sua dignidade e a família, a sua própria solidez. 211 Iluminada pela luz da mensagem bíblica, a Igreja considera a família como a primeira sociedade natural, titular de direitos próprios e originários, e a põe no centro da vida social: relegar a família «a um papel subalterno e secundário, excluindo-a da posição que lhe compete na sociedade, significa causar um grave dano ao autêntico crescimento do corpo social inteiro»[462]. Efetivamente, a família, que nasce da íntima comunhão de vida e de amor fundada no matrimônio entre um homem e uma mulher[463], possui uma própria específica e originária dimensão social, enquanto lugar primário de relações interpessoais, célula primeira e vital da sociedade[464]: esta é uma instituição divina que colocada como fundamento da vida das pessoas, como protótipo de todo ordenamento social. a) A importância da família para a pessoa 212 A família é importante e central em relação à pessoa. Neste berço da vida e do amor, o homem nasce e cresce: quando nasce uma criança, à sociedade é oferecido o dom de uma nova pessoa, que é «chamada, desde o seu íntimo, à comunhão com os outros e à doação aos outros »[465]. Na família, portanto, o dom recíproco de si por parte do homem e da mulher unidos em matrimônio cria um ambiente de vida no qual a criança pode nascer e «desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino»[466]. No clima de natural afeto que liga os membros de uma comunidade familiar, as pessoas são reconhecidas e responsabilizadas na sua integralidade: «primeira e fundamental estrutura a favor da “ecologia humana” é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, conseqüentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa»[467]. As obrigações dos seus membros, de fato, não estão limitadas pelos termos de um contrato, mas derivam da essência mesma da família, fundada num pacto conjugal irrevogável e estruturada pelas relações que dele derivam após a geração ou a adoção dos filhos. b) A importância da família para a sociedade 213 A família, comunidade natural na qual se experimenta a sociabilidade humana, contribui de modo único e insubstituível para o bem da sociedade. A comunidade familiar nasce da comunhão das pessoas. «A “comunhão” diz respeito à relação pessoal entre o “eu” e o “tu”. A “comunidade”, pelo contrário, supera este esquema na direção de uma “sociedade”, de um “nós”. A família, comunidade de pessoas, é, pois, a primeira “sociedade” humana»[468]. Uma sociedade à medida da família é a melhor garantia contra toda a deriva de tipo individualista ou coletivista, porque nela a pessoa está sempre no centro da atenção enquanto fim e nunca como meio. É de todo evidente que o bem das pessoas e o bom funcionamento da sociedade, portanto, estão estreitamente conexos «com uma feliz situação da comunidade conjugal e familiar»[469]. Sem famílias fortes na comunhão e estáveis no compromisso os povos se debilitam. Na família são inculcados desde os primeiros anos de vida os valores morais, transmite-se o patrimônio espiritual da comunidade religiosa e o cultural da nação. Nela se dá a aprendizagem das responsabilidades sociais e da solidariedade[470]. 214 Há que se afirmar a prioridade da família em relação à sociedade e ao Estado. A família, de fato, ao menos na sua função procriadora, é a condição mesma da sua existência. Nas outras funções a favor de cada um dos seus membros ela precede, por importância e valor, as funções que a sociedade e o Estado também devem cumprir[471]. A família, sujeito titular de direitos nativos e invioláveis, encontra a sua legitimação na natureza humana e não no reconhecimento do Estado. A família não é, portanto, para a sociedade e para o Estado; antes, a sociedade e o Estado são para a família. Todo modelo social que pretenda servir ao bem do homem não pode prescindir da centralidade e da responsabilidade social da família. A sociedade e o Estado, nas suas relações com a família, têm o dever de ater-se ao princípio de subsidiariedade. Em força de tal princípio, as autoridades públicas não devem subtrair à família aquelas tarefas que pode bem perfazer sozinha ou livremente associada com outras famílias; por outro lado, as autoridades têm o dever de apoiar a família, assegurando-lhe todos os auxílios de que ela necessita para desempenhar de modo adequado a todas as suas responsabilidades[472]. II. O MATRIMÔNIO FUNDAMENTO DA FAMÍLIAa) O valor do matrimônio 215 A família tem o seu fundamento na livre vontade dos cônjuges de unir-se em matrimônio, no respeito dos significados e dos valores próprios deste instituto, que não depende do homem, mas do próprio Deus: « No intuito do bem, seja dos esposos como da prole e da sociedade, esse vínculo sagrado não depende do arbítrio humano. Mas o próprio Deus é o autor do matrimônio, dotado de vários valores e fins»[473]. O instituto do matrimônio ― « íntima comunhão de vida e de amor conjugal que o Criador fundou e dotou com Suas leis»[474] ― não é portanto uma criação devida a convenções humanas e a imposições legislativas, mas deve a sua estabilidade ao ordenamento divino[475]. É um instituto que nasce, mesmo para a sociedade, «do ato humano com o qual os cônjuges se dão e recebem mutuamente»[476] e se funda sobre a mesma natureza do amor conjugal que, enquanto dom total e exclusivo, de pessoa a pessoa, comporta um compromisso definitivo expresso com o consentimento recíproco, irrevogável e público[477]. Tal empenho comporta que as relações entre os membros da família sejam caracterizadas pelo sentido da justiça e, portanto, pelo respeito dos direitos e deveres recíprocos. 216 Nenhum poder pode abolir o direito natural ao matrimônio nem lhe modificar as características e a finalidade. O matrimônio, com efeito, é dotado de características próprias, originárias e permanentes. Não obstante as numerosas mudanças que pôde sofrer no curso dos séculos, nas várias culturas, estruturas sociais e atitudes espirituais, em todas as culturas, aliás, há um certo sentido da dignidade da união matrimonial, se bem que não transpareça por toda parte com a mesma clareza[478]. Tal dignidade deve ser respeitada nas suas características específicas, que exigem ser salvaguardadas de fronte a toda tentativa de deturpá-la. A sociedade não pode dispor do laço matrimonial, com o qual os dois esposos prometem mútua fidelidade, assistência e acolhimento dos filhos, mas está habilitada a disciplinar-lhe os efeitos civis. 217 O matrimônio tem como traços característicos: a totalidade, em força da qual os cônjuges se doam reciprocamente em todas as componentes da pessoa, físicas e espirituais; a unidade que os torna «uma só carne» (Gn 2,24); a indissolubilidade e a fidelidade que a doação recíproca definitiva exige; a fecundidade à qual ela naturalmente se abre[479]. O sapiente desígnio de Deus sobre o matrimônio — desígnio acessível à razão humana, não obstante as dificuldades devidas à dureza do coração (cf. Mt 19,8; Mc 10,5) — não pode ser avaliado exclusivamente à luz dos comportamentos de fato e das situações concretas que dele se afastam. É uma negação radical do desígnio original de Deus a poligamia, «porque contrária à igual dignidade pessoal entre o homem e a mulher, que no matrimônio se doam com um amor total e por isso mesmo único e exclusivo»[480]. 218 O matrimônio, na sua verdade «objetiva», está ordenado à procriação e à educação dos filhos[481]. A união matrimonial, de fato, leva a viver em plenitude aquele dom sincero de si, cujo fruto são os filhos, por sua vez dom para os pais, para a família toda e para toda a sociedade[482]. O matrimônio, porém, não foi instituído unicamente em vista da procriação[483]: o seu caráter indissolúvel e o seu valor de comunhão permanecem mesmo quando os filhos, ainda que vivamente desejados, não chegam a completar a vida conjugal. Neste caso, os esposos «podem mostrar a sua generosidade adotando crianças desamparadas ou prestando relevantes serviços em favor do próximo»[484]. b) O sacramento do matrimônio 219 A realidade humana e originária do matrimônio é vivida pelos batizados, por instituição de Cristo, na forma sobrenatural do sacramento, sinal e instrumento de Graça. A história da salvação é perpassada pelo tema da aliança esponsal, expressão significativa da comunhão de amor entre Deus e os homens e chave simbólica para compreender as etapas da grande aliança entre Deus e o Seu povo[485]. O centro da revelação do projeto de amor divino é o dom que Deus faz à humanidade do Filho Seu Jesus Cristo, «o Esposo que ama e se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo. Ele revela a verdade originária do matrimônio, a verdade do “princípio” (cf. Gn 2,24; Mt 19,5) e, libertando o homem da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente»[486]. Do amor esponsal de Cristo pela Igreja, que mostra a sua plenitude na oferta consumada na Cruz, promana a sacramentalidade do matrimônio, cuja Graça conforma o amor dos esposos ao Amor de Cristo pela Igreja. O matrimônio, enquanto sacramento, é uma aliança de um homem e uma mulher no amor[487]. 220 O sacramento do matrimônio assume a realidade humana do amor conjugal em todas as implicações e «habilita e empenha os cônjuges e os pais cristãos a viver a sua vocação de leigos, e por tanto a “procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus”»[488]. Intimamente unida à Igreja em força do vínculo sacramental que a torna Igreja doméstica ou pequena Igreja, a família cristã é chamada «a ser sinal de unidade para o mundo e a exercer deste modo o seu papel profético, testemunhando o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha»[489]. A caridade conjugal, que promana da caridade mesma de Cristo, oferecida através do Sacramento, torna os cônjuges cristãos testemunhas de uma sociabilidade nova, inspirada no Evangelho e no Mistério Pascal. A dimensão natural do seu amor é constantemente purificada, consolidada e elevada pela graça sacramental. Deste modo, os cônjuges cristãos, ademais de ajudar-se reciprocamente no caminho de santificação, convertem-se em sinal e instrumento da caridade de Cristo no mundo. Com a sua própria vida eles são chamados a ser testemunhas e anunciadores do significado religioso do matrimônio, que a sociedade atual sente sempre mais dificuldade em reconhecer, especialmente quando acolhe visões que tendem a relativizar até mesmo o fundamento natural do instituto matrimonial.
III. A SUBJETIVIDADE SOCIAL DA FAMÍLIA
a) O amor e a formação de uma comunidade de pessoas221 A família propõe-se como espaço daquela comunhão, tão necessário em uma comunidade cada vez mais individualista, no qual fazer crescer uma autêntica comunidade de pessoas[490], graças ao incessante dinamismo do amor, que é a dimensão fundamental da experiência humana e que tem precisamente na família um lugar privilegiado para manifestar-se: «O amor faz com que o homem se realize através do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que não se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer»[491]. Graças ao amor, realidade essencial para definir o matrimônio e a família, toda pessoa, homem e mulher, é reconhecida, acolhida e respeitada na sua dignidade. Do amor nascem relações vividas sob o signo da gratuidade, a qual «respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade profunda»[492]. A existência de famílias que vivem em tal espírito põem a nu as carências e as contradições de uma sociedade orientada preponderantemente, quando não exclusivamente, por critérios de eficiência e de funcionalidade. A família, que vive construindo todos os dias uma rede de relações interpessoais, internas e externas, põe-se por sua vez como «a primeira e insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor»[493]. 222 O amor se expressa também mediante uma pressurosa atenção para com os anciães que vivem na família: a sua presença pode assumir um grande valor. Eles são o exemplo de conexão entre as gerações, uma riqueza para o bem-estar da família e de toda a sociedade: «Não só podem dar testemunho de que existem aspectos da vida, como os valores humanos e culturais, morais e sociais, que não se medem em termos econômicos e funcionais, mas oferecer também o seu contributo eficaz no âmbito do trabalho e no da responsabilidade. Trata-se, por fim, não só de fazer algo pelos idosos, mas de aceitar também estas pessoas como colaboradores responsáveis, com modalidades que o tornem realmente possível, como agentes de projetos partilhados, em fase de programação, de diálogo ou de realização»[494]. Como diz a Sagrada Escritura, as pessoas «na velhice ainda darão frutos» (Sal 92, 15). Os anciães constituem uma importante escola de vida, capaz de transmitir valores e tradições e de favorecer o crescimento dos mais jovens, os quais desse modo aprendem a buscar não somente o próprio bem, mas também o de outrem. Se os anciães se encontram em uma situação de sofrimento e dependência, necessitam não só de cuidados médicos e de uma assistência apropriada, mas sobretudo de ser tratados com amor. 223 O ser humano é feito para amar e sem amor não pode viver. Quando se manifesta no dom total de duas pessoas na sua complementaridade, o amor não pode ser reduzido às emoções e aos sentimentos, nem tampouco à sua mera expressão sexual. Uma sociedade que tende cada vez mais a relativizar e a banalizar a experiência do amor e da sexualidade, exalta os aspectos efêmeros da vida e obscurece os seus valores fundamentais: torna-se cada vez mais urgente anunciar e testemunhar a verdade do amor e da sexualidade conjugal só existe onde se realiza um dom pleno e total das pessoas com as características da unidade e da fidelidade[495]. Tal verdade, fonte de alegria, de esperança e de vida, permanece impenetrável e inatingível enquanto se estiver fechado no relativismo e no ceticismo. 224 Em face das teorias que consideram a identidade de gênero somente o produto cultural e social derivante da interação entre a comunidade e o indivíduo, prescindindo da identidade sexual pessoal e sem referência alguma ao verdadeiro significado da sexualidade, a Igreja não se cansará de reafirmar o próprio ensinamento: «Cabe a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar sua identidade sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais são orientadas para os bens do casamento e para o desabrochar da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como se vivem entre os sexos a complementaridade, a necessidade e o apoio mútuos»[496]. Esta é uma perspectiva que faz considerar imprescindível a conformação do direito positivo com a lei natural, segundo a qual a identidade sexual é indisponível, porque é a condição objetiva para formar um casal no matrimônio. 225 A natureza do amor conjugal exige a estabilidade da relação matrimonial e a sua indissolubilidade. A falta destes requisitos prejudica a relação de amor exclusivo e total próprio do vínculo matrimonial, com graves sofrimentos para os filhos, com reflexos dolorosos também no tecido social. A estabilidade e a indissolubilidade da união matrimonial não devem ser confiadas exclusivamente à intenção e ao empenho de cada uma das pessoas envolvidas: a responsabilidade da tutela e da promoção da família como instituição natural fundamental, precisamente em consideração dos seus aspectos vitais e irrenunciáveis, compete à sociedade toda. A necessidade de conferir um caráter institucional ao matrimônio, fundando-o em um ato público, social e juridicamente reconhecido, deriva de exigências basilares de natureza social. A introdução do divórcio nas legislações civis, pelo contrário tem alimentado uma visão relativista do laço conjugal e se manifestou amplamente como uma verdadeira «chaga social»[497]. Os casais que conservam e desenvolvem o bem da indissolubilidade «cumprem … de um modo humilde e corajoso, o dever que lhes foi confiado de ser no mundo um “sinal” — pequeno e precioso sinal, submetido também às vezes à tentação, mas sempre renovado — da fidelidade infatigável com que Deus e Jesus Cristo amam todos os homens e cada homem»[498]. 226 A Igreja não abandona a si mesmos aqueles que, após um divórcio, tornaram a se casar. A Igreja reza por eles, anima-os nas dificuldades de ordem espiritual que encontram e os sustém na fé e na esperança. Por parte dessas pessoas, enquanto batizadas, podem, antes devem, participar da vida eclesial: são exortadas a escutar a Palavra de Deus, a freqüentar o sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a dar incremento às obras de caridade e às iniciativas da comunidade a favor da justiça e da paz, a educar os filhos na fé, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorar, dia após dia, a graça de Deus. A reconciliação no sacramento da penitência — que abriria a estrada ao sacramento eucarístico — pode ser concedida somente aos que, arrependidos, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio[499]. Assim agindo, a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à Sua verdade; ao mesmo tempo se comporta com ânimo materno em relação a estes filhos seus, especialmente para com aqueles que, sem sua culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge. Com firme confiança ela crê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor, e em tal estado ainda vivem, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se tiverem perseverado na oração, na penitência e na caridade[500]. 227 As uniões de fato, cujo número tem aumentado progressivamente, baseiam-se em uma falsa concepção da liberdade de opção dos indivíduos[501] e em uma concepção de todo privatista do matrimônio e da família. O matrimônio, de fato, não é um simples pacto de convivência, mas uma relação com uma dimensão social única em relação a todas as outras, enquanto a família, provendo à procriação e à educação dos filhos, se configura como instrumento primário para o crescimento integral de cada pessoa e para a sua positiva inserção na vida social. A eventual equiparação legislativa entre família e «uniões de fato» traduzir-se-ia em um descrédito do modelo de família, que não se pode realizar em uma precária relação entre pessoas[502], mas somente em uma união permanente originada por um matrimônio, isto é, pelo pacto entre um homem e uma mulher, fundado sobre uma escolha recíproca e livre que implica a plena comunhão conjugal orientada para a procriação. 228 Uma problemática particular ligada às uniões de fato é a concernente à demanda de reconhecimento jurídico das uniões homossexuais, cada vez mais objeto de debate público. Somente uma antropologia correspondente à plena verdade do homem pode dar uma resposta apropriada ao problema, que apresenta diversos aspectos, quer no plano social quer no eclesial[503]. À luz de tal antropologia revela-se «como é incongruente a pretensão de atribuir uma realidade “conjugal” à união entre pessoas do mesmo sexo. A ela opõe-se, antes de tudo, a impossibilidade objetiva de fazer frutificar o conúbio mediante a transmissão da vida, segundo com o projeto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano. Serve de obstáculo, além disso, a ausência dos pressupostos para aquela complementaridade interpessoal que o Criador quis, tanto no plano físico-biológico quanto no plano eminentemente psicológico, entre o homem e a mulher. É só na união entre duas pessoas sexualmente diferentes que se pode realizar o aperfeiçoamento do indivíduo, numa síntese de unidade e de mútua complementação psicofísica»[504]. A pessoa homossexual deve ser plenamente respeitada na sua dignidade humana[505] e encorajada a seguir o plano de Deus com um empenho particular no exercício da castidade[506]. O respeito que se lhes deve não significa legitimação de comportamentos não conformes com a lei moral, nem tampouco o reconhecimento de um direito ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, com a conseqüente equiparação de tal união à família[507]: « Se, do ponto de vista legal, o matrimônio entre duas pessoas de sexo diferente for considerado apenas como um dos matrimônios possíveis, o conceito de matrimônio sofrerá uma alteração radical, com grave prejuízo para o bem comum. Colocando a união homossexual num plano jurídico análogo ao do matrimônio ou da família, o Estado comporta-se de modo arbitrário e entra em contradição com os próprios deveres»[508]. 229 A solidez do núcleo familiar é um recurso determinante para a qualidade da convivência social, por isso a comunidade civil não pode ficar indiferente de fronte às tendências desagregadoras que minam na base as suas pilastras fundamentais. Se uma legislação pode por vezes tolerar comportamentos moralmente inaceitáveis[509], não deve jamais debilitar o reconhecimento do matrimônio monogâmico indissolúvel qual única forma autêntica da família. É portanto necessário que se atue «também junto das autoridades públicas, para que, resistindo a estas tendências desagregadoras da própria sociedade e prejudiciais à dignidade, segurança e bem-estar dos cidadãos, a opinião pública não seja induzida a menosprezar a importância institucional do matrimônio e da família»[510]. É tarefa da comunidade cristã e de todos aqueles que tomam a peito o bem da sociedade reafirmar que «a família constitui, mais do que uma unidade jurídica, social e econômica, uma comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar dos próprios membros e da sociedade»[511]. b) A família é o santuário da vida 230 O amor conjugal é por sua natureza aberto ao acolhimento da vida[512]. Na tarefa procriadora revela-se de modo eminente a dignidade do ser humano, chamado a ser interprete da bondade e da fecundidade que provêm de Deus: «A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma “semelhança” com Deus, sobre a qual se funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (communio personarum)»[513]. A procriação expressa a subjetividade social da família e dá início a um dinamismo de amor e de solidariedade entre as gerações que está na base da sociedade. É preciso redescobrir o valor social de partícula do bem comum ínsito em cada novo ser humano: cada criança «faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. A sua vida torna-se dom para os próprios doadores da vida, que não poderão deixar de sentir a presença do filho, a sua participação na existência deles, o seu contributo para o bem comum deles e da família»[514]. 231 A família fundada no matrimônio é deveras o santuário da vida, «o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico»[515]. Determinante e insubstituível é e deve ser considerado o seu papel para promover e construir a cultura da vida[516] contra a difusão de uma « “anticivilização” destruidora, como se confirma hoje por tantas tendências e situações de fato »[517]. As famílias cristãs, em força do sacramento recebido, têm a missão peculiar de ser testemunhas e anunciadoras do Evangelho da vida. É um empenho que assume na sociedade o valor de verdadeira e corajosa profecia. É por este motivo que «servir o Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam»[518]. 232 A família contribui de modo eminente para o bem social através da paternidade e da maternidade responsáveis, formas peculiares da especial participação dos cônjuges na obra criadora de Deus[519]. O ônus de uma semelhante responsabilidade não pode ser invocada para justificar fechamentos egoísticos, mas deve guiar as escolhas dos cônjuges para um generoso acolhimento da vida: «Em relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável exerce-se tanto com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa, como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento»[520]. As motivações que devem guiar os esposos no exercício responsável da paternidade e da maternidade derivam do pleno reconhecimento dos próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores. 233 Quanto aos «meios» para atuar a procriação responsável, há que se excluir como moralmente ilícitos tanto a esterilização como o aborto[521]. Este último, em particular, é um abominável delito e constitui sempre uma desordem moral particularmente grave[522]; longe de ser um direito, é antes um triste fenômeno que contribui gravemente para a difusão de uma mentalidade contra a vida, ameaçando perigosamente uma convivência social justa e democrática[523]. É igualmente de excluir o recurso aos meios contraceptivos nas suas diversas formas[524]: tal rejeição tem o seu fundamento numa concepção correta e integral da pessoa e da sexualidade humana[525] e tem o valor de uma instância moral em defesa da verdadeira humanização dos povos[526]. As mesmas razões de ordem antropológica justificam, pelo contrário, como lícito o recurso à abstinência periódica nos períodos de fertilidade feminina[527]. Rejeitar a contracepção e recorrer aos métodos naturais de regulação da fertilidade significa modelar as relações interpessoais entre os cônjuges com base no respeito recíproco e no total acolhimento, com reflexos positivos também para a realização de uma ordem social mais humana. 234 O juízo acerca do intervalo entre os nascimentos e o número dos filhos a procriar compete somente aos esposos. Este é um seu direito inalienável, a ser exercitado diante de Deus, considerando os deveres para consigo mesmos, para com os filhos já nascidos, a família e a sociedade[528]. A intervenção dos poderes públicos, no âmbito das suas competências, para a difusão de uma informação apropriada e a adoção de medidas oportunas em campo demográfico, deve ser efetuada no respeito das pessoas e da liberdade dos casais: ninguém os pode substituir nas suas opções[529]; tampouco o podem fazer as várias organizações que atuam neste setor. São moralmente condenáveis como atentados à dignidade da pessoa e da família, todos os programas de ajuda econômica destinados a financiar campanhas de esterilização e de contracepção ou subordinadas à aceitação de tais campanhas. A solução das questões conexas ao crescimento demográfico deve ser antes perseguida no simultâneo respeito tanto da moral sexual e como da moral social, promovendo uma maior justiça e autêntica solidariedade para dar por todo lado dignidade à vida, a começar das condições econômicas, sociais e culturais. 235 O desejo de maternidade ou paternidade não funda algum « direito ao filho », ao passo que, pelo contrário, são evidentes os direitos do nascituro, a quem devem ser garantidas as condições ótimas de existência, através da estabilidade da família fundada no matrimônio, a complementaridade das duas figuras, paterna e materna[530]. O rápido progresso da pesquisa e das aplicações técnicas na esfera da reprodução põe novas e delicadas questões que chamam em causa a sociedade e as normas que regulam a convivência humana. É preciso reafirmar que não são eticamente aceitáveis todas as técnicas reprodutivas — quais a doação de esperma ou de ovócitos; a maternidade substitutiva; a fecundação artificial heteróloga — que prevêem o recurso ao útero ou a gametas de pessoas estranhas ao casal conjugal, lesando o direito do filho a nascer de um pai e de uma mãe que sejam tais tanto do ponto de vista biológico como jurídico, ou dissociam o ato unitivo do ato procriador recorrendo a técnicas de laboratório, quais a inseminação e a fecundação artificial homóloga, de modo que o filho aparece mais como o resultado de um ato técnico do que como o fruto natural do ato humano de plena e total doação dos cônjuges[531]. Evitar o recurso às diversas formas da chamada procriação assistida, substitutiva do ato conjugal, significa respeitar — seja nos pais seja nos filhos que eles pretendem gerar — a dignidade integral da pessoa humana[532]. São lícitos, pelo contrário, os meios que se configuram como ajuda ao ato conjugal ou ao conseguimento dos seus efeitos[533]. 236 Uma questão de particular relevância social e cultural, pelas múltiplas e graves implicações morais que apresenta, é a referente à clonagem humana, termo que, de per si, em sentido genérico, significa reprodução de uma entidade biológica geneticamente idêntica à de origem. Ela tem assumido, no pensamento e na praxe experimental, diversos significados que supõem, por sua vez, procedimentos diversos do ponto de vista das modalidades técnicas de realização, bem como finalidades diferentes. Pode significar a simples replicação em laboratório de células ou de porções de ADN. Mas especificamente hoje se entende a reprodução de indivíduos, no estado embrional com modalidades diferentes da fecundação natural e de modo que sejam geneticamente idênticos ao indivíduo de quem têm origem. Este tipo de clonagem pode ter a finalidade reprodutiva de embriões humanos ou a assim chamada terapêutica, tendente a utilizar tais embriões para fins de pesquisa científica ou mais especificamente para a reprodução de células tronco. Do ponto de vista ético a simples replicação de células normais ou de porções de ADN não apresenta problemas éticos particulares. Bem distinto é o juízo do Magistério sobre a clonagem propriamente dita. É contrária à dignidade da procriação humana porque se realiza em ausência total do ato de amor pessoal entre os esposos, sendo uma reprodução agâmica e assexuada[534]. Em segundo lugar este tipo de reprodução representa uma forma de domínio total sobre o indivíduo reproduzido por parte de quem o reproduz[535]. O fato de que seja realizada a clonagem para reproduzir embriões dos quais tirar células que possam ser usadas para a terapia não atenua a gravidade moral, mesmo porque para tirar tais células o embrião deve ser primeiro produzido e depois suprimido[536]. 237 Os pais, como ministros da vida, não devem nunca olvidar que a dimensão espiritual da procriação merece uma consideração superior à reservada a qualquer outro aspecto: «A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente física e espiritual; através delas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princípio eterno em Deus e a Ele deve conduzir»[537]. Acolhendo a vida humana na unidade das suas dimensões, físicas e espirituais, as famílias contribuem para a «comunhão das gerações» continuidade da espécie e dão, deste modo, um contributo essencial e insubstituível para o progresso da sociedade. Por isto, «a família tem o direito à assistência da sociedade no que se refere aos seus deveres na procriação e educação dos filhos. Os casais casados com família numerosa têm direito a uma ajuda adequada e não devem ser discriminados»[538]. c) A tarefa educativa 238. Com a obra educativa, a família forma o homem para a plenitude da sua dignidade pessoal, segundo todas as suas dimensões, inclusive a social. A família constitui, efetivamente, «una comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem-estar de seus próprios membros e da sociedade»[539]. Exercendo a sua missão educativa, a família contribui para o bem comum e constitui a primeira escola das virtudes sociais, de que todas as sociedades necessitam[540]. As pessoas são ajudadas, em família, a crescer na liberdade e na responsabilidade, requisitos indispensáveis para se assumir qualquer tarefa na sociedade. Com a educação, ademais, são comunicados, para serem assimilados e feitos próprios por cada um, alguns valores fundamentais, necessários para ser cidadãos livres, honestos e responsáveis[541]. 239 A família tem um papel de todo original e insubstituível na educação dos filhos[542]. O amor paterno e materno, colocando-se ao serviço dos filhos para extrair deles («e-ducere») o melhor de si, tem a sua plena realização precisamente na tarefa educativa: «o amor dos pais de fonte torna-se alma e, portanto, norma, que inspira e guia toda a ação educativa concreta, enriquecendo-a com aqueles valores de docilidade, constância, bondade, serviço, desinteresse, espírito de sacrifício, que são o fruto mais precioso do amor»[543]. O direito-dever dos pais de educar a prole se qualifica «como essencial, ligado como está à transmissão da vida humana; como original e primário, em relação ao dever de educar dos outros, pela unicidade da relação de amor que subsiste entre pais e filhos; como insubstituível e inalienável, e portanto, não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável»[544]. Os pais têm o direito-dever de oferecer uma educação religiosa e uma formação moral aos seus filhos[545]: direito que não pode ser cancelado pelo Estado, mas deve ser respeitado e promovido; dever primário, que a família não pode descurar nem delegar. 240 Os pais são os primeiros, mas não os únicos educadores de seus filhos. Compete-lhes, pois, a eles exercer com sentido de responsabilidade a sua obra educativa em colaboração estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais: «a dimensão comunitária, civil e eclesial do homem exige e conduz a uma obra mais ampla e articulada, que seja o fruto da colaboração ordenada das diversas forças educativas. Estas forças são todas elas necessárias, mesmo que cada uma possa e deva intervir com a sua competência e o seu contributo próprio»[546]. Os pais têm o direito de escolher os instrumentos formativos correspondentes às próprias convicções e de buscar os meios que possam ajudá-los da melhor maneira na sua tarefa de educadores, mesmo no âmbito espiritual e religioso. As autoridades públicas têm o dever de garantir tal direito e de assegurar as condições concretas que consentem o seu exercício[547]. Neste contexto, se coloca antes de mais o tema da colaboração entre a família e a instituição escolar. 241. Os pais têm o direito de fundar e manter instituições educativas. As autoridades públicas devem assegurar que «se distribuam as subvenções públicas de modo tal que os pais sejam verdadeiramente livres para exercer o seu direito, sem ter de suportar ônus injustos. Os pais não devem ser constrangidos a fazer, nem direta nem indiretamente, despesas suplementares que impeçam ou limitem injustamente o exercício desta liberdade»[548]. Deve-se, portanto, considerar uma injustiça negar a subvenção econômica pública às escolas não estatais que dela necessitem e que prestam um serviço à sociedade civil: «Quando o Estado reivindica para si o monopólio escolar, ultrapassa os seus direitos e ofende a justiça... o Estado não pode, sem cometer injustiça, limitar-se a tolerar as escolas ditas privadas. Estas prestam um serviço público e, de conseqüência, têm o direito de ser ajudadas economicamente»[549]. 242. A família tem a responsabilidade de oferecer uma educação integral. Toda a verdadeira educação, efetivamente, «visa o aprimoramento da pessoa humana em relação a seu fim último e o bem das sociedades de que o homem é membro, e em cujas tarefas, uma vez adulto, terá que participar»[550]. A integralidade fica assegurada quando os filhos — com o testemunho de vida e com a palavra — são educados para o diálogo, para o encontro, para a sociabilidade, para a legalidade, para a solidariedade e para a paz, mediante o cultivo das virtudes fundamentais da justiça e da caridade[551]. Na educação dos filhos, o papel paterno e o materno são igualmente necessários[552]. Os pais devem, pois, agir conjuntamente. A autoridade deve ser por eles exercida com respeito e delicadeza, mas também com firmeza e vigor: deve ser credível, coerente, sábia e sempre orientada ao bem integral dos filhos. 243 Os pais têm ainda uma particular responsabilidade na esfera da educação sexual. É de fundamental importância, para um crescimento equilibrado, que os filhos aprendam de modo ordenado e progressivo o significado da sexualidade e aprendam a apreciar os valores humanos e morais relativos a ela: «Pelos laços estreitos que ligam a dimensão sexual da pessoa e os seus valores éticos, o dever educativo deve conduzir os filhos a conhecer e a estimar as normas morais como necessária e preciosa garantia para um crescimento pessoal responsável na sexualidade humana»[553]. Os pais têm a obrigação de verificar o modo como se realiza a a educação sexual nas instituições educativas, a fim de garantir que um tema tão importante e delicado seja abordado de modo apropriado. d) A dignidade e os direitos das crianças 244 A doutrina social da Igreja indica constantemente a exigência de respeitar a dignidade das crianças: «Na família, comunidade de pessoas, deve reservar-se uma especialíssima atenção à criança, desenvolvendo uma estima profunda pela sua dignidade pessoal como também um grande respeito e um generoso serviço pelos seus direitos. Isto vale para cada criança, mas adquire uma urgência singular quanto mais pequena e desprovida, doente, sofredora ou diminuída for a criança»[554]. Os direitos das crianças devem ser protegidos pelos ordenamentos jurídicos. É necessário, antes de tudo, o reconhecimento público em todos os países do valor social da infância: «Nenhum país do mundo, nenhum sistema político pode pensar ao próprio porvir diversamente, senão através da imagem destas novas gerações, que hão de assumir de seus progenitores o multíplice patrimônio dos valores, dos deveres e das aspirações da nação à qual pertencem, juntamente com o patrimônio de toda a família humana»[555]. O primeiro direito da criança é o direito «a nascer numa verdadeira família»[556], um direito cujo respeito sempre foi problemático e que hoje conhece novas formas de violação devidas ao progresso das técnicas genéticas. 245 A situação de uma grande parte das crianças no mundo está longe de ser satisfatória, por falta de condições que favoreçam o seu crescimento integral, apesar da existência de um instrumento jurídico internacional específico para a tutela dos direitos da criança[557], que empenha quase todos os membros da comunidade internacional. Trata-se de condições ligadas à falta de serviços sanitários, de uma alimentação adequada, de possibilidade de receber um mínimo de formação escolar e de uma casa. Permanecem irresolutos, ademais, alguns problemas gravíssimos: o tráfico de crianças, o trabalho infantil, o fenômeno dos “meninos de rua”, o uso de crianças em conflitos armados, o matrimônio das meninas, o uso de crianças para o comércio de material pornográfico, também através dos mais modernos e sofisticados instrumentos de comunicação social. É indispensável combater, em âmbito nacional e internacional, as gravíssimas ofensas à dignidade dos meninos e das meninas derivadas da exploração sexual, das pessoas dadas à pedofilia e das violências de todo e qualquer tipo, sofridas por estas pessoas humanas mais indefesas[558]. Trata-se de atos gravíssimos e delituosos, que devem ser eficazmente combatidos, com medidas preventivas e penais, através de uma ação enérgica das autoridades.
IV. A FAMÍLIA PROTAGONISTA DA VIDA SOCIAL
a) Solidariedade familiar 246 A subjetividade social das famílias, tanto singularmente tomadas como associadas, exprime-se ademais com múltiplas manifestações de solidariedade e de partilha, não somente entre as próprias famílias, como também mediante várias formas de participação na vida social e política. Trata-se da conseqüência da realidade familiar fundada no amor: nascendo do amor e crescendo no amor, a solidariedade pertence à família como dado constitutivo e estrutural. É uma solidariedade que pode assumir o rosto do serviço e da atenção a quantos vivem na pobreza e na indigência, aos órfãos, aos deficientes, aos enfermos, aos anciães, a quem está em luto, a todos os que estão na dúvida, na solidão ou no abandono; uma solidariedade que se abre ao acolhimento, à guarda ou à adoção; que sabe fazer-se voz de toda a situação de mal-estar junto das instituições, para que estas intervenham de acordo com as próprias finalidades específicas. 247 As famílias, longe de ser somente objeto de ação política, podem e devem ser sujeito de tal atividade, diligenciando «para que as leis e as instituições do Estado não só não ofendam, mas sustentem e defendam positivamente os seus direitos e deveres. Em tal sentido as famílias devem crescer na consciência de serem “protagonistas” da chamada «política familiar» e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade»[559]. Para tanto, deve ser corroborado o associacionismo familiar: «As famílias têm o direito de formar associações com outras famílias e instituições, para desempenhar o papel da família de modo conveniente e efetivo, como também para proteger os direitos, promover o bem e representar os interesses da família. No plano econômico, social, jurídico e cultural, deve ser reconhecido o legítimo papel das famílias e das associações familiares na elaboração e na atuação dos programas que dizem respeito à vida da família»[560]. b) Família, vida econômica e trabalho 248 A relação que intercorre entre a família e a vida econômica é particularmente significativa. Por uma parte, com efeito, a «eco-nomia» nasceu do trabalho doméstico: a casa foi por longo tempo, e ainda ― em muitos lugares — continua a ser, unidade de produção e centro de vida. O dinamismo da vida econômica, por outra parte, se desenvolve com a iniciativa das pessoas e se realiza, segundo círculos concêntricos, em redes cada vez mais vastas de produção e de troca de bens e de serviços, que envolvem em medida crescente as famílias. A família, portanto, há de ser considerada, com todo o direito, como protagonista essencial da vida econômica, orientada não pela lógica do mercado, mas segundo a lógica da partilha e da solidariedade entre as gerações. 249 Uma relação absolutamente particular liga a família e o trabalho: «a família constitui um dos mais importantes termos de referência, segundo os quais tem de ser formada a ordem sócio-ética do trabalho humano»[561].Tal relação tem suas raízes na relação que intercorre entre a pessoa e o seu direito a possuir o fruto do próprio trabalho, e diz respeito não somente ao indivíduo enquanto tal, mas também como membro de uma família, concebida como «sociedade doméstica»[562]. O trabalho é essencial enquanto representa a condição que torna possível a fundação de uma família, cujos meios de subsistência se obtêm mediante o trabalho. O trabalho condiciona também o processo de crescimento das pessoas, pois uma família vítima do desemprego corre o risco de não realizar plenamente as suas finalidades[563]. O contributo que a família pode oferecer à realidade do trabalho é precioso e, sob muitos aspectos, insubstituível. É um contributo que se expressa quer em termos econômicos quer mediante os grandes recursos de solidariedade que a família possui e que constituem um importante apoio para quem, dentro dela, se acha sem trabalho ou está à procura de um emprego. Sobretudo e mais radicalmente, é um contributo que se realiza com a educação para o sentido do trabalho e mediante a oferta de orientações e apoios em face das mesmas opções profissionais. 250 Para tutelar esta relação essencial entre família e trabalho, um elemento a estimar e salvaguardar é o salário-família, ou seja, um salário suficiente para manter e fazer viver dignamente a família[564]. Tal salário deve também permitir a realização de uma poupança que favoreça a aquisição de uma certa propriedade, como garantia de liberdade: o direito à propriedade é estreitamente ligado à existência das famílias, que se põem ao abrigo da necessidade também graças à poupança e à constituição de uma propriedade familiar[565]. Vários podem ser os modos para concretizar o salário familiar. Concorrem para determiná-lo algumas importantes medidas sociais, como os abonos familiares e outros contributos para as pessoas que dependem da família, como também a remuneração do trabalho doméstico de um dos genitores[566]. 251 Nas relações entre família e trabalho, uma atenção particular deve ser reservada ao trabalho da mulher em família, o assim chamado trabalho de atenção, que chama em causa também as responsabilidades do homem como marido e como pai. O trabalho de atenção, a começar daquele da mãe, precisamente porque finalizado e dedicado ao serviço da qualidade da vida, constitui um tipo de atividade laboral eminentemente pessoal e personalizante, que deve ser socialmente reconhecida e valorizada[567], também através de uma remuneração econômica pelo menos equivalente à de outros trabalhos[568]. Ao mesmo tempo, é necessário eliminar todos os obstáculos que impedem aos esposos exercer livremente a sua responsabilidade procriadora e, em particular, os que constrangem a mulher a não realizar plenamente as suas funções maternas[569]. 252 O ponto de partida para uma relação correta e construtiva entre a família e a sociedade é o reconhecimento da subjetividade e da prioridade social da família. A sua íntima relação impõe que «a sociedade não abandone o seu dever fundamental de respeitar e de promover a família»[570]. A sociedade e, em particular, as instituições estatais — no respeito da prioridade e «antecedência» da família — são chamadas a garantir e a favorecer a genuína identidade da vida familiar e a evitar e combater tudo o que a altere ou fira. Isto requer que a ação política e legislativa salvaguarde os valores da família, desde a promoção da intimidade e da convivência familiar, até ao respeito da vida nascente, à efetiva liberdade de opção na educação dos filhos. A sociedade e o Estado não podem, portanto, nem absorver, nem substituir, nem reduzir a dimensão social da família mesma; deve antes honrá-la, reconhecê-la, respeitá-la e promovê-la segundo o princípio de subsidiariedade[571]. 253 O serviço da sociedade à família se concretiza no reconhecimento, no respeito e na promoção dos direitos da família[572]. Tudo isto requer a realização de políticas familiares autênticas e eficazes com intervenções precisas aptas para responder às necessidades que derivam dos direitos da família como tal. Nesse sentido, é necessário o pré-requisito, essencial e irrenunciável, do reconhecimento — que comporta a tutela, a valorização e a promoção — da identidade da família, sociedade natural fundada sobre o matrimônio. Tal reconhecimento traça uma linha de demarcação clara entre a família propriamente entendida e as outras convivências, que da família — pela sua natureza — não podem merecer nem o nome nem o estatuto. 254 O reconhecimento, por parte das instituições civis e do Estado, da prioridade da família sobre qualquer outra comunidade e sobre a própria realidade estatal, leva a superar as concepções meramente individualistas e a assumir a dimensão familiar como perspectiva, cultural e política, irrenunciável na consideração das pessoas. Isto não se põe como alternativa, mas como suporte e tutela dos direitos mesmos que as pessoas têm individualmente. Tal perspectiva torna possível elaborar critérios normativos para uma solução correta dos diversos problemas sociais, pois as pessoas não devem ser consideradas só singularmente, como também em relação aos núcleos familiares em que estão inseridas, cujos valores específicos e exigências se devem ter na devida conta.
CAPÍTULO VI
O TRABALHO HUMANO
I. ASPECTOS BÍBLICOS
a) A tarefa de submeter a terra255 O Antigo Testamento apresenta Deus como criador onipotente (cf. Gên 2, 2; Jó 38-41; Sal 103[104]; Sal 146-147[147]), que plasma o homem à Sua imagem e o convida a cultivar a terra (cf. Gên 2, 5-6) e a guardar o jardim do Éden em que o pôs (cf. Gên 2, 15). Ao primeiro casal humano Deus confia a tarefa de submeter a terra e de dominar sobre todo ser vivente (cf. Gn 1, 28). O domínio do homem sobre os demais seres viventes não deve todavia ser despótico e destituído de bom senso; pelo contrario ele deve «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15) os bens criados por Deus: bens que o homem não criou, mas os recebeu como um dom precioso posto pelo Criador sob a sua responsabilidade. Cultivara terra significa não abandoná-la a si mesma; exercer domínio sobre ela e guardá-la, assim como um rei sábio cuida do seu povo e um pastor, da sua grei. No desígnio do Criador, as realidades criadas, boas em si mesmas, existem em função do homem. O deslumbramento ante o mistério da grandeza do homem faz exclamar ao salmista: «que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino, de glória e honra o coroaste. Deste-lhe o domínio sobre as obras de tuas mãos, tudo submeteste a seus pés» (Sal 8, 5-7). 256 O trabalho pertence à condição originária do homem e precede a sua queda; não é, portanto, nem punição nem maldição. Este se torna fadiga e pena por causa do pecado de Adão e Eva, que quebrantam o seu relacionamento confiante e harmonioso com Deus (cf. Gn 3, 6-8). A proibição de comer «da árvore do conhecimento do bem e do mal» (Gên 2, 17) lembra ao homem que ele recebeu tudo como dom e que continua a ser uma criatura e não o Criador. O pecado de Adão e Eva foi provocado precisamente por esta tentação: «sereis como Deus» (Gn 3, 5). Eles quiseram ter o domínio absoluto sobre todas as coisas, sem se submeterem à vontade do Criador. Desde então o solo se torna avaro, ingrato, surdamente hostil (cf. Gn 4, 12); somente com o suor da fronte será possível extrair dele alimento (cf. Gn 3, 17.19). Não obstante o pecado dos progenitores, permanecem inalterados, todavia, o desígnio do Criador, o sentido das Suas criaturas e, dentre elas, do homem, chamado a ser cultivador e guardião da criação. 257 O trabalho deve ser honrado porque fonte de riqueza ou pelo menos condições de vida decorosas e, em geral, é instrumento eficaz contra a pobreza (cf. Pr 10, 4), mas não se deve ceder à tentação de idolatrá-lo, pois que nele não se pode encontrar o sentido último e definitivo da vida. O trabalho é essencial, mas é Deus — não o trabalho — a fonte da vida e o fim do homem. O princípio fundamental da Sabedoria, com efeito, é o temor do Senhor; a exigência da justiça, que daí deriva, precede a do lucro: « Vale mais o pouco com o temor do Senhor / que um grande tesouro com a inquietação » (Pr 15, 16). « Mais vale o pouco com justiça / do que grandes lucros com iniqüidade » (Pr 16, 8). 258 Ápice do ensinamento bíblico sobre o trabalho é o mandamento do repouso sabático. Para o homem, ligado à necessidade do trabalho, o repouso abre a perspectiva de uma liberdade mais plena, a do Sábado eterno (cf. Hb 4, 9-10). O repouso consente aos homens recordar e reviver as obras de Deus, da Criação à Redenção, e reconhecer-se a si próprios como obra Sua (cf. Ef 2, 10), dar-Lhe graças pela própria vida e subsistência a Ele, que é seu autor. A memória e a experiência do sábado constituem um baluarte contra a escravização do homem ao trabalho, voluntário ou imposto, contra toda forma de exploração, larvada ou manifesta. O repouso sabático, de fato, mais que para consentir a participação no culto de Deus, foi instituído em defesa do pobre; tem também uma função liberatória das degenerações anti-sociais do trabalho humano. Tal repouso, que pode durar até mesmo um ano, comporta uma expropriação dos frutos da terra a favor dos pobres e a suspensão dos direitos de propriedade dos donos do solo: «Durante seis anos, semearás a terra e recolherás o produto. Mas, no sétimo ano, deixá-la-ás repousar em alqueive; os pobres de teu povo comerão o seu produto, e os animais selvagens comerão o resto. Farás o mesmo com a tua vinha e o teu olival » (Ex 23, 10-11). Este costume corresponde a uma intuição profunda: o acúmulo de bens por parte de alguns pode tornar-se uma subtração de bens a outros. b) Jesus homem do trabalho 259 Na Sua pregação Jesus ensina a apreciar o trabalho. Ele mesmo, « se tornou semelhante a nós em tudo, passando a maior parte dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual »[573], na oficina de José (cf. Mt 13, 55; Mc 6, 3), a quem estava submisso (cf. Lc 2, 51). Jesus condena o comportamento do servo indolente, que esconde debaixo da terra o talento (cf. Mt 25, 14-30) e louva o servo fiel e prudente que o patrão encontra aplicado em cumprir a tarefa que lhe fora confiada (cf. Mt 24, 46). Ele descreve a Sua própria missão como um trabalhar: « Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também» (Jo 5, 17); e os seus discípulos como operários na messe do Senhor, que é a humanidade a evangelizar (cf. Mt 9, 37-38). Para estes operários vale o princípio geral segundo o qual « o operário é digno do seu salário» (Lc 10, 7); eles estão autorizados a permanecer nas casas em que forem acolhidos, a comer e a beber do que lhes for servido (cf. ibidem). 260 Na Sua pregação, Jesus ensina aos homens a não se deixarem escravizar pelo trabalho. Eles devem preocupar-se, antes de tudo, com a sua alma; ganhar o mundo o mundo inteiro não é o escopo de sua vida (cf. Mc 8, 36). Os tesouros da terra, com efeito, se consomem, ao passo que os tesouros do céu são imperecedouros: a estes se deve ligar o próprio coração (cf. Mt 6, 19-21). O trabalho não deve afligir (cf. Mt 6, 25.31.34): preocupado e agitado por muitas coisas, o homem corre o risco de negligenciar o Reino de Deus e a Sua justiça (cf. Mt 6, 33), de que verdadeiramente necessita; tudo mais, inclusive o trabalho, encontra o seu lugar, o seu sentido e o seu valor somente se orientado para esta única coisa necessária, que jamais lhe será tirada (cf. Lc 10, 40-42). 261 Durante o Seu ministério terreno, Jesus trabalha incansavelmente, realizando obras potentes para libertar o homem da doença, do sofrimento e da morte. O sábado, que o Antigo Testamento propusera como dia de libertação e que, observado só formalmente, era esvaziado do seu autêntico conteúdo, é reafirmado por Jesus no seu valor originário: «O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado! » (Mc 2, 27). Com as curas, realizadas neste dia de repouso (cf. Mt 12, 9-14; Mc 3, 1-6; Lc 6, 6-11; 13, 10-17; 14, 1-6), Ele quer demonstrar que o sábado é Seu, porque Ele é verdadeiramente o Filho de Deus, e que é o dia em que se deve dedicar a Deus e aos outros. Libertar do mal, praticar a fraternidade e a partilha é conferir ao trabalho o seu significado mais nobre, aquele que permite à humanidade encaminhar-se para o Sábado eterno, no qual o repouso se torna a festa a que o homem interiormente aspira. Precisamente na medida em que orienta a humanidade a fazer experiência do sábado de Deus e da Sua vida convival, o trabalho inaugura sobre a terra a nova criação. 262 A atividade humana de enriquecimento e de transformação do universo pode e deve fazer vir à tona as perfeições nele escondidas, que no Verbo incriado têm o seu princípio e o seu modelo. Os escritos paulinos e joaninos ressaltam, de fato, a dimensão trinitária da criação e, em particular, o liame que intercorre entre o Filho-Verbo, o « Logos », e a criação (cf. Jo 1, 3; 1 Cor 8, 6; Col 1, 15-17). Criado n’Ele e por meio d’Ele, redimido por Ele, o universo não é um amontoado casual, mas um «cosmos»[574], cuja ordem o homem deve descobrir, secundar e levar à plenitude: «Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem— aquele mundo que, entrando nele o pecado, “foi submetido à caducidade” (Rm 8, 20; cf. ibid., 8, 19-22) ― readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor»[575]. De tal modo, ou seja, descobrindo, em crescente progressão, «a inexplorável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), na criação, o trabalho humano se transforma num serviço prestado à grandeza de Deus. 263 O trabalho representa uma dimensão fundamental da existência humana como participação não só na obra da criação, como também da redenção. Quem suporta a penosa fadiga do trabalho em união com Jesus, num certo sentido, coopera com o Filho de Deus na Sua obra redentora e se mostra discípulo Cristo levando a Cruz, cada dia, na atividade que é chamado a levar a cabo. Nesta perspectiva, o trabalho pode ser considerado como um meio de santificação e uma animação das realidades terrenas no Espírito de Cristo[576].Assim concebido o trabalho é expressão da plena humanidade do homem, na sua condição histórica e na sua orientação escatológica: a sua ação livre e responsável revela a sua íntima relação com o Criador e o seu potencial criativo, enquanto todos os dias combate o desfiguramento do pecado, também ganhando o pão com o suor da fronte. c) O dever de trabalhar 264 A consciência da transitoriedade da «figura deste mundo» (cf. 1 Cor 7, 31) não isenta de nenhum empenho histórico, muito menos do trabalho (cf. 2Ts 3, 7-15), que é parte integrante da condição humana, mesmo não sendo a única razão de vida. Nenhum cristão, pelo fato de pertencer a uma comunidade solidária e fraterna, deve sentir-se no direito de não trabalhar e de viver à custa dos outros (cf. 2Ts 3, 6-12); todos, antes, são exortados pelo Apóstolo Paulo a tomar como « um ponto de honra » o trabalhar com as próprias mãos de modo a não ser «pesados a ninguém» (1 Ts 4, 11-12) e a praticar uma solidariedade também material, compartilhando os frutos do trabalho com « os necessitados » (Ef 4, 28). São Tiago defende os direitos conculcados dos trabalhadores: «Eis que o salário, que defraudastes dos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, clama, e seus gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos» (Tg 5, 4). Os crentes devem viver o trabalho com o estilo de Cristo e torná-lo ocasião de testemunho cristão « em presença dos de fora » (1 Ts 4, 12). 265 Os Padres da Igreja nunca consideram o trabalho como «opus servile» ― assim era concebido, pelo contrário, na cultura a eles contemporânea ―, mas sempre como «opus humanum», e tendem a honrar todas as suas expressões. Mediante o trabalho, o homem governa com Deus o mundo, juntamente com Ele é sempre seu senhor, e realiza coisas boas para si e para os outros. O ócio é nocivo ao ser do homem, enquanto a atividade favorece ao seu corpo e ao seu espírito[577]. O cristão é chamado a trabalhar não só para conseguir o pão, mas também por solicitude para com o próximo mais pobre, ao qual o Senhor ordena dar de comer, de beber, de vestir, acolhimento, atenção e companhia (cf. Mt 25, 35-36)[578]. Cada trabalhador, afirma Santo Ambrósio, è a mão de Cristo que continua a criar e a fazer o bem[579]. 266 Com o seu trabalho e a sua laboriosidade, o homem, partícipe da arte e da sabedoria divina, torna mais bela a criação, o cosmos já ordenado pelo Pai[580]; suscita aquelas energias sociais e comunitárias que alimentam o bem comum[581], a favor sobretudo dos mais necessitados. O trabalho humano, finalizado à caridade, converte-se em ocasião de contemplação, transforma-se em devota oração, em ascese vigilante e em trépida esperança do dia sem ocaso: «Nesta visão superior, o trabalho, pena e ao mesmo tempo premio da atividade humana, comporta uma outra relação, aquela essencialmente religiosa, que foi felizmente expressa na fórmula beneditina: “Ora et labora”! O fato religioso confere ao trabalho humano uma espiritualidade animadora e redentora. Tal parentesco entre trabalho e religião reflete a aliança misteriosa mas real que medeia entre o operar humano e o providencial de Deus”[582].
II. O VALOR PROFÉTICO DA
«RERUM NOVARUM» 267 O curso da história está marcado por profundas transformações e por exaltantes conquistas do trabalho, mas também pela exploração de tantos trabalhadores e pelas ofensas à sua dignidade. A revolução industrial lançou à Igreja um grande desafio, ao qual o Magistério social respondeu com a força da profecia, afirmando princípios de valor universal e de perene atualidade, em favor do homem que trabalha e de seus direitos. Destinatária da mensagem da Igreja fora por séculos uma sociedade de tipo agrário, caracterizada por ritmos regulares e cíclicos; agora o Evangelho deveria ser anunciado e vivido num novo areópago, no tumulto dos acontecimentos sociais de uma sociedade mais dinâmica, levando em conta a complexidade dos novos fenômenos e das impensáveis transformações possibilitadas pela técnica. No centro da solicitude pastoral da Igreja impunha-se mais e mais urgentemente a questão operária, ou seja, o problema da exploração dos trabalhadores, conseqüência da nova organização industrial do trabalho, de matriz capitalista, e o problema, não menos grave, da instrumentalização ideológica, socialista e comunista, das justas reivindicações do mundo do trabalho. No seio deste horizonte histórico se colocam as reflexões e as advertências da Encíclica «Rerum Novarum» de Leão XIII. 268 A «Rerum Novarum» é antes de tudo uma vívida defesa da inalienável dignidade dos trabalhadores, à qual anexa a importância do direito de propriedade, do princípio de colaboração entre as classes, dos direitos dos fracos e dos pobres, das obrigações dos trabalhadores e dos empregadores, do direito de associação. As orientações ideais expressas na encíclica reforçam o empenho de animação cristã da vida social, que se manifestou no nascimento e na consolidação de numerosas iniciativas de alto caráter civil: uniões e centros de estudos sociais, associações, sociedades operárias, sindicatos, cooperativas, bancos rurais, seguros, obras de assistência. Tudo isto deu um notável impulso à legislação do trabalho para a proteção dos operários, sobretudo das crianças e das mulheres; à instrução e à melhora dos salários e da higiene. 269 Desde a «Rerum Novarum», a Igreja jamais deixou de considerar os problemas do trabalho no contexto de uma questão social que foi progressivamente assumindo dimensões mundiais[583]. A Encíclica « Laborem exercens », enriquece a visão personalista do trabalho característica dos precedentes documentos sociais, indicando a necessidade de um aprofundamento dos significados e das tarefas que o trabalho comporta, em consideração do fato de que «surgem sempre novas interrogações e novos problemas, nascem novas esperanças, como também motivos de temor e ameaças, ligados com esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional »[584]. O trabalho, com efeito, « chave essencial »[585] de toda a questão social, condiciona o desenvolvimento não só econômico, mas também cultural e moral, das pessoas, da família, da sociedade e de todo o gênero humano.
III. A DIGNIDADE DO TRABALHO
a) A dimensão subjetiva e objetiva do trabalho 270 O trabalho humano tem uma dúplice dimensão:objetiva e subjetiva. Em sentido objetivo é o conjunto de atividades, recursos, instrumentos e técnicas de que o homem se serve para produzir, para dominar a terra, segundo as palavras do Livro do Gênesis. O trabalho em sentido subjetivo é o agir do homem enquanto ser dinâmico, capaz de levar a cabo várias ações que pertencem ao processo do trabalho e que correspondem à sua vocação pessoal: «O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como “imagem de Deus”, é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho»[586]. O trabalho em sentido objetivo constitui o aspecto contingente da atividade do homem, que varia incessantemente nas suas modalidades com o mudar das condições técnicas, culturais, sociais e políticas. Em sentido subjetivo se configura, por seu turno, como a sua dimensão estável, porque não depende do que o homem realiza concretamente nem do gênero de atividade que exerce, mas só e exclusivamente da sua dignidade de ser pessoal. A distinção é decisiva tanto para compreender qual é o fundamento último do valor e da dignidade do trabalho, quanto em vista do problema de uma organização dos sistemas econômicos e sociais respeitosa dos direitos do homem. 271 A subjetividade confere ao trabalho a sua peculiar dignidade, que impede de considerá-lo como uma simples mercadoria ou um elemento impessoal da organização produtiva. O trabalho, independentemente do seu menor ou maior valor objetivo, é expressão essencial da pessoa, é « actus personae ». Qualquer forma de materialismo e de economicismo que tentasse reduzir o trabalhador a mero instrumento de produção, a simples força de trabalho, a valor exclusivamente material, acabaria por desnaturar irremediavelmente a essência do trabalho, privando-o da sua finalidade mais nobre e profundamente humana. A pessoa é o parâmetro da dignidade do trabalho: « Não há dúvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor ético, o qual, sem meios termos, permanece diretamente ligado ao fato de aquele que o realiza ser uma pessoa »[587]. A dimensão subjetiva do trabalho deve ter a preeminência sobre a objetiva, porque é aquela do homem mesmo que realiza o trabalho, determinando-lhe a qualidade e o valor mais alto. Se faltar esta consciência ou se não se quiser reconhecer esta verdade, o trabalho perde o seu significado mais verdadeiro e profundo: neste caso, lamentavelmente freqüente e difundido, a atividade trabalhista e as mesmas técnicas utilizadas se tornam mais importantes do que o próprio homem e, de aliadas, se transformam em inimigas da sua dignidade. 272 O trabalho não somente procede da pessoa, mas é também essencialmente ordenado e finalizado a ela. Independentemente do seu conteúdo objetivo, o trabalho deve ser orientado para o sujeito que o realiza, pois a finalidade do trabalho, de qualquer trabalho, permanece sempre o homem. Ainda que não possa ser ignorada a importância da componente objetiva do trabalho sob o aspecto da sua qualidade, tal componente, todavia, deve ser subordinada à realização do homem, e portanto à dimensão subjetiva, graças à qual é possível afirmar que o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho e que «a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem — ainda que seja o trabalho mais humilde de um “serviço” e o mais monótono na escala do modo comum de apreciação e até o mais marginalizador — permanece sempre o mesmo homem»[588]. 273 O trabalho humano possui também uma intrínseca dimensão social. O trabalho de um homem, com efeito, se entrelaça naturalmente com o de outros homens : « Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer qualquer coisa para alguém»[589]. Também os frutos do trabalho oferecem ocasião de intercâmbios, de relações e de encontro. O trabalho, portanto, não se pode ser avaliado eqüitativamente se não se leva em conta a sua natureza social: « já que se não subsiste um corpo realmente social e orgânico, se a ordem social e jurídica não protege o exercício da atividade, se as várias partes, dependentes como são entre si, não trabalham de concerto e não se completam mutuamente, se enfim e mais ainda, não se associam, quase que a formar uma coisa só, a inteligência, o capital e o trabalho, a atividade humana não pode produzir os seus frutos: portanto não pode ela ser com justiça avaliada nem remunerada eqüitativamente, se não se tem em conta a sua natureza social e individual »[590]. 274 O trabalho é também « uma obrigação, ou seja, um dever do homem »[591]. O homem deve trabalhar seja porque o Criador lho ordenou, seja para responder às exigências de manutenção e desenvolvimento da sua mesma humanidade. O trabalho se perfila como obrigação moral em relação ao próximo, que é em primeiro lugar a própria família, mas também à sociedade, à qual se pertence; à nação, da qual se é filho ou filha; a toda a família humana, da qual se é membro: somos herdeiros do trabalho de gerações e ao mesmo tempo artífices do futuro de todos os homens que viverão depois de nós. 275 O trabalho confirma a profunda identidade do homem criado à imagem e semelhança de Deus: «O homem, ao tornar-se — mediante o seu trabalho — cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar — ainda mediante o trabalho — o seu domínio sobre o mundo visível, em qualquer hipótese e em todas as fases deste processo, permanece na linha daquela disposição original do Criador, a qual se mantém necessária e indissoluvelmente ligada ao fato de o homem ter sido criado, como varão e mulher, “à imagem de Deus”»[592]. Isto qualifica a atividade do homem no universo: ele não é seu proprietário, mas o fiduciário, chamado a refletir no próprio agir o sinal d’Aquele de que é imagem. b) As relações entre trabalho e capital 276 O trabalho, pelo seu caráter subjetivo ou pessoal, é superior a todo e qualquer outro fator de produção: este princípio vale, em particular, no que tange ao capital. Hoje, o termo «capital» tem diversas acepções: às vezes indica os meios materiais de produção na empresa, às vezes os recursos financeiros investidos numa iniciativa produtiva ou também em operações nos mercados financeiros. Fala-se também, de modo não de todo apropriado, de «capital humano», para indicar os recursos humanos, ou seja, os homens mesmos, enquanto capazes de esforço laboral, de conhecimento, de criatividade, de intuição das exigências dos próprios semelhantes, de mútua compreensão enquanto membros de uma organização. Fala-se de «capital social» quando se quer indicar a capacidade de colaboração de uma coletividade, fruto do investimento em liames fiduciários recíprocos. Esta multiplicidade de significados oferece ulteriores elementos para refletir sobre o que possa significar, hoje, a relação entre trabalho e capital. 277 A doutrina social tem enfrentado as relações entre trabalho e capital, salientando seja a prioridade do primeiro sobre o segundo, seja a sua complementaridade. O trabalho tem uma prioridade intrínseca em relação ao capital: «Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o “capital”, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda a experiência histórica do homem»[593]. Ele «pertence ao patrimônio estável da doutrina da Igreja»[594]. Entre capital e trabalho deve haver complementaridade: é a mesma lógica intrínseca ao processo produtivo a mostrar a necessidade da sua recíproca compenetração e a urgência de dar vida a sistemas econômicos nos quais a antinomia entre trabalho e capital seja superada[595]. Em tempos nos quais, no interior de um sistema econômico menos complexo, o «capital» e o «trabalho assalariado» identificavam com uma certa precisão não só dois fatores produtivos, mas também e sobretudo duas concretas classes sociais, a Igreja afirmava que ambos são em si legítimos[596]: « de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital »[597]. Trata-se de uma verdade que vale também para presente, porque « é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao trabalho o produto do concurso de ambos; e é deveras injusto que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos »[598]. 278 Na consideração das relações entre trabalho e capital, sobretudo em face das imponentes transformações dos nossos tempos, se deve entender que «o principal recurso» e o «fator decisivo»[599] nas mãos do homem é o próprio homem, e que «o desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho»[600]. O mundo do trabalho está, efetivamente, descobrindo cada vez mais que o valor do «capital humano» tem expressão no conhecimento dos trabalhadores, na sua disponibilidade a tecer relações, na criatividade, na própria qualidade empresarial, na capacidade de enfrentar conscientemente o novo, de trabalhar juntos e de saber perseguir objetivos comuns. Trata-se de qualidades eminentemente pessoais, que pertencem ao sujeito do trabalho mais que aos aspectos objetivos, técnicos, operativos do trabalho mesmo. Tudo isto comporta uma perspectiva nova nas relações entre trabalho e capital: pode-se afirmar que, contrariamente ao que acontecia na velha organização do trabalho, em que o sujeito acabava por ser nivelado ao objeto, à máquina, nos dias de hoje dimensão subjetiva do trabalho tende a ser mais decisiva e importante do que a objetiva. 279 A relação entre trabalho e capital não raro apresenta traços de conflituosidade, que assume novas características com o mudar dos contextos sociais e econômicos. Ontem, o conflito entre capital e trabalho era originado, sobretudo, « pelo fato de que os operários punham as suas forças à disposição do grupo dos patrões e empresários, e de que este, guiado pelo princípio do maior lucro da produção, procurava manter o mais baixo possível o salário para o trabalho executado pelos operários»[601]. Atualmente, a conflituosidade de tal relação apresenta aspectos novos e, talvez, mais preocupantes: os progressos científicos e tecnológicos e a mundialização dos mercados, de per si fonte de desenvolvimento e de progresso, expõem os trabalhadores ao risco de ser explorados pelas engrenagens da economia e pela busca desenfreada de produtividade[602]. 280 Não se deve julgar erroneamente que o processo de superação da dependência do trabalho em relação à matéria seja capaz por si de superar a alienação no trabalho e do trabalho. A referência não é só aos grandes bolsões de não trabalho, de trabalho clandestino, de trabalho infantil, de trabalho sub-remunerado, de trabalho explorado que ainda persistem, mas também às novas formas, muito mais sutis, da exploração dos novos trabalhos, ao super-trabalho, ao trabalho-carreira que às vezes rouba espaço a dimensões igualmente humanas e necessárias para a pessoa, à excessiva flexibilidade do trabalho que torna precária e não raro impossível a vida familiar, à modularidade do trabalho que corre o risco de ter graves repercussões sobre a percepção unitária da própria existência e sobre a estabilidade das relações familiares. Se o homem é alienado quando inverte meios e fins, também no novo contexto de trabalho imaterial, leve, qualitativo mais que quantitativo, podem dar-se elementos de alienação «conforme cresça a ... participação [do homem] numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento»[603]. c) O trabalho, título de participação 281 A relação entre trabalho e capital se expressa também através da participação dos trabalhadores na propriedade, na gestão e dos seus frutos. É esta uma exigência descurada demasiado freqüentemente, que, pelo contrário, deve ser valorizado ao máximo: «cada um dos que a compõem, com base no próprio trabalho, tiver garantido o pleno direito a considerar-se comproprietário do grande “banco” de trabalho em que se empenha juntamente com todos os demais. E uma das vias para alcançar tal objetivo poderia ser a de associar o trabalho, na medida do possível, à propriedade do capital e dar possibilidades de vida a uma série de corpos intermediários com finalidades econômicas, sociais e culturais: corpos estes que hão de usufruir de uma efetiva autonomia em relação aos poderes públicos e que hão de procurar conseguir os seus objetivos específicos mantendo entre si relações de leal colaboração recíproca, subordinadamente às exigências do bem comum, e que hão de, ainda, apresentar-se sob a forma e com a substância de uma comunidade viva; quer dizer, de molde a que neles os respectivos membros sejam considerados e tratados como pessoas e estimulados a tomar parte ativa na sua vida»[604]. A nova organização do trabalho, em que o saber conta mais do que a mera propriedade dos meios de produção, atesta de maneira concreta que o trabalho, pelo seu caráter subjetivo, é título de participação: é indispensável ancorar-se nesta consciência para aquilatar a justa posição do trabalho no processo produtivo e para encontrar modalidades de participação consoantes com a subjetividade do trabalho nas peculiaridades das várias situações concretas[605]. d. Relação entre trabalho e propriedade privada 282 O Magistério social da Igreja articula a relação entre trabalho e capital também em relação ao instituto da propriedade privada, ao respectivo direito e ao seu uso. O direito à propriedade privada subordina-se ao princípio da destinação universal dos bens e não deve constituir motivo de impedimento ao trabalho e ao crescimento de outrem. A propriedade, que se adquire antes de tudo através do trabalho, deve servir ao trabalho. Isto vale de modo particular no que diz respeito à posse dos meios de produção; mas tal princípio concerne também aos bens próprios do mundo financeiro, técnico, intelectual, pessoal. Os meios de produção «não podem ser possuídos contra o trabalho, como não podem ser possuídos para possuir»[606]. A sua posse passa a ser ilegítima quando a propriedade « não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho »[607]. 283 A propriedade privada e pública, bem como os vários mecanismos do sistema econômico devem ser predispostos para uma economia ao serviço do homem, de modo que contribuam a atuar o princípio da destinação universal dos bens. Nesta perspectiva ganha relevo a questão referente à propriedade e ao uso das novas tecnologias e conhecimentos, que constituem, no nosso tempo, uma outra forma particular de propriedade, de importância não inferior à da terra e do capital[608]. Tais recursos, como todos os outros bens, têm uma destinação universal; também estes devem ser inseridos num contexto de normas jurídicas e de regras sociais que garantam um uso inspirado em critérios de justiça, de eqüidade e de respeito dos direitos do homem. Os novos saberes e as tecnologias, graças à sua enorme potencialidade, podem dar um contributo decisivo à promoção do progresso social, mas correm o risco de se converter em fonte de desemprego e de ampliar a distância entre zonas desenvolvidas e zonas de subdesenvolvimento, se permanecem concentrados nos países mais ricos ou nas mãos de grupos restritos de poder. e) O repouso festivo 284 O repouso festivo é um direito[609].Deus « repousou de toda a obra que fizera » (Gên 2, 2): também os homens, criados à Sua imagem, devem gozar de suficiente repouso e tempo livre que lhes permita cuidar da vida familiar, cultural, social e religiosa[610]. Para tanto contribui a instituição do dia do Senhor[611]. Os fiéis, durante o domingo e nos demais dias santos de guarda, devem abster-se de « trabalhos ou atividades que impedem o culto devido a Deus, a alegria própria do dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia e o descanso conveniente do espírito e do corpo »[612]. Necessidades familiares ou exigências de utilidade social podem legitimamente isentar do repouso dominical, mas não devem criar hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde. 285 O domingo é um dia a ser santificado com uma caridade operosa, reservando atenções à família e aos parentes, como aos doentes, aos enfermos, aos idosos; não se devem tampouco esquecer aqueles « irmãos que têm as mesmas necessidades e os mesmos direitos e não podem repousar por causa da pobreza e da miséria »[613]; ademais é um tempo propício para a reflexão, o silêncio, o estudo, que favorecem o crescimento da vida interior e cristã. Os fiéis devem distinguir-se, também neste dia, pela sua moderação, evitando todos os excessos e as violências que não raro caracterizam as diversões de massa[614]. O dia do Senhor deve ser sempre vivido como o dia da libertação, que faz participar « da assembléia festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus» (Hb 12, 22-23) e antecipa a celebração da Páscoa definitiva na glória do céu[615]. 286 As autoridades públicas têm o dever de vigiar para que não se subtraia aos cidadãos, por motivos de produtividade econômica, o tempo destinado ao repouso e aoculto divino. Os empregadores têm uma obrigação análoga em relação aos seus empregados[616]. Os cristãos devem envidar esforços, no respeito à liberdade religiosa e ao bem comum de todos, para que as leis reconheçam os domingos e os dias de festa da Igreja como feriados: «A todos têm de dar um exemplo público de oração, de respeito e de alegria e defender suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana»[617]. Todo cristão deverá «evitar impor sem necessidade a outrem o que o impediria de guardar o dia do Senhor»[618].
IV. O DIREITO AO TRABALHO
a) O trabalho é necessário 287 O trabalho é um direito fundamental e é um bem para o homem[619]: um bem útil, digno dele porque apto a exprimir e a acrescer a dignidade humana. A Igreja ensina o valor do trabalho não só porque este é sempre pessoal, mas também pelo caráter de necessidade[620]. O trabalho é necessário para formar e manter uma família[621], para ter direito à propriedade[622], para contribuir para o bem comum da família humana[623]. A consideração das implicações morais que a questão do trabalho comporta na vida social induz a Igreja a qualificar o desemprego como uma « verdadeira calamidade social »[624], sobretudo em relação às jovens gerações. 288 O trabalho é um bem de todos, que deve ser disponível para todos aqueles que são capazes de trabalhar. O « pleno emprego » é, portanto, um objetivo obrigado para todo o ordenamento econômico orientado para a justiça e para o bem comum. Uma sociedade em que o direito ao trabalho seja esvaecido ou sistematicamente negado e no qual as medidas de política econômica não consintam aos trabalhadores alcançar níveis satisfatórios de emprego, « não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social »[625]. Um papel importante e, portanto, uma responsabilidade específica e grave, pertencem, neste âmbito, ao « empregador indireto »[626], ou seja àqueles sujeitos ― pessoas ou instituições de vário tipo ― que estão aptas a orientar, no plano nacional ou internacional, a política do trabalho e da economia. 289 A capacidade de fazer projetos de uma sociedade orientada para o bem comum e projetada para o futuro se mede também e sobretudo em base às perspectivas de trabalho que ela é capaz de oferecer. O alto índice de desemprego, a presença de sistemas de instrução obsoletos e de dificuldades duradouras no acesso à formação e ao mercado do trabalho constituem, para muitos jovens sobretudo, um forte obstáculo na estrada da realização humana e profissional. Quem é desempregado ou subempregado, com efeito, sofre as conseqüências profundamente negativas que tal condição determina na personalidade e corre o risco de ser posto à margem da sociedade, de se tornar uma vítima da exclusão social[627]. Este é um drama que afeta, em geral, além dos jovens, as mulheres, os trabalhadores menos especializados, os deficientes, os imigrantes, os ex-carcerários, os analfabetos, todos os sujeitos que encontram maiores dificuldades na busca de uma colocação no mundo do trabalho. 290 A manutenção do emprego depende cada vez mais das capacidades profissionais[628]. O sistema de instrução e de educação não deve descurar a formação humana, tão necessária para desempenhar com proveito as tarefas requeridas. A necessidade cada vez maior de mudar várias vezes de emprego no arco da vida, obriga o sistema educativo a favorecer a disponibilidade das pessoas para a uma permanente atualização e requalificação. Os jovens devem aprender a agir autonomamente, a tornar-se capazes de assumir responsavelmente a tarefa de enfrentar com competências adequadas os riscos ligados a um contexto econômico mutável e não raro imprevisível nos seus cenários evolutivos[629]. É igualmente indispensável a oferta de oportunas ocasiões formativas aos adultos em busca de requalificação e aos desempregados. Cada vez mais , o percurso de trabalho das pessoas deve encontrar novas formas concretas de apoio, a começar precisamente do sistema formativo, de modo que seja menos difícil atravessar fases de mudança, de incerteza, de precariedade. b) O papel do Estado e da sociedade civil na promoção do direito ao trabalho 291 Os problemas do emprego chamam em causa as responsabilidades do Estado, ao qual compete o dever de promover políticas ativas do trabalho tais que favoreçam a criação de oportunidades trabalhistas no território nacional, incentivando para tal fim o mundo produtivo. O dever do Estado não consiste tanto em assegurar diretamente o direito ao trabalho de todos os cidadãos, regulando toda a vida econômica e mortificando a livre iniciativa de cada indivíduo, quanto em « secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise »[630]. 292 Defronte às dimensões planetárias rapidamente assumidas pelas relações econômico-financeiras e pelo mercado do trabalho, se deve promover uma colaboração internacional eficaz entre os Estados, mediante tratados, acordos e planos de ação comuns que salvaguardem o direito ao trabalho também nas fases mais criticas do ciclo econômico, em âmbito nacional e internacional. É necessário estar cientes do fato de que o trabalho humano é um direito do qual dependem diretamente a promoção da justiça social e da paz civil. Importantes tarefas nesta direção cabem às Organizações internacionais e às sindicais: coligando-se nas formas mais oportunas, elas devem empenhar-se, antes de tudo, a tecer «uma trama sempre mais espessa de disposições jurídicas que protegem o trabalho dos homens, das mulheres, dos jovens, e lhe asseguram, conveniente retribuição»[631]. 293 Para a promoção do direito ao trabalho, é importante, hoje como nos tempos da «Rerum Novarum», que haja um « processo livre de auto-organização da sociedade »[632]. Testemunhos significativos e exemplos de auto-organização podem ser encontradas nas numerosas iniciativas, empresariais e sociais, caracterizadas por formas de participação, de cooperação e de auto-gestão, que revelam a fusão das energias solidárias. Eles se oferecem ao mercado como um variegado setor de atividades trabalhistas que se distinguem por uma atenção particular à componente relacional dos bens produzidos e dos serviços dispensados em multíplices âmbitos: instrução, tutela da saúde, serviços sociais de base, cultura. As iniciativas do chamado «terceiro setor» constituem uma oportunidade sempre mais relevante de desenvolvimento do trabalho e da economia. c) A família e o direito ao trabalho 294 O trabalho é « o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do homem »[633]: ele assegura os meios de subsistência e garante o processo educativo dos filhos[634]. Família e trabalho, assim estreitamente interdependentes na experiência da grande maioria das pessoas, merecem finalmente uma consideração mais adequada à realidade, uma atenção que as compreenda juntas, sem os limites de uma concepção privatista da família e economicista do trabalho. A tal propósito, é necessário que as empresas, as organizações profissionais, os sindicatos e o Estado se tornem promotores de políticas do trabalho que não penalizem, mas favoreçam o núcleo familiar do ponto de vista do emprego. A vida de família e o trabalho, efetivamente, se condicionam reciprocamente de vário modo. O pendularismo, a dupla jornada de trabalho e a fadiga física e psicológica reduzem o tempo dedicado à vida familiar[635]; as situações de desemprego têm repercussões materiais e espirituais sobre as famílias, assim como as tensões e as crises familiares influem negativamente sobre as atitudes e sobre o rendimento no campo do trabalho. d) As mulheres e o direito ao trabalho 295 O gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social, por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho. O primeiro e indispensável passo em tal direção é a concreta possibilidade de acesso a uma formação profissional. O reconhecimento e a tutela dos direitos das mulheres no contexto do trabalho dependem, em geral, da organização do trabalho, que deve levar em conta a dignidade e a vocação da mulher, cuja « verdadeira promoção ... exige que o trabalho seja estruturado de tal maneira que ela não se veja obrigada a pagar a própria promoção com o ter de abandonar a sua especificidade e com detrimento da sua família, na qual ela, como mãe, tem um papel insubstituível »[636]. É uma questão sobre a qual se medem a qualidade da sociedade e a efetiva tutela do direito das mulheres ao trabalho. A persistência de muitas formas de discriminação ofensivas da dignidade e vocação da mulher na esfera do trabalho é devida a uma longa série de condicionamentos penalizantes para a mulher, que foi e ainda é « deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão»[637]. Estas dificuldades, lamentavelmente, não estão superadas, como bem mostram por toda parte as várias situações que aviltam as mulheres, sujeitando-as também a formas de verdadeira e própria exploração. A urgência de um efetivo reconhecimento dos direitos das mulheres no trabalho se adverte especialmente sob o aspecto retributivo, assegurativo e previdenciário[638]. e) Trabalho infantil 296 O trabalho infantil, nas suas formas intoleráveis, constitui um tipo de violência menos evidente do que outros, mas nem por isso menos terrível[639]. Uma violência que, para além de todas as implicações políticas, econômicas e jurídicas, é sempre essencialmente um problema moral. Eis a advertência de Leão XIII: «Quanto aos infantes, cuide-se não os admitir nas oficinas antes da a idade lhes tenha desenvolvido suficientemente as forças físicas, intelectuais e morais. As forças, que na puerícia brotam semelhantemente à erva em flor, um movimento precoce as dissipa, tornando portanto impossível a própria educação dos infantes»[640]. A chaga do trabalho infantil, a mais de cem anos de distância não foi ainda debelada. Mesmo com a consciência de que, ao menos por ora, em certos países o contributo dado pelo trabalho das crianças ao orçamento familiar e às economias nacionais é irrenunciável e que, em todo caso, algumas formas de trabalho realizadas a tempo parcial, podem ser frutuosas para as próprias crianças, a doutrina social denuncia o aumento da «exploração trabalhista dos menores em condições de verdadeira escravidão»[641]. Tal exploração constitui uma grave violação da dignidade humana de que todo indivíduo, «por pequeno ou aparentemente insignificante que seja em termos de utilidade»[642], é portador. f) A emigração e o trabalho 297 A imigração pode ser antes um recurso que um obstáculo para o desenvolvimento. No mundo atual, em que se agrava o desequilíbrio entre países ricos e países pobres e nos quais o progresso das comunicações reduz rapidamente as distâncias, crescem as migrações das pessoas em busca de melhores condições de vida, provenientes das zonas menos favorecidas da terra: a sua chegada nos países desenvolvidos é não raro percebido como uma ameaça para os elevados níveis de bem-estar alcançados graças a decênios de crescimento econômico. Os imigrados, todavia, na maioria dos casos, respondem a uma demanda de trabalho que, do contrário, ficaria insatisfeita, em setores e em territórios nos quais a mão-de-obra local é insuficiente ou não está disposta a fornecer o próprio contributo em trabalho. 298 As instituições dos países anfitriões devem vigiar cuidadosamente para que não se difunda a tentação de explorar a mão-de-obra estrangeira, privando-a dos direitos garantidos aos trabalhadores nacionais, que devem ser assegurados a todos sem discriminação. A regulamentação dos fluxos migratórios segundo critérios de eqüidade e de equilíbrio[643] é uma das condições indispensáveis para conseguir que as inserções sejam feitas com as garantias exigidas pela dignidade da pessoa humana. Os imigrantes devem ser acolhidos enquanto pessoas e ajudados, junto com as suas famílias, a integrar-se na vida social[644]. Em tal perspectiva deve ser respeitado e promovido o direito a ver reunida a família[645]. Ao mesmo tempo, na medida do possível, devem ser favorecidas todas as condições que consentem o aumento das possibilidades de trabalho nas próprias regiões de origem[646]. g) O mundo agrícola e o direito ao trabalho 299 Uma particular atenção merece o trabalho agrícola, pelo papel social, cultural e econômico que detém nos sistemas econômicos de muitos países, pelos numerosos problemas que deve enfrentar no contexto de uma economia cada vez mais globalizada, pela sua crescente importância na salvaguarda do ambiente natural: «portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes, para restituir à agricultura — e aos homens dos campos — o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social»[647]. As profundas e radicais transformações em curso no plano social e cultural, também na agricultura e no vasto mundo rural, repropõem com urgência um aprofundamento sobre o significado do trabalho agrícola nas suas multíplices dimensões. Trata-se de um desafio de notável importância, que deve ser enfrentado com políticas agrícolas e ambientais capazes de superar uma certa concepção residual e assistencial e de elaborar novas perspectivas para uma agricultura moderna, apta a cumprir um papel significativo na vida social e econômica. 300 Em alguns países é indispensável uma redistribuição da terra, no âmbito de eficazes políticas de reforma agrária, a fim de superar o impedimento que o latifúndio improdutivo, condenado pela doutrina social da Igreja[648],representa a um autêntico desenvolvimento econômico: «Os países em via de desenvolvimento podem combater eficazmente o atual processo de concentração da propriedade da terra, se afrontarem algumas situações que se podem classificar como verdadeiros e próprios nós estruturais. Tais são as carências e os atrasos a nível legislativo quanto ao reconhecimento do título de propriedade da terra e em relação ao mercado de crédito; o desinteresse pela investigação e formação em agricultura; a negligência a propósito de serviços sociais e de infra-estruturas nas áreas rurais»[649]. Areforma agrária torna-se, portanto, além de uma necessidade política, uma obrigação moral, dado que a sua não atuação obstaculiza nestes países os efeitos benéficos derivantes da abertura dos mercados e, em geral, daquelas ocasiões profícuas de crescimento que a globalização em curso pode oferecer[650].
V. DIREITOS DOS TRABALHADORES
a) Dignidade dos trabalhadores e respeito dos seus direitos 301 Os direitos dos trabalhadores, como todos os demais direitos, se baseiam na natureza da pessoa humana e na sua dignidade transcendente. O Magistério social da Igreja houve por bem enumerar alguns deles, auspiciando o seu reconhecimento nos ordenamentos jurídicos: o direito a uma justa remuneração[651]; o direito ao repouso[652]; o direito « a dispor de ambientes de trabalho e de processos de laboração que não causem dano à saúde física dos trabalhadores nem lesem a sua integridade moral »[653]; o direito a ver salvaguardada a própria personalidade no lugar de trabalho, « sem serem violados seja de que modo for na própria consciência ou dignidade »[654]; o direito a convenientes subvenções indispensáveis para a subsistência dos trabalhadores desempregados e das suas famílias[655]; do direito à pensão de aposentadoria ou reforma, ao seguro para a velhice bem como para a doença e ao seguro para os casos de acidentes de trabalho[656]; o direito a disposições sociais referentes à maternidade[657]; o direito de reunir-se e de associar-se[658]. Tais direitos são freqüentemente desrespeitados, como confirmam os tristes fenômenos do trabalho sub-remunerado, desprovido de tutela ou não representado de modo adequado. Dá-se com freqüência que as condições de trabalho para homens, mulheres e crianças, especialmente nos países em via de desenvolvimento, sejam tão desumanas que ofendem a sua dignidade e prejudicam a sua saúde. b) O direito à remuneração eqüitativa e distribuição da renda 302 A remuneração é o instrumento mais importante para realizar a justiça nas relações de trabalho[659]. O « justo salário é o fruto legítimo do trabalho »[660]; comete grave injustiça quem o recusa ou não o dá no tempo devido e em proporção eqüitativa ao trabalho realizado (cf. Lv 19, 13; Dt 24, 14-15; Tg 5, 4). O salário é o instrumento que permite ao trabalhador aceder aos bens da terra: « o trabalho deve ser remunerado de tal modo que permita ao homem e à família levar uma vida digna, tanto material ou social, como cultural ou espiritual, tendo em conta as funções e a produtividade de cada um, e o bem comum »[661]. O simples acordo entre empregado e empregador acerca do montante da remuneração não basta para qualificar como « justa » a remuneração concordada, porque ela « não deve ser inferior ao sustento »[662] do trabalhador: a justiça natural é anterior e superior à liberdade do contrato. 303 O bem-estar econômico de um País não se mede exclusivamente pela quantidade de bens produzidos, mas também levando em conta o modo como são produzidos e o grau de equidade na distribuição das rendas, que a todos deveria consentir ter à disposição o que é necessário para desenvolvimento e o aperfeiçoamento da própria pessoa. Uma distribuição eqüitativa da renda deve ser buscada com base em critérios não só de justiça comutativa, mas também de justiça social, ou seja, considerando, além do valor objetivo das prestações de trabalho, a dignidade humana dos sujeitos que as realizam. Um bem-estar econômico autêntico se persegue também através de adequadas políticas sociais de redistribuição da renda que, tendo em conta as condições gerais, considerem oportunamente os méritos e as necessidades de cada cidadão. d) O direito de greve 304 A doutrina social reconhece a legitimidade da greve « quando se apresenta como recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado »[663], depois de se terem revelado ineficazes todos os outros recursos para a composição dos conflitos[664]. A greve, uma das conquistas mais penosas do associacionismo sindical, pode ser definida como a recusa coletiva e concertada, por parte dos trabalhadores, de prestar o seu trabalho, com o objetivo de obter, por meio da pressão assim exercida sobre os empregadores, sobre o Estado e sobre a opinião pública, melhores condições de trabalho e da sua situação social. Também a greve, conquanto se perfile « como … uma espécie de ultimato »[665], deve ser sempre um método pacífico de reivindicação e de luta pelos próprios direitos; torna-se « moralmente inaceitável quando é acompanhada de violências ou ainda quando se lhe atribuem objetivos não diretamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum »[666].
VI. SOLIDARIEDADE ENTRE OS TRABALHADORES
a) A importância dos sindicatos305 O Magistério reconhece o papel fundamental cumprido pelos sindicatos dos trabalhadores, cuja razão de ser consiste no direito dos trabalhadores a formar associações ou uniões para defender os interesses vitais dos homens empregados nas várias profissões. Os sindicatos « cresceram a partir da luta dos trabalhadores, do mundo do trabalho e, sobretudo, dos trabalhadores da indústria, pela tutela dos seus justos direitos, em confronto com os empresários e os proprietários dos meios de produção »[667]. As organizações sindicais, perseguindo o seu fim especifico ao serviço do bem comum, são um fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social. O reconhecimento dos direitos do trabalho constitui desde sempre um problema de difícil solução, porque se atua no interior de processos históricos e institucionais complexos, e ainda hoje pode considerar-se incompleto. Isto torna mais que nunca atual e necessário o exercício de uma autêntica solidariedade entre os trabalhadores. 306 A doutrina social ensina que as relações no interior do mundo do trabalho devem ser caracterizadas pela colaboração: o ódio e a luta para eliminar o outro constituem métodos de todo inaceitáveis, mesmo porque, em todo o sistema social, são indispensáveis para o processo de produção tanto o trabalho quanto o capital. À luz desta concepção, a doutrina social «não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura “de classe” da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classe, que inevitavelmente governe a vida social»[668]. Os sindicatos são propriamente os promotores da luta pela justiça social, pelos direitos dos homens do trabalho, nas suas especificas profissões: «Esta “luta” deve ser compreendida como um empenhamento normal das pessoas “em prol” do justo bem: [...] não é uma luta “contra” os outros»[669]. O sindicato, sendo antes de tudo instrumento de solidariedade e de justiça, não pode abusar dos instrumentos de luta; em razão da sua vocação, deve vencer as tentações do corporativismo, saber auto-regular-se e avaliar as conseqüências das próprias opções em relação ao horizonte do bem comum[670]. 307 Ao sindicato, além das funções defensivas e reivindicativas, competem tanto uma representação com o fim de « colaborar na boa organização da vida econômica », quanto a educação da consciência social dos trabalhadores, a fim de que estes se sintam parte ativa, segundo as capacidades e aptidões de cada um, no conjunto do desenvolvimento econômico e social, bem como na realização do bem comum universal[671]. O sindicato e as outras formas de associacionismo dos trabalhadores devem assumir uma função de colaboração com os outros sujeitos sociais e interessar-se pela gestão da coisa pública. As organizações sindicais têm o dever de influenciar o poder político, de modo a sensibilizá-lo devidamente aos problemas do trabalho e a empenhá-lo a favorecer a realização dos direitos dos trabalhadores. Os sindicatos, todavia, não têm o caráter de « partidos políticos » que lutam pelo poder, e nem devem tampouco ser submetidos às decisões dos partidos políticos ou haver com estes liames muito estreitos: «em tal situação estes perdem facilmente o contato com aquilo que é sua função específica, que é aquela de assegurar os justos direitos dos homens do trabalho no quadro do bem comum de toda a sociedade, e transformam-se, ao invés, em um instrumento a serviço de outros objetivos»[672]. b) Novas formas de solidariedade 308 O contexto socioeconômico hodierno, caracterizado por processos de globalização econômico-financeira cada vez mais rápidos, concita os sindicatos a renovar-se. Atualmente os sindicatos são chamados a atuar de novas formas[673], ampliando o raio da própria ação de solidariedade de modo que sejam tutelados, além das categorias de trabalho tradicionais, os trabalhadores com contrato atípicos ou por tempo determinado; os trabalhadores cujo o emprego é colocado em perigo pelas fusões de empresas que ocorrem com freqüência cada vez maior, também em plano internacional; aqueles que não têm um emprego, os imigrantes, os trabalhadores sazonais, aqueles que por falta de atualização profissional foram excluídos do mercado de trabalho e não podem reingressar sem adequados cursos de requalificação. Defronte às modificações que se deram no mundo do trabalho, a solidariedade poderá ser recuperada e quiçá melhor fundada em relação ao passado se houver um empenho para uma redescoberta do valor subjetivo do trabalho: «é necessário prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condições da sua existência». Para tanto, «é preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho»[674]. 309 Procurando «novas formas de solidariedade»[675], as associações dos trabalhadores devem orientar-se em direção a assunção de maiores responsabilidades, não apenas em relação aos tradicionais mecanismos de redistribuição, mas também em relação à produção da riqueza e da criação de condições sociais, políticas e culturais que consintam a todos os que podem e desejam trabalhar exercer o seu direito ao trabalho, no pleno respeito de sua dignidade de trabalhadores. A superação gradual do modelo organizativo baseado no trabalho assalariado na grande empresa, de mais a mais, torna oportuna uma atualização das normas e dos sistemas de segurança social, mediante os quais os trabalhadores estiveram até agora tutelados, sem prejuízo dos seus direitos fundamentais.
VII. AS «RES NOVAE»
DO NOVO MUNDO DO TRABALHO a) Uma fase de transição epocal 310 Um dos estímulos mais significativos à atual transformação da organização do trabalho é dado pelo fenômeno da globalização, que consente experimentar novas formas de produção, com o deslocamento das instalações em áreas diferentes daquelas em que são tomadas as decisões estratégicas e distantes dos mercados de consumo. Dois são os fatores que dão impulso a este fenômeno: a extraordinária velocidade de comunicação sem limites de espaço e de tempo e a relativa facilidade para transportar mercadorias e pessoas de um lado ao outro do globo. Isto comporta uma conseqüência fundamental sobre os processos produtivos: a propriedade é cada vez mais distante, não raro, indiferente aos efeitos sociais das opções que faz. Por outro lado, se é verdade que a globalização, a priori, não é nem boa nem má em si, mas depende do uso que dela faz o homem[676], deve-se afirmar que é necessária uma globalização das tutelas, dos direitos mínimos essenciais, da eqüidade. 311 Uma das características mais relevantes da nova organização do trabalho é a fragmentação física do ciclo produtivo, promovida para conseguir uma maior eficiência e maior lucro. Nesta perspectiva, as tradicionais coordenadas espaço-tempo, no interior das quais se configurava o ciclo produtivo, sofrem uma transformação sem precedentes, que determina uma mudança na estrutura mesma do trabalho. Tudo isto tem conseqüências relevantes na vida dos indivíduos e das comunidades, submetidos a mudanças radicais tanto no plano das condições materiais como no plano cultural e dos valores. Este fenômeno está envolvendo, em âmbito global e local, milhões de pessoas, independentemente da profissão que exercem, da sua condição social, da preparação cultural. A reorganização do tempo, a sua regularização e as mudanças em curso no uso do espaço — comparáveis, pela sua magnitude, à primeira revolução industrial, na medida em que envolvem todos os setores produtivos, em todos os continentes, independentemente do seu grau de desenvolvimento — devem considerar-se, portanto, um desafio decisivo, mesmo em nível ético e cultural, no campo da definição de um sistema renovado de tutela do trabalho. 312 A globalização da economia, com a liberalização dos mercados, o acentuar-se da concorrência, o aumento de empresas especializadas no fornecimento de produtos e serviços, requer maior flexibilidade no mercado do trabalho e na organização e na gestão dos processos produtivos. No juízo sobre esta delicada matéria, parece oportuno reservar uma maior atenção moral, cultural e no âmbito dos projetos, ao orientar o agir social e político sobre as temáticas ligadas à identidade e aos conteúdos do novo trabalho, num mercado e numa economia que também são novos. As modificações do mercado do trabalho, não raro, são um efeito da modificação do trabalho mesmo e não a sua causa. 313 O trabalho, sobretudo no interior dos sistemas econômicos dos países mais desenvolvidos, atravessa uma fase que assinala a passagem de uma economia industrial a uma economia essencialmente concentrada sobre serviços e sobre a inovação tecnológica. Ocorre que os serviços e as atividades caracterizadas por um forte conteúdo informativo crescem de modo mais rápido do que as dos tradicionais setores primário e secundário, com conseqüências de largo alcance na organização da produção e das trocas, no conteúdo e na forma das prestações de trabalho e nos sistemas de proteção social. Graças às inovações tecnológicas, o mundo do trabalho se enriquece de profissões novas, enquanto outras desaparecem. Na atual fase de transição, com efeito, se assiste a uma contínua passagem de empregados da industria aos serviços. Enquanto perde terreno o modelo econômico e social ligado à grande fábrica e ao trabalho de uma classe operária homogênea, melhoram as perspectivas de emprego no terciário e aumentam, em particular, as atividades laborais na repartição dos serviços à pessoa, das prestações part time, interinas e «atípicas», ou seja, formas de trabalho que não são enquadráveis nem como trabalho dependente nem como trabalho autônomo. 314 A transição em curso assinala a passagem do trabalho contratado por tempo indeterminado, entendido como emprego fixo, a um percurso profissional caracterizado por uma pluralidade de atividades profissionais; de um mundo do trabalho compacto, definido e reconhecido, a um universo de trabalhos, variegado, fluido, rico de promessas, mas também impregnado de interrogações preocupantes, especialmente em face da crescente incerteza acerca das perspectivas de emprego, de fenômenos persistentes de desemprego estrutural, da inadequação dos atuais sistemas de seguridade social. As exigências da competição, da inovação tecnológica e da complexidade dos fluxos financeiros devem ser harmonizados com a defesa do trabalhador e dos seus direitos. A insegurança e a precariedade não dizem respeito somente à condição de trabalho dos homens que vivem nos países mais desenvolvidos, mas se referem também, e sobretudo, às realidades economicamente menos avançadas do planeta, aos países em via de desenvolvimento e aos países com economias em transição. Estes últimos, além dos complexos problemas ligados com a mudança dos modelos econômicos e produtivos, devem enfrentar quotidianamente as difíceis exigências que provêm da globalização em curso. A situação se mostra particularmente dramática para o mundo do trabalho, submetido a vastas e radicais mudanças culturais e estruturais, em contextos freqüentemente desprovidos de suportes legislativos, formativos e de assistência social. 315 A descentralização produtiva, que atribui às empresas menores multíplices funções, dantes concentrados nas grandes unidades produtivas, faz adquirir vigor e imprime novo impulso às pequenas e médias empresas. Vêm à tona assim, ao lado do artesanato tradicional, novas empresas caracterizadas por pequenas unidades produtivas que atuam em setores de produção modernos ou em atividades descentradas das empresas maiores. Muitas atividades que ontem exigiam trabalho dependente, hoje são realizadas de formas novas, que favorecem o trabalho independente e se caracterizam por uma maior componente de risco e de responsabilidade O trabalho nas pequenas e médias empresas, o trabalho artesanal e o trabalho independente podem constituir uma ocasião para tornar mais humana a experiência do trabalho, tanto pela possibilidade de estabelecer positivas relações interpessoais em comunidades de pequenas dimensões, quanto pelas oportunidades oferecidas por uma maior iniciativa e empreendimento; mas não são poucos, nestes setores, os casos de tratamentos injustos, de trabalho mal remunerado e sobretudo inseguro. 316 Nos paises em via de desenvolvimento, ademais, se difundiu, nestes últimos anos, o fenômeno da expansão de atividades econômicas « informais » ou «submersas», que representa um sinal de crescimento econômico promissor, mas levanta problemas éticos e jurídicos. O significativo aumento da oferta de trabalho suscitado por tais atividades deve-se, de fato, à ausência de especialização de grande parte dos trabalhadores locais e ao desenvolvimento desordenado dos setores econômicos formais. Um número elevado de pessoas fica assim obrigado a trabalhar em condições de grave precariedade e num quadro desprovido das regras que tutelam a dignidade do trabalhador. Os níveis de produtividade, rendas e teor de vida são extremamente baixos e freqüentemente se revelam insuficientes para garantir aos trabalhadores e às suas famílias a possibilidade de atingir o limiar da subsistência. b) Doutrina social e «res novae» 317 Em face das imponentes « res novae » do mundo do trabalho, a doutrina social da Igreja recomenda, antes de tudo, evitar o erro de considerar que as mudanças em curso ocorram de modo determinista. O fator decisivo e « o árbitro » desta complexa fase de mudança é uma vez mais o homem, que deve continuar a ser o verdadeiro protagonista do seu trabalho. Ele pode e deve assumir de modo criativo e responsável as atuais inovações e reorganizações, de modo que sirvam ao crescimento da pessoa, da família, das sociedades e da inteira família humana[677]. É esclarecedora para todos a referência à dimensão subjetiva do trabalho, à qual a doutrina social da Igreja ensina a dar a devida prioridade, porque o trabalho humano « procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da criação, dominando a terra »[678]. 318 As interpretações de tipo mecanicista e economicista da atividade produtiva, ainda que prevalentes e em todo caso influentes, resultam superadas pela própria análise científica dos problemas relacionados com o trabalho. Tais concepções se mostram hoje mais do que ontem de todo inadequadas para interpretar os fatos, que demonstram cada vez mais o valor do trabalho, enquanto atividade livre e criativa do homem. Também dos dados concretos deve derivar o impulso para superar sem demora horizontes teóricos e critérios operativos restritos e insuficientes em relação às dinâmicas em curso, intrinsecamente incapazes de divisar as concretas e urgentes necessidades humanas na sua vasta gama, que se estende para muito além das categorias somente econômicas. A Igreja bem sabe, e desde sempre o ensina, que o homem, à diferença dos demais seres vivos, tem necessidades certamente não limitadas somente ao «ter»[679], porque a sua natureza e a sua vocação estão em relação indissolúvel com o Transcendente. A pessoa humana se entrega à aventura da transformação das coisas mediante o seu trabalho para satisfazer necessidades e carências antes de tudo materiais, mas o faz seguindo um impulso que a impele sempre para além dos resultados conseguidos, em busca do que possa corresponder mais profundamente às suas indeléveis exigências interiores. 319 Mudam as formas históricas em que se exprime o trabalho humano, mas não devem mudar as suas exigências permanentes, que se reassumem no respeito dos direitos inalienáveis do homem que trabalha. Defronte ao risco de ver negados estes direitos, devem ser imaginadas e construídas novas formas de solidariedade, levando em conta a interdependência que liga entre si os homens do trabalho. Quanto mais profundas são as mudanças, tanto mais decidido deve ser o empenho da inteligência e da vontade para tutelar a dignidade do trabalho, reforçando, nos vários níveis, as instituições envolvidas. Esta perspectiva consente orientar do melhor modo as atuais transformações na direção, tão necessária, da complementaridade entre a dimensão econômica local e a global; entre economia «velha» e « nova »; entre a inovação tecnológica e a exigência de salvaguardar o trabalho humano; entre o crescimento econômico e a compatibilidade ambiental do desenvolvimento. 320 Para a solução das vastas e complexas problemáticas do trabalho, que em algumas áreas assumem dimensões dramáticas, os cientistas e os homens de cultura são chamados a oferecer o seu contributo especifico, tão importante para a escolha de soluções justas. É uma responsabilidade que os insta a por em evidência as oportunidades e os riscos que se perfilam nas mudanças e sobretudo a sugerir linhas de ação para guiar a mudança no sentido mais favorável ao desenvolvimento da inteira família humana. Incumbe-lhes a eles o grave encargo de ler e interpretar os fenômenos sociais com inteligência e amor pela verdade, sem preocupações ditadas por interesses de grupo ou pessoais. O seu contributo, com efeito, justamente porque de natureza teórica, se torna uma referência essencial para a concreta atuação das políticas econômicas[680]. 321 Os atuais cenários de profunda transformação do trabalho humano tornam portanto ainda mais urgente um desenvolvimento autenticamente global e solidário, capaz de abarcar todas as regiões do mundo, inclusive as menos favorecidas. Para estas últimas, o início de um processo de desenvolvimento solidário de vasto alcance não só representa uma concreta possibilidade para criar novos empregos, mas também se configura como uma verdadeira e própria condição de sobrevivência para povos inteiros: «É necessário globalizar a solidariedade »[681]. Os desequilíbrios econômicos e sociais existentes no mundo do trabalho devem ser enfrentados restabelecendo a justa hierarquia dos valores e pondo em primeiro lugar a dignidade da pessoa que trabalha: « As novas realidades, que acometem com vigor o processo produtivo como a globalização das finanças, da economia, do comércio e do trabalho, jamais devem violar a dignidade e a centralidade da pessoa humana, nem a liberdade e a democracia dos povos. A solidariedade, a participação e a possibilidade de governar estas mudanças radicais constituem, se não a solução, sem dúvida a necessária garantia ética para que as pessoas e os povos não se tornem instrumentos mas protagonistas do seu futuro. Tudo isto pode ser realizado e, dado que é possível, se torna imperioso »[682]. 322 Mostra-se cada vez mais necessária uma cuidadosa ponderação da nova situação do trabalho no atual contexto da globalização, numa perspectiva que valorize a propensão natural dos homens a entabular relações. A tal propósito, se deve afirmar que a universalidade é uma dimensão do homem, não das coisas. A técnica poderá ser a causa instrumental da globalização, mas é a universalidade da família humana a sua causa última. Portanto, também o trabalho tem uma dimensão universal própria, na medida em que se funda na relacionalidade humana. As técnicas, especialmente eletrônicas, têm permitido dilatar este aspecto relacional do trabalho a todo o planeta, imprimindo à globalização um ritmo particularmente acelerado. O fundamento último deste dinamismo é o homem que trabalha, é sempre o elemento subjetivo e não o objetivo. Também o trabalho globalizado tem origem, portanto, no fundamento antropológico da intrínseca dimensão relacional do trabalho. Os aspectos negativos da globalização do trabalho não devem mortificar as possibilidades que se abriram para todos de dar expressão a um humanismo do trabalho em âmbito planetário, a uma solidariedade do mundo do trabalho neste nível, a fim de que, trabalhando em semelhante contexto, dilatado e interconexo, o homem compreenda cada vez mais a sua vocação unitária e solidária.
CAPÍTULO VII
A VIDA ECONÔMICA
I. ASPECTOS BÍBLICOS
a) O homem, pobreza e riqueza 323 No antigo Testamento se percebe uma dupla postura em relação aos bens econômicos e a riqueza. Por um lado, apreço em relação a disponibilidade dos bens materiais considerados necessários para a vida: por vezes a abundância ― mas não a riqueza e o luxo ― é vista como uma bênção de Deus. Na literatura sapiencial, a pobreza é descrita como uma conseqüência negativa do ócio e da falta de laboriosidade (cf. Prov 10,4), mas também como fato natural (cf. Prov 22,2). Por um outro lado, os bens econômicos e a riqueza não são condenados por si mesmo, mas pelo seu mau uso. A tradição profética estigmatiza as fraudes, a usura, a exploração, as injustiças manifestas, freqüentes em relação aos mais pobres (cf. Is 58,3-11; Jr 7,4-7; Os 4,1-2; Am 2,6-7; Mq 2,1-2). Tais tradições, mesmo considerando um mal a pobreza dos oprimidos, dos fracos, dos indigentes, neles vê também um símbolo da situação do homem diante de Deus; d’Ele provêm todos os bens como dom a ser administrado e a ser partilhado. 324 Aquele que reconhece a própria pobreza diante de Deus, qualquer que seja a situação que esteja vivendo, é objeto de particular atenção da parte de Deus: quando o pobre O procura, o Senhor responde; quando grita, Ele o escuta. Aos pobres se dirigem as promessas divinas: eles serão os herdeiros da aliança entre Deus e o seu povo. A intervenção salvífica de Deus se atenuará através de um novo David (cf. Ez 34,22-31), o qual, como e mais que o Rei David, será defensor dos pobres e promotor da justiça; ele estabelecerá uma nova aliança e escreverá uma nova lei no coração dos fiéis (cf. Jr 31,31-34). A pobreza, quando é aceita ou procurada com espírito religioso, predispõem ao reconhecimento e à aceitação da ordem criatural; o «rico», nesta perspectiva, é aquele que repõem a sua confiança nas coisas que possui mais que em Deus, o homem que se faz forte pela obra de suas mãos e que confia somente nesta força. A pobreza assume o valor moral quando se manifesta como humilde disponibilidade e abertura para com Deus, confiança n’Ele. Estas atitudes tornam o homem capaz de reconhecer a relatividade dos bens econômicos e dos tratados como dons divinos da administração e da partilha, porque a propriedade originária de todos os bens pertence a Deus. 325 Jesus assume toda a tradição do Antigo Testamento também sobre os bens econômicos, sobre a riqueza e sobre a pobreza, conferindo-lhe uma definitiva clareza e plenitude (cf. Mt 6,24 e 13,22; Lc 6,20-24 e 12,15-21; Rm 14,6-8 e 1 Tm 4,4). Ele, doando o Seu Espírito e mudando o coração, vem instaurar o «Reino de Deus», de modo a tornar possível uma nova convivência na justiça, na fraternidade, na solidariedade e na partilha. O Reino inaugurado por Cristo aperfeiçoa a bondade originária da criação e da atividade humana, comprometida pelo pecado. Liberado do mal e reintroduzido na comunhão com Deus, cada homem pode continuar a obra de Jesus, com a ajuda do Seu Espírito: fazer justiça aos pobres, resgatar os oprimidos, consolar os aflitos, buscar ativamente uma nova ordem social, em que se ofereçam adequadas soluções à pobreza material e venham impedidas mais eficazmente as forças que dificultam as tentativas dos mais fracos de liberarem-se de uma condição de miséria e de escravidão. Quando isto acontece, o Reino de Deus se faz já presente sobre esta terra, embora não lhe pertença. Nisto encontrarão finalmente cumprimento as promessas dos Profetas. 326 À luz da Revelação, a atividade econômica deve ser considerada e desenvolvida como resposta reconhecida à vocação que Deus reserva a cada homem. Ele é colocado no jardim para cultivá-lo e guardá-lo, usando-o dentro de limites bem precisos (cf. Gn 2,16-17), no esforço de aperfeiçoamento (cf. Gn 1,26-30; 2,15-16; Sab 9,2-3). Fazendo-se testemunha da grandeza e da bondade do Criador, o homem caminha para a plenitude da liberdade em que Deus o chama. Uma boa administração dos dons recebidos, também dos dons materiais, é obra de justiça para consigo mesmo e para com os outros homens: aquilo que se recebe deve ser bem utilizado, conservado, acrescido, tal como ensina a parábola dos talentos (cf. Mt 25,14-31; Lc 19,12-27). A atividade econômica e o progresso material devem ser colocados a serviço do homem e da sociedade; se a eles nos dedicarmos com a fé, a esperança e a caridade dos discípulos de Cristo, a própria economia e o progresso podem ser transformados em lugares de salvação e de santificação; nestes âmbitos também é possível dar expressão a um amor e a uma solidariedade mais que humanas e contribuir para o crescimento de uma humanidade nova, que prefigure o mundo dos últimos tempos[683]. Jesus sintetiza toda a Revelação pedindo ao crente enriquecer diante de Deus (cf. Lc 12,21): também a economia é útil para este fito, quando não trai a sua função de instrumento para o crescimento global do homem e das sociedades, da qualidade humana da vida. 327 A fé em Jesus Cristo consente uma correta compreensão do progresso social, no contexto de um humanismo integral e solidário. Para tal fim, é assaz útil o contributo da reflexão teológica oferecido pelo Magistério social: «A fé em Cristo Redentor, ao mesmo tempo que ilumina a partir de dentro a natureza do desenvolvimento, orienta também no trabalho de colaboração. Na Carta de São Paulo aos Colossenses lemos que Cristo é “o primogênito de toda a criatura”, e que “tudo foi criado por Ele e para Ele” (1, 15-16). Com efeito, todas as coisas “subsistem n’Ele”, porque “foi do agrado de Deus que residisse n’Ele toda a plenitude e, por seu intermédio, reconciliar consigo todas as coisas” (ibid. 1, 20). Neste plano divino, que começa na eternidade em Cristo, “imagem” perfeita do Pai, e culmina n’Ele “primogênito dos redivivos” (ibid. 1, 15. 18), insere-se a nossa história, marcada pelo nosso esforço pessoal e coletivo para elevar a condição humana, superar os obstáculos que reaparecem continuamente ao longo do nosso caminho, dispondo-nos assim a participar na plenitude que “reside no Senhor” e que Ele comunica “ao seu Corpo, que é a Igreja” (ibid. 1, 18; cf. Ef 1, 22-23); enquanto que o pecado, o qual sempre nos insidia e compromete as nossas realizações humanas, é vencido e resgatado pela “reconciliação” operada por Cristo (cf. Col 1, 20)»[684]. b) As riquezas existem para ser partilhadas 328 Os bens, ainda que legitimamente possuídos, mantêm sempre uma destinação universal: é imoral toda a forma de acumulação indébita, porque em aberto contraste com a destinação universal consignada por Deus Criador a todos os bens. A salvação cristã é, efetivamente, uma libertação integral do homem, libertação da necessidade, mas também em relação às próprias posses: «O apego ao dinheiro de fato é a raiz de todos os males, pelo seu desejo desenfreado alguns se desviaram da fé» (1 Tm 6,10). Os Padres da Igreja insistem sobre a necessidade da conversão e da transformação das consciências dos fiéis, mais que sobre as exigências de mudança das estruturas sociais e políticas de seu tempo, solicitando a quem desempenha uma atividade econômica e possui bens a considerar-se administradores de quanto Deus lhes confiou. 329 As riquezas realizam a sua função de serviço ao homem quando destinadas a produzir benefícios para os outros e a sociedade[685]: «Como poderíamos fazer o bem ao próximo ― interroga-se Clemente de Alexandria ― se todos não possuíssem nada?»[686]. Na visão de São João Crisóstomo, as riquezas pertencem a alguns, para que estes possam adquirir mérito partilhando com os outros[687]. Elas são um bem que vem de Deus: quem o possuir, deve usá-lo e faze-lo circular, de sorte que também os necessitados possam fruir; o mal está no apego desmedido às riquezas, no desejo de açambarcá-las. São Basílio Magno convida os ricos a abrir as portas de seus armazéns e exclama: « Um grande rio se derrama, em mil canais, sobre o terreno fértil: de igual modo, por mil vias, tu faze chegar a riqueza à habitação dos pobres »[688]. A riqueza, explica São Basílio, é como a água que flui mais pura da fonte na medida em que dela se haure com mais freqüência, mas que apodrece se a fonte permanece inutilizada[689]. O rico, dirá mais tarde São Gregório Magno, não é mais que um administrador daquilo que possui; dar o necessário a quem necessita é obra a ser cumprida com humildade, porque os bens não pertencem a quem os distribui. Quem tem as riquezas somente para si não é inocente; dar a quem tem necessidade significa pagar um débito[690].
II. MORAL E ECONOMIA
330 A doutrina social da Igreja insiste sobre a conotação moral da economia. Pio XI, em uma página da Encíclica «Quadragesimo anno», enfrenta a relação entre economia e a moral: «Pois ainda que a economia e a moral “se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios”, é erro julgar a ordem econômica e a moral tão encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis econômicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam os fins que a atividade humana se não pode propor, e os que pode procurar com todos os meios no campo econômico; e a razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem econômica. Por sua parte, a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa atividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma; subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem»[691]. 331 A relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: atividade econômica e comportamento moral se compenetram intimamente. A distinção entre moral e economia não implica uma separação entre os dois âmbitos, mas, ao contrário, uma importante reciprocidade. Assim como no âmbito moral se devem ter em conta as razões e as exigências da economia, atuando no campo econômico é imperioso abrir-se às instâncias morais : «Também na vida econômico-social se deve respeitar e fomentar a dignidade da pessoa humana, a sua vocação integral e o bem de toda a sociedade. Pois o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social »[692]. Dar o justo e devido peso às razões próprias da economia não significa rejeitar como irracional qualquer consideração de ordem metaeconômica, precisamente porque o fim da economia não está na economia mesma, mas na sua destinação humana e social[693]. À economia, com efeito, tanto no âmbito científico, como em nível de praxe, não é confiado o fim da realização do homem e da boa convivência humana, mas uma tarefa parcial: a produção, a distribuição e o consumo dos bens materiais e de serviços. 332 A dimensão moral da economia faz tomar como finalidades indivisíveis, nunca separadas e alternativas, a eficiência econômica e a promoção de um desenvolvimento solidário da humanidade. A moral, constitutiva da vida econômica, não é nem opositiva, nem neutra: inspira-se na justiça e na solidariedade, constitui um fator de eficiência social da própria economia. É um dever desempenhar de modo eficiente a atividade de produção dos bens, pois do contrário se desperdiçam recursos; mas não é aceitável um crescimento econômico obtido em detrimento dos seres humanos, de povos inteiros e de grupos sociais, condenados à indigência e à exclusão. A expansão da riqueza, visível na disponibilidade dos bens e dos serviços, e a exigência moral de uma difusão eqüitativa destes últimos devem estimular o homem e a sociedade como um todo a praticar a virtude essencial da solidariedade[694], para combater, no espírito da justiça e da caridade, onde quer que se revele a sua presença, as «estruturas de pecado»[695] que geram e mantém pobreza, subdesenvolvimento e degradação. Tais estruturas são edificadas e consolidadas por muitos atos concretos de egoísmo humano. 333 Para assumir um caráter moral, a atividade econômica deve ter como sujeitos todos os homens e todos os povos. Todos têm o direito de participar da vida econômica e o dever de contribuir, segundo as próprias capacidades, do progresso do próprio país e de toda a família humana[696]. Se, em certa medida, todos são responsáveis por todos, cada qual tem o dever de esforçar-se pelo desenvolvimento econômico de todos[697]: é dever de solidariedade e de justiça, mas também o caminho melhor para fazer progredir a humanidade toda. Vivida moralmente, a economia é pois prestação de um serviço recíproco, mediante a produção dos bens e serviços úteis ao crescimento de cada um, e torna-se oportunidade para cada homem de viver a solidariedade e a vocação à «comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou»[698]. O esforço de conceber e realizar projetos econômico-sociais capazes de propiciar uma sociedade mais eqüitativa e um mundo mais humano representa um desafio árduo, mas também um dever estimulante, para todos os operadores econômicos e para os cultores das ciências econômicas[699]. 334 Objeto da economia é a formação da riqueza e o seu incremento progressivo, em termos não apenas quantitativos, mas qualitativos: tudo isto é moralmente correto se orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade em que ele vive e atua. O desenvolvimento, com efeito, não pode ser reduzido a mero processo de acumulação de bens e serviços. Ao contrario, a pura acumulação, ainda que em vista do bem comum, não é uma condição suficiente par a realização da autêntica felicidade humana. Nesse sentido, o Magistério social alerta para a insídia que um tipo de desenvolvimento tão-somente quantitativo esconde, pois a «excessivadisponibilidade de todo o gênero de bens materiais, em favor de algumas camadas sociais, torna facilmente os homens escravos da “posse” e do gozo imediato... É o que se chama a civilização do “consumo”, ou consumismo...»[700]. 335 Na perspectiva do desenvolvimento integral e solidário, pode-se dar uma justa apreciação à avaliação moral que a doutrina social oferece sobre a economia de mercado ou, simplesmente, economia livre: «Se por “capitalismo” se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de “economia de empresa”, ou de “economia de mercado”, ou simplesmente de “economia livre”. Mas se por “capitalismo” se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa»[701]. Assim se define a perspectiva cristã acerca das condições sociais e políticas da atividade econômica: não só as suas regras, mas a sua qualidade moral e o seu significado.
III. INICIATIVA PRIVADA E EMPRESA
336 A doutrina social da Igreja considera a liberdade da pessoa em campo econômico um valor fundamental e um direito inalienável a ser promovido e tutelado: «Cada um tem o direito de iniciativa econômica, cada um usará legitimamente de seus talentos para contribuir para uma abundância que seja de proveito para todos e para colher os justos frutos de seus esforços»[702]. Tal ensinamento põe de guarda contra as conseqüências negativas que derivariam da mortificação ou negação do direito de iniciativa econômica: «A experiência demonstra-nos que a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa “igualdade” de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de fato, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão»[703]. Nesta perspectiva, a iniciativa livre e responsável em campo econômico pode ser definida como um ato que revela a humanidade do homem enquanto sujeito criativo e relacional. Tal iniciativa deve gozar, portanto, de um espaço amplo. O Estado tem a obrigação moral de pôr vínculos estreitos somente em vista das incompatibilidades entre a busca do bem comum e o tipo de atividade econômica iniciada ou as suas modalidades de realização[704]. 337 A dimensão criativa é um elemento essencial do agir humano, também em campo empresarial, e se manifesta especialmente na aptidão a projetar e a inovar: «Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e — enquanto parte essencial desse trabalho — das capacidades de iniciativa e de empreendimento»[705]. Na base de tal ensinamento deve ser individuada a convicção de que «a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas»[706]. a) A empresa e seus fins 338 A empresa deve caracterizar-se pela capacidade de servir o bem comum da sociedade mediante a produção de bens e serviços úteis. Procurando produzir bens e serviços em uma lógica de eficiência e de satisfação dos interesses dos diversos sujeitos implicados, ela cria riqueza para toda a sociedade: não só para os proprietários, mas também para os outros sujeitos interessados na sua atividade. Além de tal função tipicamente econômica, a empresa cumpre também uma função social, criando oportunidades de encontro, de colaboração, de valorização das capacidades das pessoas envolvidas. Na empresa, portanto, a dimensão econômica é condição para que se possam alcançar objetivos não apenas econômicos, mas também sociais e morais, a perseguir conjuntamente. O objetivo da empresa deve ser realizado em termos e com critérios econômicos, mas não devem ser descurados os autênticos valores que permitem o desenvolvimento concreto da pessoa e da sociedade. Nesta visão personalista e comunitária, «A empresa não pode ser considerada apenas como uma “sociedade de capitais”; é simultaneamente uma “sociedade de pessoas”, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua atividade, quer aqueles que colaboram com o seu trabalho»[707]. 339 Os componentes da empresa devem ser conscientes de que a comunidade na qual atuam representa um bem para todos e não uma estrutura que permite satisfazer exclusivamente os interesses pessoais de alguns. Somente tal consciência permite chegar à construção de uma economia verdadeiramente ao serviço do homem e de elaborar um projeto de real cooperação entre as partes sociais. Um exemplo muito importante e significativo na direção indicada provém da atividade das empresas cooperativas, das empresas artesanais e das agrícolas de dimensões familiares. A doutrina social tem sublinhado o valor do contributo que elas oferecem para a valorização do trabalho, para o crescimento do sentido de responsabilidade pessoal e social, para a vida democrática, para os valores humanos úteis ao progresso do mercado e da sociedade[708]. 340 A doutrina social reconhece a justa função do lucro, como primeiro indicador do bom andamento da empresa: «quando esta dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas»[709]. Isto não ofusca a consciência do fato de que nem sempre o lucro indica que a empresa está servindo adequadamente a sociedade[710]. É possível, por exemplo, «que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o patrimônio mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade»[711]. É o que acontece quando a empresa está inserida em sistemas sócio-culturais caracterizados pela exploração das pessoas, inclinados a fugir às obrigações de justiça social e a violar os direitos dos trabalhadores. É indispensável que, no interior da empresa, a legítima busca do lucro se harmonize com a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas que, a vário título, atuam na mesma empresa. As duas exigências não estão absolutamente em contraste uma com a outra, pois que, de um lado, não seria realista pensar em garantir o futuro da empresa sem a produção de bens e serviços e sem conseguir lucros que sejam fruto da atividade econômica realizada; por outro lado, consentindo crescer à pessoa que trabalha, se favorecem uma maior produtividade e eficácia do trabalho mesmo. A empresa deve ser uma comunidade solidária[712] não fechada nos interesses corporativos, tender a uma «ecologia social»[713] do trabalho, e contribuir para o bem comum mediante a salvaguarda do meio ambiente natural. 341 Se na atividade econômica e financeira a busca de um lucro eqüitativo é aceitável, o recurso à usura é moralmente condenado: «Todo aquele que em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provocam a fome e a morte de seus irmãos (homens) comete indiretamente um homicídio, que lhe é imputável»[714]. Tal condenação estende-se também às relações econômicas internacionais, especialmente pelo que respeita a situação dos países menos avançados, aos quais não podem ser aplicados «sistemas financeiros abusivos e mesmo usurários»[715]. O Magistério mais recente tem reservado palavras fortes e claras para uma prática ainda hoje dramaticamente estendida: «não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas»[716]. 342. A empresa se move hoje no quadro de cenários econômicos de dimensões mais cada vez amplas, nos quais os Estados nacionais mostram limites na capacidade de governar os processos de mudança por que passam as relações econômico-financeiras internacionais; esta situação induz as empresas a assumir responsabilidades novas e maiores em relação ao passado. Nunca como hoje o seu papel aparece determinante em vista de um desenvolvimento autenticamente solidário e integral da humanidade e é igualmente decisivo, neste sentido, o seu nível de consciência do fato de que o «desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso. Este fenômeno é particularmente indicativo da natureza do desenvolvimento autêntico: ou nele participam todas as nações do mundo, ou não será na verdade desenvolvimento»[717]. b) O papel do empresário e do dirigente de empresa 343 A iniciativa econômica é expressão da inteligência humana e da exigência de responder às necessidades do homem de modo criativo e colaborativo. Na criatividade e na cooperação está inscrita a autêntica concepção da competição empresarial: um cum-petere, ou seja, um buscar junto as soluções mais adequadas para responder do modo mais apropriado às necessidades que passo a passo vêm à tona. O sentido de responsabilidade que brota da livre iniciativa econômica se configura não só como virtude individual indispensável para o crescimento humano do indivíduo, mas também como virtude social necessária ao desenvolvimento de uma comunidade solidária: «Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida »[718]. 344 Os papéis do empresário e do dirigente reveste uma importância central do ponto de vista social, porque se colocam no coração daquela rede de liames técnicos, comerciais, financeiros, culturais, que caracterizam a moderna realidade da empresa. Dado que as decisões empresariais produzem, em razão da crescente complexidade da atividade empresarial, uma multiplicidade de efeitos conjuntos de grande relevância não só econômica, mas também social, o exercício das responsabilidades empresariais e dirigenciais exige, além de um esforço contínuo de atualização específica, uma constante reflexão sobre as motivações morais que devem guiar as opções pessoais de quem esta investido de tais encargos. Os empresários e os dirigentes não podem levar em conta exclusivamente o objetivo econômico da empresa, os critérios de eficiência econômica, as exigências do cuidado do «capital» como conjunto dos meios de produção: é também um preciso dever deles o concreto respeito da dignidade humana dos trabalhadores que atuam na empresa[719]. Estes últimos constituem «o patrimônio mais precioso da empresa»[720], o fator decisivo da produção[721]. Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, de compra ou de venda, de redimensionamento ou fechamento das filiais, na política das fusões, não se pode limitar exclusivamente a critérios de natureza financeira ou comercial. 345 A doutrina social insiste na necessidade de que o empresário e o dirigente se empenhem em estruturar a atividade profissional nas suas empresas de modo a favorecer a família, especialmente as mães de família no cumprimento das suas funções[722]; respondam, à luz de uma visão integral do homem e do desenvolvimento, à demanda de qualidade «das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral»[723]; invistam, sempre que se apresentarem as condições econômicas e de estabilidade política, nos lugares e nos setores produtivos que oferecem a indivíduos e povos «a ocasião de valorizar o próprio trabalho»[724].
IV. INSTITUIÇÕES ECONÔMICAS
346. Uma das questões prioritárias na economia é o emprego dos recursos[725], isto é, de todos aqueles bens e serviços cujos sujeitos econômicos, produtores e consumidores privados e públicos, atribuem um valor para a utilidade destes inerentes no campo da produção e do consumo. Na natureza os recursos são quantitativamente escassos e isto implica, necessariamente, que cada sujeito econômico, assim como cada sociedade, deva elaborar alguma estratégia para empregá-los do modo mais racional possível, seguindo a lógica ditada pelo princípio de economia. Disto dependem seja a efetiva solução do problema econômico mais geral, e fundamentalmente, da limitação dos meios em relação às necessidades individuais e sociais, privados e públicos, seja a eficiência completiva, estrutural e funcional, de todo o sistema econômico. Tal eficiência chama diretamente em causa a responsabilidade e a capacidade de vários sujeitos, como o mercado, o Estado e os corpos sociais intermediários.AO SERVIÇO DO HOMEM a) O papel do mercado livre 347 O livre mercado é uma instituição socialmente importante para a sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços. Historicamente, o mercado deu provas de saber impulsionar e manter, por longo período, o desenvolvimento econômico. Existem boas razões para acreditar que, em muitas circunstâncias, «o livre mercado seja o instrumento mais eficaz para colocar os recursos e responder eficazmente as necessidades»[726]. A doutrina social da Igreja aprecia as vantagens seguras que os mecanismos do livre mercado oferecem, seja para uma melhor utilização dos recursos, seja para facilitar a troca de produtos; estes mecanismos « sobretudo, colocam no centro a vontade e as preferências da pessoa que no contrato se encontram com aqueles de uma outra pessoa»[727]. Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência. 348 O livre mercado não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e doa valores que transmite em nível social. O mercado, de fato, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação. Cabe à consciência individual e à responsabilidade pública estabelecer uma justa relação entre meios e fim[728]. O benefício individual do operador econômico, se bem que legítimo, jamais deve tornar-se o único objetivo. Ao lado deste, existe um outro, também fundamental e superior, aquele da utilidade social, que deve encontrar realização não em contraste, mas em coerência com a lógica de mercado. Quando desempenha as importantes funções acima recordadas, o livre mercado torna-se funcional ao bem e ao desenvolvimento integral do homem, enquanto a inversão da relação entre meios e fins pode fazê-lo degenerar em uma instituição desumana e alienante, com repercussões incontroláveis. 349 A doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo ao mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema econômico, coloca em evidência a necessidade de ancorá-lo à finalidade moral, que assegurem e, ao mesmo tempo, circunscrevam adequadamente o espaço de sua autonomia[729]. A idéia de que se possa confiar tão-somente ao mercado o fornecimento de todas as categorias de bens não é admissível, porque baseada numa visão redutiva da pessoa e da sociedade[730]. Diante do concreto risco de uma « idolatria » do mercado, a doutrina social da Igreja lhe ressalta o limite, facilmente reveláveis em a sua constatada incapacidade de satisfazer as exigências humanas importantes, pelas quais há a necessidade de bens que, «por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias»[731], bens não negociáveis segundo a regra da «troca de equivalentes» e a lógica do contrato, típicas do mercado. 350 O mercado assume uma função social e relevante nas sociedades contemporâneas, por isso é importante individuar as potencialidades mais positivas e criar condições que permitam a sua concreta expansão. Os operadores devem ser efetivamente livres para confrontar, avaliar e escolher entre as várias opções, todavia a liberdade, no âmbito econômico, deve ser regulada por um apropriado quadro jurídico tal da colocá-la a serviço da liberdade humana integral: «a liberdade econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir»[732]. b) A ação do Estado 351 A ação do estado e dos outros poderes públicos deve conformar-se com o princípio da subsidiariedade para criar situações favoráveis ao livre exercício da atividade econômica; esta deve inspirar-se também no princípio de solidariedade e estabelecer os limites da autonomia das partes para defender a parte mais frágeis[733]. A solidariedade sem subsidiariedade pode, de fato, degenerar facilmente em assistencialismo, ao passo que a subsidiariedade sem a solidariedade se expõe ao risco de alimentar formas de localismo egoísta. Para respeitar estes dois fundamentais princípios, a intervenção do Estado em âmbito econômico não deve ser nem açambarcadora, nem remissiva, mas sim apropriada às reais exigências da sociedade: «O Estado tem o dever de secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise. O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais»[734]. 352 A tarefa fundamental do Estado em âmbito econômico é o de definir um quadro jurídico apto a regular as relações econômicas, com a finalidade de «salvaguardar ... as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão»[735]. A atividade econômica, sobretudo num contexto de livre mercado, não pode desenrolar-se num vazio institucional, jurídico e político: «Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes»[736]. Para cumprir a sua tarefa, o Estado deve elaborar uma legislação apropriada, mas também orientar cuidadosamente as políticas econômicas, de modo a não se tornar prevaricador nas várias atividades de mercado, cuja atuação deve permanecer livre de superestruturas e coerções autoritárias ou, pior, totalitárias. 353 É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras eqüitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário[737], nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo. Na realidade, em alguns âmbitos, o mercado, apoiando-se nos próprios mecanismos, não é capaz de garantir uma distribuição eqüitativa de alguns bens e serviços essenciais ao crescimento humano dos cidadãos: neste caso a complementaridade entre Estado e mercado é sobremaneira necessária. 354 O Estado pode concitar os cidadãos e as empresas na promoção do bem comum cuidando de atuar uma política econômica que favoreça a participação de todos os seus cidadãos nas atividades produtivas. O respeito do princípio de subsidiariedade deve mover as autoridades públicas a buscar condições favoráveis ao desenvolvimento das capacidades de iniciativa individuais, da autonomia e da responsabilidade pessoais dos cidadãos, abstendo-se de qualquer intervenção que possa constituir um condicionamento indébito das forças empresariais. Em vista do bem comum, se deve sempre perseguir com constante determinação o objetivo de um justo equilíbrio entre liberdade privada e ação pública, entendida quer como intervenção direta na economia, quer como atividade de suporte ao desenvolvimento econômico. Em todo o caso, a intervenção pública deverá ater-se a critérios de eqüidade, racionalidade e eficiência, e não substituir a ação dos indivíduos, contra o seu direito à liberdade de iniciativa econômica. O Estado, neste caso, se torna deletério para a sociedade: uma intervenção direta excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas[738]. 355 A coleta fiscal e a despesa pública assumem uma importância econômica crucial para qualquer comunidade civil e política: o objetivo para o qual tender é uma finança pública capaz de se propor como instrumento de desenvolvimento e de solidariedade. Uma finança pública eqüitativa, eficiente, eficaz, produz efeitos virtuosos sobre a economia, porque consegue favorecer o crescimento do emprego, amparar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, e contribui a aumentar a credibilidade do Estado enquanto garante dos sistemas de previdência e de proteção social destinados em particular a proteger os mais fracos. As finanças públicas se orientam para o bem comum quando se atêm a alguns princípios fundamentais: o pagamento dos impostos[739] como especificação do dever de solidariedade; racionalidade e eqüidade na imposição dos tributos[740]; rigor e integridade na administração e na destinação dos recursos públicos[741]. Ao redistribuir as riquezas, a finança pública deve seguir os princípios da solidariedade, da igualdade, da valorização dos talentos, e prestar grande atenção a amparar as famílias, destinando a tal fim uma adequada quantidade de recursos[742]. c) O papel dos corpos intermédios 356 O sistema econômico-social deve ser caracterizado pela compresença de ação pública e privada, incluída a ação privada sem finalidade de lucro. Configura-se de tal modo uma pluralidade de centros decisórios e de lógicas de ação. Há algumas categorias de bens, coletivos e de uso comum, cuja utilização não pode depender dos mecanismos do mercado[743] e não é nem mesmo de exclusiva competência do Estado. O dever do Estado, em relação a estes bens, é antes o de valorizar todas as iniciativas sociais e econômicas que têm efeitos públicos, promovidos pelas formações intermédias. A sociedade civil, organizada nos seus corpos intermédios, é capaz de contribuir para a consecução do bem comum pondo-se em uma relação de colaboração e de eficaz complementaridade em relação ao Estado e ao mercado, favorecendo assim o desenvolvimento de uma oportuna democracia econômica. Em um semelhante contexto, a intervenção do Estado deve ser caracterizada pelo exercício de uma verdadeira solidariedade, que como tal nunca deve ser separada da subsidiariedade. 357 As organizações privadas sem fins lucrativos têm um espaço específico em âmbito econômico: nos serviços sociais, na instrução, na saúde, na cultura. Caracteriza tais organizações a corajosa tentativa de unir harmoniosamente eficiência produtiva e solidariedade. Constituem-se, geralmente, em base a um pacto associativo e são expressão de uma tensão ideal comum aos sujeitos que livremente decidem aderir às mesmas. O Estado é chamado a respeitar a natureza destas organizações e a valorizar as características, dando concreta atuação ao princípio de subsidiariedade, que postula precisamente um respeito e uma promoção da dignidade e da autônoma responsabilidade do sujeito «subsidiado». d) Poupança e consumo 358 Os consumidores, que em muitos casos dispõem de amplas margens de poder aquisitivo, bem além do limiar da subsistência, e podem influenciar consideravelmente a realidade econômica com a sua livre escolha entre consumo e poupança. A possibilidade de influir nas escolhas do sistema econômico está nas mãos de quem deve decidir sobre o destino dos próprios recursos financeiros. Hoje mais do que no passado, é possível avaliar as alternativas disponíveis não somente em base ao rendimento previsto ou ao seu grau de risco, mas também exprimindo um juízo de valor sobre os projetos de investimento que os recursos irão financiar, na consciência de que «a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural»[744]. 359 O uso do próprio poder aquisitivo há de ser exercido no contexto das exigências morais da justiça e da solidariedade e de responsabilidades sociais precisas: é preciso não esquecer que «o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o “supérfluo”, e às vezes até com o “necessário” para garantir o indispensável à vida do pobre»[745]. Tal responsabilidade confere aos consumidores a possibilidade de dirigir, graças à maior circulação de informações, o comportamento dos produtores, mediante a decisão ―individual ou coletiva― de preferir os produtos de algumas empresas em lugar de outras, levando em conta não apenas os preços e a qualidadedos produtos, mas também a existência de corretas condições de trabalho nas empresas, bem como o grau de tutela assegurado para o ambiente natural que o circunda. 360 O fenômeno do consumismo mantém uma persistente orientação para o «ter» mais que para o «ser». Ele impede de «distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura»[746]. Para contrastar este fenômeno é necessário esforçar-se por construir «estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento»[747]. É inegável que as influências do contexto social sobre os estilos de vida são notáveis: por isso o desafio cultural que hoje o consumismo põe deve ser enfrentado com maior incisividade, sobretudo se se consideram as gerações futuras, as quais arriscam ter de viver num ambiente saqueado por causa de um consumo excessivo e desordenado[748].
V. AS «RES NOVAE»
EM ECONOMIA a) A globalização: as oportunidades e os riscos 361 O nosso tempo é marcado pelo complexo fenômeno da globalização econômico-financeira, isto é, um processo de crescente integração das economias nacionais, no plano do comércio de bens e serviços e das transações financeiras, no qual um número sempre maior de operadores assume um horizonte global pelas opções que deve efetuar em função das oportunidades de crescimento e de lucro. O novo horizonte da sociedade global não é dado simplesmente pela presença de liames econômicos e financeiros entre atores nacionais atuantes em países diversos, que, ademais, sempre existiram, quanto principalmente pelo caráter invasivo e pela natureza absolutamente inédita do sistema de relações que se está desenvolvendo. Torna-se cada vez mais decisivo e central o papel dos mercados financeiros, cujas dimensões, em seguida à liberalização das trocas e à circulação dos capitais, cresceram enormemente com uma velocidade impressionante, a ponto de consentir aos operadores transferir «em tempo real» de uma parte a outra do globo, capitais em grande quantidade. Trata-se de uma realidade multiforme e não simples de decifrar, dado que se desenrola em vários níveis e evolui constantemente, ao longo de trajetórias dificilmente previsíveis. 362. A globalização alimenta novas esperanças, mas também suscita interrogações inquietantes[749]. Ela pode produzir efeitos potencialmente benéficos para a humanidade inteira: entrelaçando-se com o impetuoso desenvolvimento das telecomunicações, o percurso de crescimento do sistema de relações econômicas e financeiras tem consentido simultaneamente uma notável redução nos custos das telecomunicações e das novas tecnologias, bem como uma aceleração no processo de extensão em escala planetária dos intercâmbios comerciais e das transações financeiras. Em outras palavras, aconteceu que os dois fenômenos, globalização econômico-financeira e progresso tecnológico têm se reforçado reciprocamente, tornando extremamente rápida a dinâmica completiva da atual fase econômica. Analisando o contexto atual, além de divisar as oportunidades que se abrem na era da economia global, se percebem também os riscos ligados às novas dimensões das relações comerciais e financeiras. Não faltam, efetivamente, indícios reveladores de uma tendência ao aumento das desigualdades quer entre países avançados e países em via de desenvolvimento, quer no interior dos países industrializados. À crescente riqueza econômica possibilitada pelos processos descritos acompanha um crescimento da pobreza relativa. 363 O zelo pelo bem comum exige que se aproveitem as novas ocasiões de redistribuição de poder e riqueza entre as diversas áreas do planeta, em benefício das mais desfavorecidas e até agora excluídas ou à margem do progresso social e econômico[750]: «O desafio, em suma, é o de assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização»[751]. O próprio progresso tecnológico arrisca repartir iniquamente entre os países os próprios efeitos positivos. As inovações, com efeito, podem penetrar e difundir-se no interior de uma determinada coletividade, se os seus potenciais beneficiários atingem um patamar mínimo de saber e de recursos financeiros: é evidente que, em presença de fortes disparidades entre os países no acesso aos conhecimentos técnico-científicos e aos mais recentes produtos tecnológicos, o processo de globalização acaba por alargar, ao invés de reduzir, as distâncias entre os países em termos de desenvolvimento econômico e social. Dada a natureza das dinâmicas em curso, a livre circulação de capitais não é de per si suficiente para favorecer a aproximação dos países em via de desenvolvimento em relação aos mais avançados. 364 O comércio representa uma componente fundamental das relações econômicas internacionais, contribuindo de maneira determinante para a especialização produtiva e para o crescimento econômico dos diversos países. Hoje mais do que nunca o comércio internacional, se oportunamente orientado, promove o desenvolvimento e é capaz de criar novos empregos e de fornecer úteis recursos. A doutrina social tem muitas vezes posto em claro as distorções do sistema comercial internacional[752] que freqüentemente, por causa das políticas protecionistas adotadas pelos países desenvolvidos, discrimina os produtos provenientes dos países mais pobres e impede o crescimento de atividades industriais e a transferência de tecnologias para tais países[753]. A contínua deterioração nos termos do comércio de matérias primas e o agravar-se da diferença entre países ricos e pobres levou o Magistério chamar a atenção para a importância dos critérios éticos que deveriam orientar as relações econômicas internacionais: a busca do bem comum e a destinação universal dos bens; a equidade nas relações comerciais; a atenção aos direitos e às necessidades dos mais pobres nas políticas comerciais e de cooperação internacional. Diversamente, os «pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos»[754]. 365 Uma solidariedade adequada à era da globalização requer a defesa dos direitos humanos. A este propósito o Magistério assinala que não só «a perspectiva duma autoridade pública internacional ao serviço dos direitos humanos, da liberdade e da paz, não só não se realizou ainda inteiramente, mas há que registrar, infelizmente, a hesitação bastante freqüente da comunidade internacional no seu dever de respeitar e aplicar os direitos humanos. Este dever engloba todos os direitos fundamentais, não permitindo escolhas arbitrárias que conduziriam a formas reais de discriminação e de injustiça. Ao mesmo tempo, somos testemunhas dum fosso preocupante que se vai alargando entre uma série de novos “direitos” promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os direitos humanos elementares que ainda não são respeitados sobretudo em situações de subdesenvolvimento; penso, por exemplo, no direito à alimentação, à água potável, à casa, à autodeterminação e à independência»[755]. 366 A extensão da globalização deve ser acompanhada por uma tomada de consciência mais madura por parte das organizações da sociedade civil, das novas tarefas às quais são chamadas em âmbito mundial. Também graças a uma ação incisiva da parte destas organizações será possível manter o atual processo de crescimento da economia e das finanças em escala planetária num horizonte que garanta um efetivo respeito dos direitos do homem e dos povos, bem como uma distribuição eqüitativa das riquezas, no interior de cada país e entre diferentes países: «A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social»[756]. Particular atenção deve ser reservada às especificidades locais e às diversidades culturais, que correm o risco de serem comprometidas pelos processos econômico-financeiros em curso: «A globalização não pode constituir um novo tipo de colonialismo. Pelo contrário, deve respeitar a diversidade das culturas que, no âmbito da harmonia universal dos povos, são as chaves interpretativas da vida. De forma especial, não deve privar os pobres daquilo que lhes resta de mais precioso, inclusivamente os credos e as práticas religiosas, porque as convicções religiosas genuínas constituem a manifestação mais clarividente da liberdade humana»[757]. 367 Na época da globalização se deve ressaltar com força a solidariedade entre as gerações: «No passado, a solidariedade entre as gerações constituía, em muitos países, uma atitude natural por parte da família; hoje, tornou-se também um dever da comunidade»[758]. È conveniente que tal solidariedade continue a ser perseguida nas comunidades políticas nacionais, mas hoje o problema se põe também para a comunidade política global, para que a mundialização não se realize em detrimento dos mais necessitados e dos mais fracos. A solidariedade entre as gerações requer que, na planificação global se aja de acordo com o princípio da destinação universal dos bens, que torna moralmente ilícito e economicamente contraproducente descarregar os custos atuais nas gerações vindouras: moralmente ilícito porque significa não assumir as devidas responsabilidades, economicamente contraproducente porque a correção dos danos é mais dispendiosa do que a sua prevenção. Este princípio deve ser aplicado sobretudo — ainda que não apenas — no campo dos recursos da terra e da salvaguarda da criação, hoje particularmente delicado em virtude da globalização, que diz respeito a todo o planeta, entendido como um único ecossistema[759]. b) O sistema financeiro internacional 368 Os mercados financeiros não são certamente uma novidade da nossa época: já desde há muito tempo, por várias formas, eles cuidaram de responder à exigência de financiar atividades produtivas. A experiência histórica atesta que, na ausência de sistemas financeiros adequados, não teria havido crescimento econômico. Os investimentos em larga escala, típicos das modernas economias de mercado, não teriam sido possíveis sem o papel fundamental de intermediação exercido pelos mercados financeiros, que permitiu, entre outras coisas, apreciar as funções positivas da poupança para o desenvolvimento integral do sistema econômico e social. Se, por um lado, a criação daquilo que se tem definido como o «mercado global dos capitais» produziu efeitos benéficos, graças ao fato de que a maior mobilidade dos capitais consentiu às atividades produtivas alcançar mais facilmente a disponibilidade de recursos, por outro lado a maior mobilidade também aumentou o risco de crises financeiras. O desenvolvimento da atividade financeira, cujas transações superaram sobejamente, em volume, as transações reais, corre o risco de seguir uma lógica voltada sobre si mesma, sem conexão com a base real da economia. 369 Uma economia financeira, cujo fim é ela própria, está destinada a contradizer as suas finalidades, pois que se priva das próprias raízes e da própria razão constitutiva, ou seja, do seu papel originário e essencial de serviço à economia real e, ao fim e ao cabo, de desenvolvimento das pessoas e das comunidades humanas. O quadro completo manifesta-se ainda mais preocupante à luz da configuração fortemente assimétrica que caracteriza o sistema financeiro internacional: os processos de inovação e de desregulamentação dos mercados financeiros tendem, de fato, a consolidar-se somente em algumas partes do globo. Isto é fonte de graves preocupações de natureza ética, porque os países excluídos dos processos descritos, mesmo não gozando dos benefícios destes produtos, não estão entretanto protegidos de eventuais conseqüências negativas da instabilidade financeira sobre os seus sistemas econômicos reais, sobretudo se frágeis e com atraso no desenvolvimento[760]. A improvisa aceleração dos processos quais o enorme incremento no valor das carteiras administradas pelas instituições financeiras e o rápido proliferar de novos e sofisticados instrumentos financeiros torna deveras urgente divisar soluções institucionais capazes de favorecer eficazmente a estabilidade do sistema, sem reduzir-lhe as potencialidades e a eficiência. É indispensável introduzir um quadro normativo que consinta tutelar tal estabilidade em todas as suas complexas articulações, promover a concorrência entre os intermediários e assegurar a máxima transparência em benefício dos investidores. c) O papel da comunidade internacional na época da economia global 370 A perda de centralidade por parte dos atores estatais deve coincidir com um maior empenho da comunidade no exercício de um decidido papel de orientação econômica e financeira. Uma importante conseqüência do processo de globalização consiste, com efeito, na gradual perda de eficácia do Estado nação na condução das dinâmicas econômico-financeiras nacionais. Os Governos de cada País vêem a própria ação em campo econômico e social sempre mais fortemente condicionada pelas expectativas dos mercados internacionais dos capitais e pelos sempre mais prementes pedidos de credibilidade provenientes do mundo financeiro. Por causa dos novos liames entre os operadores globais, as tradicionais medidas defensivas dos Estados parecem condenadas insucesso e, em face das novas áreas da competição, passa ao segundo plano a própria noção de mercado nacional. 371 Quanto mais o sistema econômico-financeiro mundial alcança níveis elevados de complexidade organizativa e funcional, tanto mais se impõe como prioritária a tarefa de regular tais processos, orientando-os à consecução do bem comum da família humana. Vem à tona concretamente a exigência de que, além dos Estados nacionais, seja a comunidade internacional a assumir esta delicada função, com instrumentos políticos e jurídicos adequados e eficazes. É portanto indispensável que as instituições econômicas e financeiras internacionais saibam individuar as soluções institucionais mais apropriadas e elaborem as estratégias de ação mais oportunas com o escopo de orientar uma mudança que, fosse sofrida passivamente e abandonada a si mesma, provocaria êxitos dramáticos sobretudo em detrimento dos estratos mais fracos e indefesos da população mundial. Nos organismos internacionais devem ser eqüitativamente representados os interesses da grande família humana; é necessário que estas instituições, «ao avaliarem as conseqüências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento»[761]. 372 Também a política, a par da economia, deve saber estender o próprio raio de ação para além dos confins nacionais, adquirindo rapidamente aquela dimensão operativa mundial que lhe pode consentir orientar os processos em curso à luz de parâmetros não só econômicos, mas também morais. O objetivo de fundo será o de guiar tais processos assegurando o respeito da dignidade do homem e o desenvolvimento completo da sua personalidade, no horizonte do bem comum[762]. A assunção de uma tal tarefa comporta a responsabilidade de acelerar a consolidação das instituições existentes assim como a criação de novos órgãos aos quais confiar tais responsabilidades[763]. O desenvolvimento econômico, efetivamente, pode ser duradouro somente na medida em que se desdobra no interior de um quadro claro e definido de normas e de um amplo projeto de crescimento moral, civil e cultural de toda a família humana. d) Um desenvolvimento integral e solidário 373 Uma das tarefas fundamentais dos atores da economia internacional é a obtenção de um desenvolvimento integral e solidário para a humanidade, vale dizer, «promover todos os homens e o homem todo»[764]. Tal tarefa exige uma concepção da economia que garanta, no plano internacional, a distribuição eqüitativa dos recursos e responda à consciência da interdependência ― econômica, política e cultural ― que de agora em diante une definitivamente os povos entre eles e faz com que se sintam ligados a um único destino[765]. Os problemas sociais assumem cada vez mais uma dimensão planetária: a paz, a ecologia, a alimentação, a droga, as doenças. Estado algum já os enfrentar e resolver sozinho. As gerações atuais tocam com as mãos a necessidade da solidariedade e advertem concretamente a necessidade de superar a cultura individualista[766]. Nota-se sempre mais difusamente a exigência de modelos de desenvolvimento que prevejam não apenas «elevar todos os povos ao nível que hoje gozam somente os países mais ricos, mas de construir no trabalho solidário uma vida mais digna, fazer crescer efetivamente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de corresponder à própria vocação e, portanto, ao apelo de Deus »[767]. 374 Um desenvolvimento mais humano e solidário favorecerá também aos próprios países mais ricos. Tais países «advertem com freqüência uma espécie de desorientação existencial, uma incapacidade de viver e de gozar retamente o sentido da vida, embora na abundância de bens materiais, uma alienação e perda da própria humanidade em muitas pessoas, que se sentem reduzidas ao papel de engrenagens no mecanismo da produção e do consumo e não encontram o modo de afirmar a própria dignidade de homens, feitos à imagem e semelhança de Deus»[768]. Os países ricos mostraram ter a capacidade de criar bem-estar material, mas, não raro, às custas do homem e das faixas sociais mais débeis: «não se pode ignorar que as fronteiras da riqueza e da pobreza passam pelo interior das próprias sociedades, quer desenvolvidas, quer em vias de desenvolvimento. De fato, assim como existem desigualdades sociais até aos extremos da miséria em países ricos, assim, em contraposição, nos países menos desenvolvidos também se vêem, não raro, manifestações de egoísmo e de ostentação de riqueza, tão desconcertantes quanto escandalosas»[769]. e) A necessidade de uma grande obra educativa e cultural 375 Para a doutrina social, a economia «é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa atividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema econômico, quanto no fato de que todo o sistema sócio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços»[770]. A vida do homem, a par da vida social da coletividade, não pode ser reduzida a uma dimensão materialística, ainda que os bens materiais sejam extremamente necessários quer para a mera sobrevivência, quer para o melhoramento do teor de vida: «aumentar o senso de Deus e o conhecimento de si mesmo é a base de todo desenvolvimento completo da sociedade humana»[771]. 376 Em face do rápido andamento do progresso técnico-econômico e da mutabilidade, igualmente rápida, dos processos de produção e de consumo, o Magistério adverte a exigência de propor uma grande obra educativa e cultural: «O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica... Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais... O sistema econômico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas»[772].
CAPÍTULO VIII
A COMUNIDADE POLÍTICA
I. ASPECTOS BÍBLICOS
377 O povo de Israel, na fase inicial da sua história, não tem reis, como os demais povos, porque reconhece tão-somente o senhorio de Iahweh. É Deus que intervém na história através de homens carismáticos, conforme testemunha o Livro dos Juízes. Ao último destes homens, Samuel, o povo pedirá um rei semelhante (cf. 1 Sam 8, 5; 10, 18-19). Samuel põe os Israelitas de sobreaviso acerca das conseqüências de um exercício despótico da realeza (cf. 1 Sam 8, 11-18); contudo, o poder régio pode ser experimentado como dom de Iahweh que como dom de Iahweh que vem em socorro de seu povo (cfr 1 Sam 9, 16). Finalmente, Saul receberá a unção real (cf. 1 Sam 10, 1-12). O episódio evidencia as tensões que levaram Israel a uma concepção de realeza diferente da dos povos vizinhos: o rei, escolhido por Iahweh (cf. Dt 17, 15: 1 Sam 9, 16) e por Ele consagrado (cf. 1 Sam 16, 12-13) será visto como Seu filho (cf. Sal 2, 7) e deverá tornar visível o senhorio e o desígnio de salvação (cf. Sal 72). Deverá ainda fazer-se defensor dos fracos e assegurar ao povo a justiça: as denúncias dos profetas apontarão precisamente para as inadimplências dos reis (cfr 1 Re 21; Am 2, 6-8; Mi 3, 1-4).378 O protótipo de rei escolhido por Iahweh é Davi, cuja condição humilde o relato bíblico ressalta com complacência (cf. 1 Sam 16, 1-13). Davi é o depositário da promessa (cf. 2 Sam 7, 13 ss; Sal 89, 2-38; 132, 11-18), que o coloca na origem de uma tradição real, precisamente a tradição «messiânica», a qual não obstante todos os pecados e as infidelidades do mesmo Davi e de seus sucessores, culmina em Jesus Cristo, o «ungido de Iahweh» (isto é, «consagrado do Senhor» cf. 1 Sam 2, 35; 24, 7.11; 26, 9.16; Ex. 30, 22-32) por excelência, filho de Davi (cf. as duas genealogias em Mt 1, 1-17 e Lc 3, 23-38; ver também Rm 1, 3). O fracasso, no plano histórico, da realeza não ocasionará o desaparecimento do ideal de um rei que, em fidelidade a Iahweh, governe com sabedoria e exerça a justiça. Esta esperança reaparece repetidas vezes nos Salmos (cf. Sal 2; 18; 20; 21; 72). Nos oráculos messiânicos é esperado, para um tempo escatológico, a figura de um rei dotado do Espírito do Senhor, pleno de sapiência e em condição de trazer justiça aos pobres (cf. Is 11, 2-5; Jr 23, 5-6). Verdadeiro pastor do povo de Israel (cf. Ez 34, 23-24; 37, 24) levará a paz aos povos (cf. Zc 9, 9-10). Na literatura sapiencial, o rei é apresentado como aquele que emite justos juízos e aborrece a iniqüidade (cf. Pr 16, 12), julga os pobres com equidade (cf. Pr 29, 14) e é amigo do homem de coração puro (cf. Pr 22, 11). Torna mais explícito o anúncio de tudo quanto os Evangelhos e os demais autores do Novo Testamento vêem realizado em Jesus de Nazaré, encarnação definitiva da figura do rei descrita no Antigo Testamento. b) Jesus e a autoridade política 379 Jesus rejeita o poder opressivo e despótico dos grandes sobre nações (cf. Mc 10, 42) e suas pretensões de fazerem-se chamar benfeitores (cf. Lc 21, 25), mas nunca contesta diretamente as autoridades de seu tempo. Na diatribe sobre o tributo a ser pago a César (cf. Mc 12, 13-17; Mt 22, 15-22; Lc 20, 20-26), Ele afirma que se deve dar a Deus o que é de Deus, condenando implicitamente toda tentativa de divinizar e de absolutizar o poder temporal: somente Deus pode exigir tudo do homem. Ao mesmo tempo o poder temporal tem o direito àquilo que lhe é devido: Jesus não considera injusto o tributo a César. Jesus, o Messias prometido, combateu e desbaratou a tentação de um messianismo político, caracterizado pelo domínio sobre as nações (cf. Mt 4, 8-11; Lc 4, 5-8). Ele é o Filho do Homem que veio «para servir e entregar a própria vida» (Mc 10, 45; cf. Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27). Aos discípulos que discutem sobre qual é o maior, Jesus ensina a fazer-se último e a servir a todos (cf. Mc 9, 33-35), indicando aos filhos de Zebedeu, Tiago e João, que ambicionam sentar-se à Sua direita, o caminho da cruz (cf. Mc 10, 35-40; Mt 20, 20-23). c) As primeiras comunidades cristãs 380 A submissão, não passiva, mas por razões de consciência(Rm 13, 5) ao poder constituído corresponde à ordem estabelecida por Deus. São Paulo define as relações e os deveres dos cristãos para com as autoridades (cf. Rm 13, 1-7). Insiste no dever cívico de pagar os tributos: «Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito» (Rm 13, 7). O Apóstolo certamente não pretende legitimar todo poder, pretende antes ajudar os cristãos a «fazer o bem diante de todos os homens» (Rm 12, 7), também nas relações com a autoridade, na medida em que esta está ao serviço de Deus para o bem da pessoa (cf. Rm 13, 4; 1 Tm 2, 1-1; Tt 3, 1) e «para fazer justiça e exercer a ira contra aquele que pratica o mal» (Rm 13, 4). São Pedro exorta os cristãos a submeter-se «a toda autoridade humana por amor a Deus» (1 Pe 2, 13). O rei e os seus governadores têm a função de «punir os malfeitores e premiar os bons» (cf. 1 Pe 2, 14). A sua autoridade deve ser «honrada», isto é, reconhecida, porque Deus exige um comportamento reto, que «emudeça a ignorância dos insensatos» (1 Pe 2, 15). A liberdade não pode ser usada para cobrir a própria malícia, mas para servir a Deus (cf. ibidem). Trata-se portanto de uma obediência livre e responsável a uma autoridade que faz respeitar a justiça, assegurando o bem comum. 381 A oração pelos governantes, recomendada por São Paulo durante as perseguições, indica explicitamente o que a autoridade política deve garantir: uma vida calma e tranqüila a transcorrer com toda a piedade e dignidade (cf. 1 Tm 2, 1-2). Os cristãos devem estar «prontos para qualquer boa obra» (Tt 3, 1), sabendo «dar provas de toda mansidão para com todos os homens» (Tt 3, 2), conscientes de ter sido salvos não pelas suas obras, mas pela misericórdia de Deus. Sem «o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido em profusão, por meio de Cristo, nosso Salvador» (Tt 3, 5-6), todos os homens são «insensatos, rebeldes, transviados, escravos de paixões de toda a espécie, vivendo na malícia e na inveja, detestáveis, odiando-nos uns aos outros» (Tt 3, 3). Não se deve esquecer a miséria da condição humana, marcada pelo pecado e resgatada pelo amor de Deus. 382 Quando o poder humano sai dos limites da vontade de Deus, se autodiviniza e exige submissão absoluta, torna-se a Besta do Apocalipse, imagem do poder imperial perseguidor, ébrio «do sangue dos santos e dos mártires de Jesus» (Ap. 17, 6). A Besta tem a seu serviço o «falso profeta» (Ap. 19, 20), que impele os homens a adorá-la com portentos que seduzem. Esta visão indica profeticamente todas as insídias usadas por Satanás para governar os homens, insinuando-se no seu espírito com a mentira. Mas Cristo é o Cordeiro Vencedor de todo poder que se absolutiza no curso da história humana. Em face de tais poderes, São João recomenda a resistência dos mártires: dessa maneira, os fiéis testemunham que o poder corrupto e satânico é vencido, porque já não tem ascendência alguma sobre eles. 383 A Igreja proclama que Cristo, vencedor da morte, reina sobre o universo que Ele mesmo resgatou. O Seu reino se estende a todo o tempo presente e terá fim somente quando tudo for entregue ao Pai e a história humana se consumar com o juízo final(cf. 1 Cor 15, 20-28). Cristo revela à autoridade humana, sempre tentada ao domínio, o seu significado autêntico e completo de serviço. Deus é o único Pai e Cristo o único mestre para todos os homens, que são irmãos. A soberania pertence a Deus. O Senhor, todavia, «não quis reter para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que esta é capaz de exercer, segundo as capacidades da própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O comportamento de Deus no governo do mundo, que demonstra tão grande consideração pela liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria dos que governam as comunidades humanas. Estes devem comportar-se como ministros da providência divina»[773]. A mensagem bíblica inspira incessantemente o pensamento cristão sobre o poder político, recordando que esse tem sua origem em Deus e, como tal, é parte integrante da ordem por Ele criada. Tal ordem é percebida pelas consciências e se realiza na vida social mediante a verdade, a justiça e a solidariedade, que conduzem à paz[774].
II. O FUNDAMENTO
E O FIM DA COMUNIDADE POLÍTICA a) Comunidade política, pessoa humana e povo 384 A pessoa humana é fundamento e fim da convivência política[775]. Dotada de racionalidade, é responsável pelas próprias escolhas e capaz de perseguir projetos que dão sentido à sua vida, tanto no plano individual como no plano social. A abertura para a Transcendência e para os outros é o traço que a caracteriza e distingue: somente em relação com a Transcendência e com os outros a pessoa humana alcança a plena e completa realização de si. Isto significa que para o homem, criatura naturalmente social e política, «a vida social ... não é qualquer coisa de acidental»[776], mas uma dimensão essencial e incancelável. A comunidade política procede, portanto, da natureza das pessoas, cuja consciência «manifesta e obriga peremptoriamente a observar»[777] a ordem esculpida por Deus em todas as Suas criaturas: «uma ordem moral e religiosa, que, mais do que todos e quaisquer valores materiais, influi na direção e nas soluções que deve dar aos problemas da vida individual e comunitária, dentro das comunidades nacionais e nas relações entre estas»[778]. Tal ordem deve ser gradualmente descoberta e desenvolvida pela humanidade. A comunidade política, realidade conatural aos homens, existe para obter um fim comum, inatingível de outra forma: o crescimento em plenitude de cada um de seus membros, chamados a colaborar de modo estável para a realização do bem comum[779], sob o impulso da sua tensão natural para a verdade e para o bem. 385 A comunidade política tem na referência ao povo a sua autêntica dimensão: ela «é, e deve ser na realidade, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo»[780]. O povo não é uma multidão amorfa, uma massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada, mas sim um conjunto de pessoas, cada uma das quais ― «do próprio lugar e a seu modo»[781] ― tem a possibilidade de formar a própria opinião a respeito da coisa pública e a liberdade de exprimir a própria sensibilidade política e de fazê-la valer em maneira consoante com o bem comum. O povo «vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais .... é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções»[782]. Os que pertencem a uma comunidade política, mesmo sendo organicamente unidos entre si, conservam, não obstante, uma insuprimível autonomia no âmbito da existência pessoal e dos fins a perseguir. 386 O que, em primeiro lugar, caracteriza um povo é a partilha de vida e de valores, que é fonte de comunhão no âmbito espiritual e moral: «É que acima de tudo, ... há de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente espiritual: como intercomunicação de conhecimentos à luz da verdade, exercício de direitos e cumprimento de deveres, incentivo e apelo aos bens morais, gozo comum do belo em todas as suas legítimas expressões, permanente disposição de fundir em tesouro comum o que de melhor cada qual possua, anelo de assimilação pessoal de valores espirituais. Valores esses, nos quais se vivifica e orienta tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico, às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante evolução»[783]. 387 A cada povo corresponde em geral uma nação, mas, por razões diversas, nem sempre as fronteiras nacionais coincidem com os confins étnicos[784]. Aparece destarte a questão das minorias, que historicamente tem originado não poucos conflitos. O Magistério afirma que as minorias constituem grupos com direitos e deveres específicos. Em primeiro lugar, um grupo minoritário tem direito à sua própria existência: «Este direito pode ser desatendido de diversas maneiras, até aos casos extremos em que é negado, mediante formas manifestas ou indiretas de genocídio»[785]. Ademais, as minorias têm o direito de manter a sua cultura, incluindo a língua, bem como as suas convicções religiosas, incluindo a celebração do culto. Ao reivindicar legitimamente os próprios direitos, as minorias podem ser levadas a procurar uma maior autonomia ou até mesmo a independência: em tais delicadas circunstâncias, diálogo e negociação constituem o caminho para alcançar a paz. Em todo caso, o recurso ao terrorismo é injustificável e prejudicaria a causa que se pretende defender. As minorias em também deveres a cumprir, entre eles, antes de mais, a cooperação para o bem comum do Estado em que estão inseridas. Em particular, « um grupo minoritário tem o dever de promover a liberdade e a dignidade de cada um dos seus membros, e de respeitar as opções de cada indivíduo seu, mesmo quando alguém decidisse passar à cultura majoritária»[786]. b) Tutelar e promover os direitos humanos 388 Considerar a pessoa humana como fundamento e fim da comunidade política significa esforçar-se, antes de mais, pelo reconhecimento e pelo respeito da sua dignidade mediante a tutela e a promoção dos direitos fundamentais e inalienáveis do homem: « No tempo moderno, a atuação do bem comum encontra a sua indicação de fundo nos direitos e nos deveres da pessoa»[787]. Nos direitos humanos estão condensadas as principais exigências morais e jurídicas que devem presidir à construção da comunidade política. Tais direitos constituem uma norma objetiva que está na base do direito positivo e que não pode ser ignorada pela comunidade política, porque a pessoa lhe é ontológica e teleologicamente anterior: o direito positivo deve garantir a satisfação das exigências humanas fundamentais. 389. A comunidade política persegue o bem comum atuando com vista à criação de um ambiente humano em que aos cidadãos seja oferecida a possibilidade de um real exercício dos direitos humanos e de um pleno cumprimento dos respectivos deveres: «Atesta a experiência que, faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com “respeito à economia, à administração pública, a instrução”, sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever»[788]. A plena realização do bem comum requer que a comunidade política desenvolva, no âmbito dos direitos humanos, uma ação dúplice e complementar, de defesa e de promoção: «Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los»[789]. c) A convivência baseada na amizade civil 390 O significado profundo da convivência civil e política não emerge imediatamente do elenco dos direitos e deveres da pessoa. Tal convivência só adquire todo o seu significado se for baseada na amizade civil e na fraternidade[790]. De fato, o campo do direito é o do interesse tutelado e do respeito exterior, da proteção dos bens materiais e da sua repartição de acordo com regras estabelecidas; o campo da amizade é, pelo contrário, o do desinteresse, do desprendimento dos bens materiais, da sua doação, da disponibilidade interior às exigências do outro[791]. A amizade civil[792], assim entendida, é a atuação mais autêntica do princípio de fraternidade, que é inseparável do de liberdade e de igualdade[793]. Trata-se de um princípio que permaneceu em grande parte não realizado nas sociedades políticas modernas e contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias individualistas e coletivistas. 391 Uma comunidade é solidamente fundada quando tende para a promoção integral da pessoa e do bem comum: neste caso, o direito é definido, respeitado e vivido também de acordo com as modalidades da solidariedade e da dedicação ao próximo. A justiça exige que cada um possa gozar dos próprios bens e dos próprios direitos e pode ser considerada como a medida mínima do amor[794]. A convivência torna-se tanto mais humana quanto mais é caracterizada pelo esforço em prol de uma consciência mais madura do ideal para o qual deve tender, a saber, a «civilização do Amor»[795]. O homem é uma pessoa, não só um indivíduo[796]. O termo «pessoa» indica uma «natureza dotada de inteligência e vontade livre»[797]: é portanto uma realidade bem superior à de um sujeito que se exprime nas necessidades produzidas pela mera dimensão material. Com efeito, a pessoa humana, mesmo participando ativamente na obra que tem por objetivo a satisfação das necessidades no seio da sociedade familiar, civil e política, não encontra a sua realização completa enquanto não supera a lógica da necessidade para projetar-se na lógica da gratuidade e do dom, a qual corresponde mais plenamente à sua essência e à sua vocação comunitária. 392 O preceito evangélico da caridade ilumina os cristãos sobre o significado mais profundo da convivência política. Para torná-la verdadeiramente humana, «nada existe de mais importante que desenvolver o sentimento íntimo da justiça, da bondade, a dedicação ao bem comum e tornar mais sólidas as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade política e também acerca do reto exercício e dos limites da autoridade pública»[798]. O objetivo que os fiéis se devem propor é o da realização de relações comunitárias entre as pessoas. A visão cristã da sociedade política confere o maior relevo ao valor da comunidade, seja como modelo organizativo da convivência, seja como estilo de vida quotidiana.
III. A AUTORIDADE POLÍTICA
a) O fundamento da autoridade política 393 A Igreja tem se confrontado com diversas concepções de autoridade, tendo sempre o cuidado de defender e propor um modelo fundado na natureza social das pessoas: «Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode “subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus”»[799]. A autoridade política é, portanto, necessária[800]em função das tarefas que lhe são atribuídas e deve ser uma componente positiva e insubstituível da convivência civil[801]. 394 A autoridade política deve garantir a vida ordenada e reta da comunidade, sem tomar o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas disciplinando-a e orientando-a, no respeito e na tutela da independência dos sujeitos individuais e sociais, para a realização do bem comum. A autoridade política é o instrumento de coordenação e direção mediante o qual os indivíduos e os corpos intermédios se devem orientar para uma ordem cujas relações, instituições e procedimentos estejam ao serviço do crescimento humano integral. O exercício da autoridade política, com efeito, «quer no interior da comunidade como tal, quer nos organismos que representam o Estado, deve desenrolar-se sempre dentro dos limites da ordem moral, em vistas do bem comum ― considerado dinamicamente ― segundo a ordem jurídica legitimamente instituída ou a instituir. Então, os cidadãos estão obrigados em consciência a obedecer»[802]. 395 O sujeito da autoridade política é o povo considerado na sua totalidade como detentor da soberania. O povo, de modos diferentes, transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege livremente como seus representantes, mas conserva a faculdade de a fazer valer no controlo da atuação dos governantes e também na sua substituição, caso não cumpram de modo satisfatório as suas funções. Se bem que este seja um direito válido em qualquer Estado e em qualquer regime político, o sistema da democracia, graças aos seus procedimentos de controlo, consente e garante uma melhor realização do direito sobredito[803]. No entanto, o mero consenso popular não é suficiente para que as modalidades de exercício da autoridade política sejam consideradas justas. b) A autoridade como força moral 396 A autoridade, pois, deve deixar-se guiar pela lei moral: toda a sua dignidade deriva do desenrolar-se no âmbito da ordem moral[804], «a qual tem a Deus como princípio e fim»[805]. Em razão da necessária referência à ordem moral, que a precede e funda, das suas finalidades e dos destinatários, a autoridade não pode ser entendida como uma força que encontra a sua norma em valores de caráter puramente sociológico e histórico: «Algumas, infelizmente, não reconhecem a existência da ordem moral: ordem transcendente, universal e absoluta, de igual valor para todos. Deste modo impossibilitam-se o contato e o entendimento pleno e confiado, à luz de uma mesma lei de justiça, por todos admitida e observada»[806]. Esta ordem «não pode existir sem Deus: separada dele, desintegra-se»[807]. É precisamente desta ordem que a autoridade obtém a virtude de obrigar[808] e a própria legitimidade moral[809]; não do arbítrio ou da vontade de poder[810], e está obrigada a traduzir tal ordem nas ações concretas para alcançar o bem comum[811]. 397 A autoridade deve reconhecer, respeitar e promover os valores humanos e morais essenciais. Estes são inatos, «derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir»[812]. Estes não encontram fundamento nas «maiorias» de opinião provisórias e mutáveis, mas devem ser simplesmente reconhecidos, respeitados e promovidos como elementos de uma lei moral objetiva, lei natural inscrita no coração do homem (cf. Rm 2,15), e ponto de referência normativo da mesma lei civil[813]. Quando por um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o ceticismo chegasse a por em dúvida os princípios fundamentais da lei moral[814], o próprio ordenamento estatal e contrapostos seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação pragmática dos diversos e contrapostos interesses[815]. 398 A autoridade deve exarar leis justas, isto é, em conformidade com a dignidade da pessoa humana e com os ditames da reta razão: «A lei humana é tem valor de lei enquanto é conforme com a reta razão, e isso põe de manifesto que deriva da lei eterna. Quando, pelo contrário, uma lei se afasta da razão, se diz lei iníqua; neste caso, deixa de ser lei e se torna bem mais um ato de violência»[816]. A autoridade que comanda segundo razão coloca o cidadão em relação, não tanto de sujeição a um outro homem, mas antes de obediência à ordem moral e, portanto, a Deus mesmo que é a sua fonte última[817]. Quem nega obediência à autoridade que age segundo a ordem moral «opõe-se à ordem estabelecida por Deus» (Rm 13, 1-2)[818]. Analogamente a autoridade pública, que tem o seu fundamento na natureza humana e pertence à ordem preestabelecida por Deus[819], caso não se esforce por realizar o bem comum, desatende o seu fim próprio e por isso mesmo se deslegitima. c) O direito à objeção de consciência 399 O cidadão não está obrigado em consciência a seguir as prescrições das autoridades civis se forem contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho[820]. As leis injustas põem os homens moralmente retos frente a dramáticos problemas de consciência: quanto são chamados a colaborar em ações moralmente más, têm a obrigação de recusar-se[821]. Além de ser um dever moral, esta recusa é também um direito humano basilar que, precisamente porque tal, a própria lei civil deve reconhecer e proteger: « Quem recorre à objeção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, econômico e profissional»[822]. É um grave dever de consciência não prestar colaboração, nem mesmo formal, àquelas práticas que, embora admitidas pela legislação civil, contrastam com a lei de Deus. Tal colaboração, com efeito, nunca pode ser justificada, nem invocando o respeito da liberdade alheia, nem se apoiando no fato de que a lei civil a prevê e exige. À responsabilidade moral pelos atos efetuados ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre esta responsabilidade cada qual será julgado pelo próprio Deus (Rm 2, 6; 14, 12). d) O direito de resistir 400 Reconhecer que o direito natural funda e limita o direito positivo significa admitir que é legítimo resistir à autoridade caso esta viole grave e repetidamente os princípios do direito natural. Santo Tomás de Aquino escreve que «se deve obedecer (...) na medida em que a ordem da justiça assim o exija»[823]. Portanto, o fundamento do direito de resistência é direito de natureza. Diversas podem ser as manifestações concretas que a realização de tal direito pode assumir. Vários podem ser também os fins perseguidos. A resistência à autoridade visa reafirmar a validade de uma diferente visão das coisas, quer quando se procura obter uma mudança parcial, modificando por exemplo algumas leis, quer quando se pugna por uma mudança radical da situação. 401 A doutrina social indica os critérios para o exercício da resistência: «A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, salvo quando se ocorrerem conjuntamente as seguintes condições: 1. em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2. depois de ter esgotado todos os outros recursos; 3. sem provocar desordens piores; 4. que haja uma esperança fundada de êxito; 5. se for impossível prever razoavelmente soluções melhores»[824]. A luta armada é contemplada como extremo remédio para pôr fim a uma «tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país»[825]. A gravidade dos perigos que o recurso à violência hoje comporta leva a considerar preferível o caminho da resistência passiva, «mais conforme aos princípios morais e não menos prometedor do êxito»[826]. e) Infligir as penas 402 Para tutelar o bem comum, a legítima autoridade pública deve exercitar o direito e o dever de infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos[827]. O Estado tem pois o dúplice dever de reprimir os comportamentos lesivos dos direitos do homem e das regras fundamentais de uma convivência civil, assim como de reparar, mediante o sistema das penas, a desordem causada pela ação delituosa. No Estado de direito, o poder de infligir as penas é corretamente confiado à Magistratura: «As Constituições dos Estados modernos, ao definirem as relações que devem existir entre o poder legislativo, o executivo e o judiciário, garantem a este último a necessaria independência no âmbito da lei»[828]. 403 A pena não serve unicamente para o fim de defender a ordem pública e de garantir a segurança das pessoas; esta torna-se, outrossim, um instrumento de correção do culpado, um correção que assume também o valor moral de expiação quando o culpado aceita voluntariamente a sua pena[829]. A finalidade à qual tender, é dúplice: de um lado favorecer a reinserção das pessoas condenadas; de outro lado promover uma justiça reconciliadora, capaz de restaurar as relações de convivência harmoniosa quebrantadas pelo ato criminoso. A este propósito, é importante a atividade que os capelães dos cárceres são chamados a desenvolver, não só sob o aspecto especificamente religioso, como também em defesa da dignidade das pessoas detidas. Lamentavelmente, as condições em que cumprem a pena não favorecem sempre o respeito pela sua dignidade; não raro as prisões se tornam até mesmo teatro de novos crimes. Contudo, o ambiente dos institutos penais oferece um terreno privilegiado onde testemunhar, uma vez mais, a solicitude cristã no campo social: «estava na prisão e viestes ver-me» (Mt 25, 35-36). 404 A atividade dos ofícios encarregados do acertamento da responsabilidade penal, que é sempre de caráter pessoal, deve tender à rigorosa busca da verdade e deve ser conduzida no pleno respeito dos direitos da pessoa humana: trata-se de assegurar os direitos do culpado como os do inocente. Sempre se deve ter presente o princípio jurídico geral pelo qual não se pode cominar uma pena sem que antes se tenha provado o delito. No curso das investigações deve ser escrupulosamente observada a regra que interdita a prática da tortura: «O discípulo de Cristo rejeita todo recurso a tais meios, de modo algum justificável e no qual a dignidade do homem é aviltada tanto naquele que é espancado quanto no seu algoz»[830]. Os instrumentos jurídicos internacionais referentes asos direitos do homem indicam justamente a proibição da tortura como um princípio que em circunstância alguma se pode derrogar. Há de ser, outrossim, excluído: « o recurso a uma detenção motivada apenas pela tentativa de obter notícias significativas para o processo»[831]. Ademais, deve ser assegurada «a rapidez dos processos: uma sua excessiva duração torna-se intolerável para os cidadãos e acaba por se traduzir em uma verdadeira e própria injustiça»[832]. Os magistrados estão obrigados à devida reserva no desenrolar das suas diligências para não violar o direito dos inquiridos e para não debilitar o princípio da presunção de inocência. Dado que um juiz também esta sujeito a errar, é oportuno que a legislação determine uma côngrua indenização para a vítima de um erro judiciário. 405 A Igreja vê como sinal de esperança «a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social—, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir»[833]. Embora o ensiamento tradicional da Igreja não exclua ― uma vez comprovadas cabalmente a identidade e da responsabilidade do culpado ― a pena de morte «se esta for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto»[834], os métodos não cruentos de repressão e de punição são de preferir «porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana»[835]. O crescente número de países que adotam medidas para abolir a pena de morte ou para suspender sua aplicação é também uma prova do fato de que os casos em que os casos em que é absolutamente necessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes»[836]. A crescente aversão da opinião pública à pena de morte e às várias medidas em vista da sua abolição ou da suspensão da sua aplicação, constituem manifestações visíveis de uma maior sensibilidade moral.
IV. O SISTEMA DA BUROCRACIA
406 Um juízo explícito e articulado sobre a democracia se encontra na Encíclica «Centesimus annus»: «A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da “subjetividade” da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e co-responsabilidade»[837]. a) Os valores e a democracia 407 Uma autêntica democracia não é o somente o resultado de um respeito formal de regras, mas é o fruto da convicta aceitação dos valores que inspiram os procedimentos democráticos: a dignidade da pessoa humana, o respeito dos direitos do homem, do fato de assumir o « bem comum » como fim e critério regulador da vida política. Se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade. A doutrina social individua um dos riscos maiores para as atuais democracias no relativismo ético, que induz a considerar inexistente um critério objetivo e universal para estabelecer o fundamento e a correta hierarquia dos valores: «Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as idéias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra»[838]. A democracia é fundamentalmente «um “ordenamento” e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu caráter « moral » não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa»[839]. b) Instituições e democracia 408 O Magistério reconhece a validade do princípio concernente à divisão dos poderes em um Estado:«é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do “Estado de direito”, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens»[840]. No sistema democrático, a autoridade política é responsável diante do povo. Os organismos representativos devem estar submetidos a um efetivo controle por parte do corpo social. Este controle é possível antes de tudo através de eleições livres, que permitem a escolha assim como a substituição dos representantes. A obrigação, por parte dos eleitos, de prestar contas acerca da sua atuação, garantida pelo respeito dos prazos do mandato eleitoral, é elemento constitutivo da representação democrática. 409 No seu campo específico (elaboração de leis, atividade de governo e controle sobre a mesma), os eleitos devem empenhar-se na busca e na realização de tudo aquilo que possa favorecer ao bom andamento da convivência civil no seu conjunto[841]. A obrigação que os governantes têm de responder aos governados não implica de modo algum que os representantes sejam simples agentes passivos dos eleitores. O controle exercido pelos cidadãos, de fato, não exclui a necessária liberdade de que devem gozar no cumprimento de seu mandato em relação aos objetivos a perseguir: estes não dependem exclusivamente de interesses de parte, mas em medida muito maior da função de síntese e de mediação em vista do bem comum, que constitui uma das finalidades essenciais e irrenunciáveis da autoridade política. c) Os componentes morais da representação política 410 Aqueles que têm responsabilidades políticas não devem esquecer ou subestimar a dimensão moral da representação, que consiste no empenho de compartilhar a sorte do povo e em buscar a solução dos problemas sociais. Nesta perspectiva, autoridade responsável significa também autoridade exercida mediante o recurso às virtudes que favorecem o exercício do poder com espírito de serviço[842] (paciência, caridade, modestia, moderação, esforço de partilha); uma autoridade exercida por pessoas capazes de assumir autenticamente como finalidade do próprio agir o bem comum e não o prestígio ou a aquisição de vantagens pessoais. 411 Entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves[843] porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social; compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados; introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o conseqüente enfraquecimento das instituições. A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelares e favores dos governantes. Deste modo, as opções políticas favorecem os objetivos restritos de quantos possuem os meios para influenciá-las e impedem a realização do bem comum de todos os cidadãos. 412 A administração pública, em qualquer nível — nacional, regional, municipal —, como instrumento do Estado, tem por finalidade servir os cidadãos: «Posto ao serviço dos cidadãos, o Estado é o gestor dos bens do povo, que deve administrar tendo em vista o bem comum»[844]. Contrasta com esta perspectiva o excesso de burocratização, que se verifica quando «as instituições, ao tornarem-se complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado»[845]. O papel de quem trabalha na administração pública não se deve conceber como algo de impessoal e de burocrático, mas como uma ajuda pressurosa para os cidadãos, desempenhado com espírito de serviço. d) Instrumentos de participação política 413 Os partidos políticos têm a função de favorecer uma participação difusa e o acesso de todos às responsabilidades públicas. Os partidos são chamados a interpretar as aspirações da sociedade civil orientando-as para o bem comum[846], oferecendo aos cidadãos a possibilidade efetiva de concorrer para a formação das opções políticas. Os partidos devem ser democráticos no seu interior, capazes de síntese política e de formulação de projetos. Um outro instrumento de participação política é o referendum, em que se realiza uma forma direta de acesso às escolhas políticas. O instituto da representação, de fato, não exclui que os cidadãos possam ser interpelados diretamente em vista das escolhas de maior relevo da vida social. e) Informação e democracia 414 A Informação está entre os principais instrumentos de participação democrática. Não é pensável participação alguma sem o conhecimento dos problemas da comunidade política, dos dados de fato e das várias propostas de solução dos problemas. É necessário assegurar um real pluralismo neste delicado âmbito da vida social, garantindo uma multiplicidade de formas e de instrumentos no campo da informação e da comunicação, facilitando também condições de igualdade na posse e no uso de tais instrumentos mediante leis apropriadas. Entre os obstáculos que se opõem à realização plena do direito à objetividade da informação[847], merece especial atenção o fenômeno das concentrações editoriais e televisivas, com perigosos efeitos para o inteiro sistema democrático quando a tal fenômeno correspondem liames cada vez mais estreitos entre a atividade governativa, os poderes financeiros e a informação. 415 Os meios de comunicação social devem ser utilizados para edificar e apoiar a comunidade humana, nos vários setores, economico, politico, cultural, educativo, religioso[848]: «A informação dos meios de comunicação social está a serviço do bem comum. A sociedade tem direito a uma informação fundada sobre a verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade»[849]. A questão essencial concernente ao atual sistema informativo é se ele contribui a tornar a pessoa humana verdadeiramente melhor, isto é, espiritualmente mais madura, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberta aos outros, sobretudo aos mais necessitados e aos mais pobres. Um outro aspecto de grande importância é a necessidade de que as novas tecnologias respeitem as legítimas diferenças culturais. 416 No mondo dos meios de comunicação social as dificuldades intrínsecas da comunicação não raro são agigantadas pela ideologia, pelo desejo de lucro e de controle político, por rivalidades e conflitos entre grupos, e por outros males sociais. Os valores e os princípios morais valem também para o setor das comunicações sociais: «A dimensão ética está relacionada não só ao conteúdo da comunicação (a mensagem) e o processo de comunicação (o modo de comunicar), mas nas questões fundamentais das estruturas e sistemas, que com freqüência incluem grandes problemas de política que dependem da distribuição de tecnologia e produtos sofisticados (quem serão os ricos de informação e os pobres de informação?) »[850]. Em todas as três áreas ―da mensagem, do processo, das questões estruturais ―é sempre válido um princípio moral fundamental: a pessoa e a comunidade humana são o fim e a medida do uso dos meios de comunicação social. Um segundo princípio é complementar ao primeiro: o bem das pessoas não pode realizar-se independentemente do bem comum das comunidades a que pertencem[851]. É necessária uma participação no processo decisório referente à política das comunicações. Tal participação, de forma pública, deve ser autenticamente representativa e não voltada a favorecer grupos particulares, quando os meios de comunicação perseguem fins lucrativos[852].
V. A COMUNIDADE POLÍTICA
a) O valor da comunidade civilA SERVIÇO DA COMUNIDADE CIVIL 417 A comunidade política é constituída para estar ao serviço da sociedade civil, da qual deriva. Para a distinção entre comunidade política e sociedade civil, a Igreja contribuiu sobretudo com sua visão do homem, entendido como ser autônomo, relacional, aberto à Transcendência, contrastada quer pelas ideologias políticas de caráter individualista, quer pelas ideologias totalitárias tendentes a absorver a sociedade civil na esfera do Estado. O empenho da Igreja em favor do pluralismo social visa a conseguir uma realização mais adequada do bem comum e da própria democracia, segundo os princípios da solidariedade, da subsidiariedade e da justiça. A sociedade civil é um conjunto de realizações e de recursos culturais e associativos, relativamente autônomos em relação ao âmbito tanto político como econômico: «O fim da sociedade civil é universal, porque é aquele que diz respeito ao bem comum, al qual todos e cada um dos cidadãos têm direita na devida proporção»[853]. Esta caracteriza-se pela própria capacidade de projeto, orientada a favorecer uma convivência social mais livre e mais justa, em que vários grupos de cidadãos, mobilizando-se para elaborar e exprimir as próprias orientações, para fazer frente às suas necessidades fundamentais, para defender legítimos interesses. b) O primado da comunidade civil 418 A comunidade política e a sociedade civil, embora reciprocamente coligadas e interdependentes, não são iguais na hierarquia dos fins. A comunidade política está essencialmente ao serviço da sociedade civil e, em última análise, das pessoas e dos grupos que a compõem[854]. A sociedade civil, portanto, não pode ser considerada um apêndice ou uma variável da comunidade política: antes, ela tem a preeminência, porque justifica radicalmente a existência da comunidade política. O Estado deve fornecer um quadro jurídico adequado ao livre exercício das atividades dos sujeitos sociais e estar pronto a intervir, sempre que for necessário, e respeitando o princípio de subsidiariedade, para orientar para o bem comum a dialética entre as livres associações ativas na vida democrática. A sociedade civil é heterogênea e articulada, não desprovida de ambigüidades e de contradições: é também lugar de embate entre interesses diversos, com o risco de que o mais forte prevaleça sobre o mais indefeso. c) A aplicação do princípio de subsidiariedade 419 A comunidade política está obrigada regular as próprias relações com comunidade civil de acordo com o princípio de subsidiariedade[855]: é essencial que o crescimento da vida democrática tenha início no tecido social. As atividades da sociedade civil ― sobretudo voluntariado e cooperação no âmbito do privado-social, sinteticamente definido como «setor terciário » para distingui-lo dos âmbitos do Estado e do mercado ― constituem as modalidades mais adequadas para desenvolver a dimensão social da pessoa, que em tais atividades pode encontrar espaço para exprimir-se plenamente. A progressiva expansão das iniciativas sociais fora da esfera estatal cria novos espaços para a presença ativa e para a ação direta dos cidadãos, integrando as funções atuadas pelo Estado. Tal importante fenômeno tem sido freqüentemente atuado por caminhos e com instrumentos largamente informais, dando vida a modalidades novas e positivas de exercício dos direitos da pessoa, que enriquecem qualitativamente a vida democrática. 420 A cooperação, mesmo nas suas formas menos estruturadas, delineia-se como uma das respostas mais fortes à lógica do conflito e da concorrência sem limites, que hoje se revela prevalente. As relações que se instauram num clima cooperativo e solidário superam as divisões ideológicas, estimulando a busca daquilo que une para além daquilo que divide. Muitas experiências de voluntariado constituem um ulterior exemplo de grande valor, que leva a considerar a sociedade civil como lugar onde é sempre possível a recomposição de uma ética pública centrada na solidariedade, na colaboração concreta, no diálogo fraterno. Em face das potencialidades que assim se manifestam, os católicos são chamados a olhar com confiança e a oferecer própria obra pessoal para o bem da comunidade em geral e, em particular, para o bem dos mais fracos e dos mais necessitados. É também dessa forma que se afirma o princípio da «subjetividade da sociedade»[856].
VI. O ESTADO
E AS COMUNIDADES RELIGIOSAS 422 A liberdade de consciência e de religião «diz respeito ao homem individual e socialmente»[861]: o direito à liberdade religiosa deve ser reconhecido no ordenamento jurídico e sancionado como direito civil[862], todavia, não é em si um direito ilimitado. Os justos limites ao exercício da liberdade religiosa devem ser determinados para cada situação social com a prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificados pela autoridade civil mediante normas jurídicas conformes à ordem moral objetiva: tais normas são exigidas «pela tutela eficaz e pacífica harmonia dos direitos de todos os cidadãos; pelo suficiente zelo pela honesta paz pública, que é a ordenada convivência na verdadeira justiça; e pela devida salvaguarda da moralidade pública»[863]. 423 Em consideração dos seus liames históricos e culturais com uma nação, uma comunidade religiosa pode receber um especial reconhecimento por parte do estado: mas um tal reconhecimento jurídico não deve, de modo algum, gerar uma discriminação de ordem civil ou social para outros grupos religiosos[864]. A visão das relações entre os Estados e as organizações religiosas, promovida pelo Concílio Vaticano II, corresponde às exigências do Estado de direito e às normas do direito internacional[865]. A Igreja é bem consciente de que tal visão não é aceite por todos: o direito à liberdade religiosa, infelizmente, «é violado por numerosos Estados, até ao ponto que dar, ou fazer dar, ou receber a catequese passa a ser um delito passível de sanção»[866]. O dever de respeitar a liberdade religiosa impõe à comunidade política garantir à Igreja o espaço de ação necessário. A Igreja, por outro lado, não tem um campo de competência específica no que respeita à estrutura da comunidade política: «A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional»[868] e tampouco é tarefa da Igreja entrar no mérito dos programas políticos, a não ser por eventuais conseqüências religiosas ou morais. b) Colaboração 425 A autonomia recíproca da Igreja e da comunidade política não comporta uma separação tal que exclua a colaboração entre elas: ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. A Igreja e a comunidade política, com efeito, se exprimem em formas organizativas que não estão serviço delas próprias, mas ao serviço do homem, para consentir-lhe o pleno exercício dos seus direitos, inerentes à sua identidade de cidadão e de cristão, e um correto cumprimento dos correspondentes deveres. A Igreja e a comunidade política podem desempenhar «tanto mais eficazmente este serviço para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma sã colaboração, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo»[869]. 426 A Igreja tem o direito ao reconhecimento jurídico da própria identidade. Precisamente porque a sua missão abraça toda a realidade humana, a Igreja, sentindo-se «real e intimamente solidária do gênero humano e da sua história»[870], reivindica a liberdade de exprimir o seu juízo moral sobre tal realidade, todas as vezes que a defesa dos direitos fundamentais da pessoa ou da salvação das almas assim o exigirem[871]. A Igreja, portanto, pede: liberdade de expressão, de ensino, de evangelização; liberdade de manifestar o culto em público; liberdade de organizar-se e ter regulamentos internos próprios; liberdade de escolha, de educação, de nomeação e transferência dos próprios ministros; liberdade de construir edifícios religiosos; liberdade de adquirir e de possuir bens adequados à própria atividade; liberdade de associar-se para fins não só religiosos, mas também educativos, culturais, sanitários e caritativos[872]. 427 Para prevenir ou apaziguar os possíveis conflitos entre a Igreja e a comunidade política, a experiência jurídica da Igreja e do Estado tem delineado formas estáveis de acordos e instrumentos aptos a garantir relações harmoniosas. Tal experiência é um ponto de referência essencial para todos os casos em que o Estado tenha a pretensão de invadir o campo de ação da Igreja, criando obstáculos para a sua livre atividade até mesmo perseguindo-a abertamente ou, vice-versa, nos casos em que organizações eclesiais não ajam corretamente em relação ao Estado.
CAPÍTULO IX
A COMUNIDADE INTERNACIONAL
I. ASPECTOS BÍBLICOS
a) A unidade da família humana428 Os relatos bíblicos sobre as origens demonstram a unidade do gênero humano e ensinam que o Deus de Israel é o Senhor da história e do cosmos: a Sua ação abraça todo o mundo e a família humana inteira, à qual é destinada a obra da criação. A decisão de Deus de fazer o homem à Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27) confere à criatura humana uma dignidade única, que se estende a todas as gerações (cf. Gn 5) e sobre toda a terra (cf. Gn 10). O Livro do Gênesis mostra, além disso, que o ser humano não foi criado isolado, mas no seio de um contexto do qual fazem parte integral, o espaço vital que lhe assegura a liberdade (o jardim), a disponibilidade de alimentos (as árvores do jardim), o trabalho (o mandato para cultivar) e sobretudo a comunidade (o dom de um colaborador semelhante a ele) (cf. Gn 2,8-24). As condições que asseguram plenitude à vida humana são, em todo o Antigo Testamento, objeto da bênção divina. Deus quer garantir ao homem os bens necessários para o seu crescimento, a possibilidade de expressar-se livremente, o resultado positivo do trabalho, a riqueza de relações entre seres semelhantes. 429 A aliança de Deus com Noé (cf. Gn 9,1-17), e nele com toda a humanidade, após a destruição causada pelo dilúvio, manifesta que Deus quer manter para a comunidade humana a bênção de fecundidade, a tarefa de dominar a criação e a absoluta dignidade e intangibilidade da vida humana que caracterizaram a primeira criação, não obstante nela se tenha introduzido, com o pecado, a degeneração da violência e da injustiça, punida com o dilúvio. O Livro do Gênesis apresenta com admiração a variedade dos povos, obra da ação criadora de Deus (cf. Gn 10,1-32) e, simultaneamente, estigmatiza a não aceitação por parte do homem da sua condição de criatura, com o episódio da torre de Babel (cf. Gn 11,1-9). Todos os povos, no plano divino, tinham «uma só língua e ... as mesmas palavras» (Gn 11,1), mas os homens se dividem, voltando as costas ao Criador (cf. Gn 11,4). 430 A aliança estabelecida por Deus com Abraão, eleito «pai de uma multidão de povos» (Gn 17,4), abre o caminho para reunião da família humana ao seu Criador. A história salvífica induz o povo de Israel a pensar que a ação divina seja restrita à sua terra, todavia se consolida pouco a pouco a convicção de que Deus opera também entre outras nações (cf. Is 19,18-25). Os Profetas anunciarão para um tempo escatológico a peregrinação de todos os povos ao templo do Senhor e uma era de paz entre as nações (cf. Is 2,2-5; 66,18-23). Israel, disperso no exílio, tomará definitivamente consciência de seu papel de testemunha do único Deus (cf. Is 44,6-8), Senhor do mundo e da história dos povos (cf. Is 44,24-28). b) Jesus Cristo protótipo e fundamento da nova humanidade 431 O Senhor Jesus é o protótipo e o fundamento da nova humanidade. N´Ele, verdadeira «imagem de Deus» (2 Cor 4,4), o homem, criado por Deus a Sua imagem e a Sua semelhança, encontra sua realização. No testemunho definitivo de amor que Deus manifestou na cruz de Cristo, todas as barreiras de inimizade já foram derrubadas (cf. Ef 2,12-18) e para quantos vivem a vida nova em Cristo as diferenças raciais e culturais não são mais motivo de divisão (cf. Rm 10,12; Gal 3,26-28; Col 3,11). Graças ao Espírito, a Igreja conhece o desígnio divino que abrange todo o gênero humano (cf. At 17,26) e que tem por fim reunir, no mistério de uma salvação realizada sob o senhorio de Cristo (cf. Ef 1,8-10), toda a realidade criatural fragmentada e dispersa. Desde o dia de Pentecostes, quando a Ressurreição é anunciada aos diversos povos e entendida por cada qual na sua própria língua (cf. At 2,6), a Igreja dedica-se à própria tarefa de restaurar e testemunhar a unidade perdida em Babel: graças a este mistério eclesial, a família humana é chamada a recuperar a própria unidade e a reconhecer a riqueza de suas diferenças, para alcançar a «unidade total em Cristo»[873] . c) A vocação universal do cristianismo 432 A mensagem cristã oferece uma visão universal da vida dos homens e dos povos sobre a terra[874], que leva a compreender a unidade da família humana[875]. Tal unidade não se deve construir com a força das armas, do terror ou da opressão, mas é antes o êxito daquele «supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra “comunhão”»[876] e uma conquista da força moral e cultural da liberdade[877]. A mensagem cristã foi decisiva para fazer a humanidade compreender que os povos tendem a unirem-se não apenas em razão das formas de organização, de vicissitudes políticas, de projetos econômicos ou em nome de uma internacionalismo abstrato e ideológico, mas porque livremente se orientam em direção a cooperação, cônscios «de serem membros vivos de uma comunidade mundial»[878], que se deve propor sempre mais e sempre melhor como figura concreta da unidade querida pelo Criador: « A unidade universal do convívio humano é um fato perene. É que o convívio humano tem por membros seres humanos que são todos iguais por dignidade natural. Por conseguinte, é também perene a exigência natural de realização, em grau suficiente, do bem comum universal, isto é, do bem comum de toda a família humana»[879].
II. AS REGRAS FUNDAMENTAIS
DA COMUNIDADE INTERNACIONAL a) Comunidade internacional e valores 433 A centralidade da pessoa humana e da aptidão natural das pessoas e dos povos a estreitar relações entre si são elementos fundamentais para construir uma verdadeira Comunidade internacional, cuja organização deve tender ao efetivo bem comum universal[880]. Não obstante seja amplamente difusa a aspiração por uma autêntica comunidade internacional, a unidade da família humana não encontra ainda realização, porque é obstaculizada por ideologias materialistas e nacionalistas que contradizem os valores de que é portadora a pessoa considerada integralmente, em todas as suas dimensões, materiais e espirituais, individuais e comunitários. De modo particular, é moralmente inaceitável qualquer teoria ou comportamento caracterizado pelo racismo ou pela discriminação racial[881]. A convivência entre as nações funda-se nos mesmos valores que devem orientar aquele entre os seres humanos: a verdade, a justiça, a solidariedade e a liberdade[882]. O ensinamento da Igreja, acerca dos princípios constitutivos da Comunidade Internacional, exige que as relações entre os povos e as comunidades políticas encontrem a sua justa regulamentação na razão, na eqüidade, no direito, no acordo , enquanto que exclui o recurso à violência e à guerra, a formas de discriminação, de intimidação e de engano[883]. 434 O direito se coloca como instrumento de garantia da ordem internacional[884],a saber, da convivência entre as comunidades políticas que singularmente perseguem o bem comum dos próprios cidadãos e que coletivamente devem tender ao bem comum de todos os povos[885], na convicção de que o bem comum de uma nação é inseparável do bem da família humana inteira[886]. A Comunidade Internacional é uma comunidade jurídica fundada sobre a soberania de cada Estado membro, sem vínculos de subordinação que lhes neguem ou limitem a sua independência[887]. Conceber deste modo a comunidade internacional não significa de maneira alguma relativizar e esvaecer as diferentes e peculiares características de um povo, mas favorecer-lhes a expressão[888]. A valorização das diferentes identidades ajuda a superar as várias formas de divisão que tendem a separar os povos e a torná-los portadores de um egoismo com efeitos desestabilizadores. 435 O Magistério reconhece a importância da soberania nacional, concebida antes de tudo como expressão da liberdade que deve regular as relações entre os Estados[889].A soberania representa a subjetividade[890] de uma nação sob o aspecto político, econômico e também cultural. A dimensão cultural adquire um valor particular como ponto de força para a resistência aos atos de agressão ou às formas de domínio que condicionam a liberdade de um País: a cultura constitui a garantia de conservação da identidade de um povo, exprime e promove a sua soberania espiritual[891]. A soberania nacional não é porém um absoluto. As nações podem renunciar livremente ao exercício de alguns de seus direitos, em vista de um objetivo comum, com a consciência de formar uma única «família»[892], na qual devem reinar a confiança recíproca, o apoio e o respeito mútuo. Nessa perspectiva, merece uma consideração atenta a falta de um acordo internacional que enfrente de modo adequado «os direitos das nações»[893], cuja preparação poderia enfrentar oportunamente questões acerca da justiça e da liberdade no mundo contemporâneo. b) Relações fundadas na harmonia entre ordem jurídica e ordem moral 436 Para realizar e consolidar uma ordem internacional que garanta eficazmente a convivência pacífica entre os povos, a mesma lei moral, que rege a vida dos homens, deve regular também as relações entre os Estados: «lei moral cuja observância deve ser inculcada e promovida pela opinião pública de todas as nações e de todos os Estados com tal unanimidade de voz e de força, que ninguém se possa atrever a pô-la em dúvida ou atenuar-lhe o vínculo obrigatório»[894]. É necessário que a lei moral universal, inscrita no coração do homem seja considerada efetiva e inderrogável como viva expressão da consciência que a humanidade tem em comum, uma «gramática»[895] capaz de orientar o diálogo sobre o futuro do mundo. 437 O respeito universal dos princípios que inspiram um «ordinamento giuridico in armonia con l’ordine morale»[896]é uma condição necessária para a estabilidade da vida internacional. A busca de uma tal estabilidade favoreceu a elaboração gradual de um direito das nações[897](«ius gentium»), que pode ser considerado como o «antepassado do direito internacional»[898]. A reflexão jurídica e teológica, ancorada no direito natural, formulou «princípios universais que são anteriores e superiores ao direito interno dos Estados»[899], como a unidade do gênero humano, a igualdade em dignidade de todos os povos, a recusa da guerra para superar as controvérsias, a obrigação de cooperar para o bem comum, a exigência de manter fé aos compromissos subscritos («pacta sunt servanda»). Este último princípio deve ser particularmente ressaltado para evitar «a tentação de apelar para o direito da força antes que para a força do direito»[900]. 438 Para resolver os conflitos que insurgem entre as diversas comunidades políticas e que comprometem a estabilidade das nações e a segurança internacional, é indispensável referir-se a regras comuns confiadas à negociação, renunciando definitivamente à idéia de buscar a justiça mediante o recurso à guerra[901]: «a guerra pode terminar sem vencedores nem vencidos num suicídio da humanidade, e então é necessário rejeitar a lógica que a ela conduz, ou seja, a idéia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são fatores de progresso e avanço da história»[902]. A Carta das Nações Unidas interditou não somente o recurso à força, como também a simples ameaça de usá-la[903]: tal disposição nasceu da trágica experiência da Segunda Guerra Mundial. O Magistério, durante aquele conflito, não deixou de individuar alguns fatores indispensáveis para edificar uma renovada ordem internacional: a liberdade e a integridade territorial de cada nação; a tutela dos direitos das minorias; uma divisão eqüitativa dos recursos da terra; a rejeição da guerra e a atuação do desarme; a observância dos pactos concordados; a cessação da perseguição religiosa[904]. 439 Para consolidar o primado do direito, vale acima de tudo o princípio da confiança recíproca[905]. Nesta perspectiva, os instrumentos normativos para a solução pacífica das controvérsias devem ser repensadas de tal modo que lhe sejam reforçadas o alcance e a obrigatoriedade. Os institutos da negociação, da mediação, da conciliação, da arbitragem, que são expressões da legalidade internacional devem ser apoiadas pela criação de «uma autoridade jurídica plenamente eficiente em um mundo pacificado»[906]. Um avanço nesta direção consentirá à Comunidade Internacional propor-se não mais como simples momento de agregação da vida dos Estados, mas como uma estrutura em que os conflitos possam ser pacificamente resolvidos: «Como dentro dos Estados (...) o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional»[907]. Finalmente, o direito internacional «deve evitar que prevaleça a lei do mais forte»[908].
III. A ORGANIZAÇÃO
a) O valor das Organizações InternacionaisDA COMUNIDADE INTERNACIONAL 440 O caminho rumo a uma autêntica «comunidade» internacional, que assumiu uma precisa direção com a instituição da Organização das Nações Unidas em 1945, é acompanhado pela Igreja: tal Organização «contribuiu notavelmente para promover o respeito da dignidade humana, a liberdade dos povos e a exigência do desenvolvimento, preparando o terreno cultural e institucional sobre o qual construir a paz»[909]. A doutrina social, em geral, considera positivamente o papel das Organizações intergovernamentais, em particular daquelas operantes em setores específicos[910], ainda que experimentando reservas quando estas enfrentam de modo incorreto os problemas[911]. O Magistério recomenda que a ação dos Organismos Internacionais responda às necessidades humanas na vida social e nos âmbitos relevantes para a pacífica e ordenada convivência das nações e dos povos[912]. 441 A solicitude por uma convivência ordenada e pacífica da família humana leva o Magistério a ressaltar a exigência de instituir «uma autoridade pública universal, reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, a observância da justiça e o respeito dos direitos»[913]. No curso da história, não obstante as mudanças de perspectiva das diversas épocas, advertiu-se constantemente a necessidade de uma semelhante autoridade para responder aos problemas de dimensão mundial postos pela busca do bem comum: é essencial que tal autoridade seja o fruto de um acordo e não de uma imposição, e que não seja tomado como um «super-estado global»[914]. Uma autoridade política exercida no quadro da Comunidade Internacional deve ser regida pelo direito, ordenada ao bem comum e respeitar o princípio da subsidiariedade:«Os poderes públicos da comunidade mundial não têm como fim limitar a esfera de ação dos poderes públicos de cada comunidade política e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invés, devem procurar contribuir para a criação, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os poderes públicos de cada comunidade política, como os respectivos cidadãos e grupos intermédios, com maior segurança, possam desempenhar as próprias funções, cumprir os seus deveres e fazer valer os seus direitos»[915]. 442 Uma política internacional voltada para o objetivo da paz e do desenvolvimento mediante a adoção de medidas coordenadas[916]mais do que nunca tornou-se é necessária em virtude da globalização dos problemas. O Magistério destaca que a interdependência entre os homens e as nações adquire uma dimensão moral e determina as relações no mundo atual sob o aspecto econômico, cultural, político e religioso. Nesse contexto, seria de desejar uma revisão, que «pressupõe a superação das rivalidades políticas e a renúncia a toda a pretensão de instrumentalizar as mesmas Organizações, que têm como única razão de ser o bem comum»[917], com o objetivo de conseguir «grau superior de ordenação a nível internacional»[918]. Em particular, as estruturas intergovernamentais devem exercitar eficazmente as suas funções de controle e de guia no campo da economia, pois que alcançar o bem comum torna-se uma meta inatingível aos Estados individualmente tomados, ainda que dominantes em termos de potência, riqueza e força política[919]. Os Organismos Internacionais devem ademais garantir aquela igualdade, que é o fundamento do direito de todos à participação no processo do pleno desenvolvimento, no respeito às legítimas diferenças[920]. 443 O Magistério avalia positivamente o papel dos agrupamentos que se formaram na sociedade civil para exercer uma importante função de sensibilização da opinião pública para com os diversos aspectos da vida internacional, com uma atenção especial para o respeito dos direitos do homem, como revela o «o número das associações privadas, recentemente instituídas, algumas de alcance mundial, e quase todas empenhadas em seguir, com grande cuidado e louvável objetividade, os acontecimentos internacionais num campo tão delicado»[921]. Os Governos deveriam sentir-se encorajados por um semelhante empenho, que visa traduzir em prática os ideais que inspiram a comunidade internacional, « sobretudo através dos gestos concretos de solidariedade e de paz das numerosas pessoas que trabalham nomeadamente nas Organizações Não-Governamentais e nos Movimentos a favor dos direitos do homem »[922]. b) A personalidade jurídica da Santa Sé 444 A Santa Sé― ou Sé Apostólica[923]― goza de plena subjetividade internacional enquanto autoridade soberana que realiza atos juridicamente próprios. Ela exerce uma soberania externa, reconhecida no quadro da Comunidade internacional, que reflete a soberania exercida no seio da Igreja e que se caracteriza pela unidade organizativa e pela independência. A Igreja vale-se das modalidades jurídicas que se mostrarem necessárias ou úteis para o cumprimento da sua missão. A atividade internacional da Santa Sé manifesta-se objetivamente sob diversos aspectos, entre os quais: o direito ativo e passivo de legação; o exercício do «ius contrahendi», com a estipulação de tratados; a participação em organizações intergovernamentais, como por exemplo as pertencentes ao sistema das Nações Unidas; as iniciativas de mediação em caso de conflitos.Tal atividade entende oferecer um serviço desinteressado à Comunidade internacional, pois que não busca vantagens de parte, mas tem como fim o bem comum da família humana toda. Nesse contexto, a Santa Sé vale-se do próprio pessoal diplomático. 445 O serviço diplomático da Santa Sé, fruto de uma antiga e consolidada praxe, é um instrumento que atua não só pela «libertas Ecclesiae», mas também pela defesa e promoção da dignidade humana, bem como por uma ordem social baseada nos valores da justiça, da liberdade e do amore: «Por um direito nativo inerente à nossa missão espiritual, favorecido por uma secular sucessão de acontecimentos históricos, nós enviamos também os nossos legados às autoridades supremas dos estados nos quais está radicada ou de algum modo é presente a Igreja Católica. É bem verdade que as finalidades da Igreja e do Estado são de ordem diferente, e que ambas são sociedades perfeitas, dotadas, portanto, de meios próprios, e são independentes na respectiva esfera de atuação, mas é também verdade que uma e outro agem em benefício de um sujeito comum, o homem, chamado por Deus à salvação eterna e posto na terra para permitir-lhe, com o auxílio da graça, consegui-la com uma vida de trabalho, que lhe proporcione bem-estar, na convivência pacífica »[924]. O bem das pessoas e das comunidades humanas é favorecido por um diálogo estruturado entre a Igreja e as autoridades civis, que se exprime também através da estipulação de acordos mútuos. Tal diálogo tende a estabelecer ou reforçar relações de recíproca compreensão e colaboração, assim como a prevenir ou sanar eventuais desavenças, com o objetivo de contribuir para o progresso de cada povo e de toda a humanidade na justiça e na paz.
IV. A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
a) Colaboração para garantir o direito ao desenvolvimentoPARA O DESENVOLVIMENTO 446 A solução do problema do desenvolvimento requer a cooperação entre as comunidades políticas: «as comunidades políticas (...) se condicionam mutuamente e pode, mesmo, afirmar-se que cada uma atinge o próprio desenvolvimento, contribuindo para o desenvolvimento das outras. Por isso é que se impõem o entendimento e a colaboração mútuos»[925]. O subdesenvolvimento parece uma situação impossível de eliminar, quase uma condenação fatal, se se considera o fato que este não é apenas o fruto de opções humanas erradas, mas também o resultado de «mecanismos econômicos, financeiros e sociais»[926] e de «estruturas de pecado»[927] que impedem o pleno desenvolvimento dos homens e dos povos. Estas dificuldades, todavia, devem ser enfrentadas com determinação firme e perseverante, porque o desenvolvimento não é apenas uma aspiração, mas um direito[928] que, como todo direito, implica uma obrigação: «A colaboração para o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens é, efetivamente, um dever de todos para com todos e, ao mesmo tempo, há de ser comum às quatro partes do mundo: Este e Oeste, Norte e Sul»[929]. Na visão do Magistério, o direito ao desenvolvimento se funda nos seguintes princípios: unidade de origem e comunhão de destino da família humana; igualdade entre todas as pessoas e todas as comunidades baseada na dignidade humana; destinação universal dos bens da terra; integralidade da noção de desenvolvimento; centralidade da pessoa humana; solidariedade. 447 A doutrina social encoraja formas de cooperação capazes de incentivar o acesso ao mercado internacional dos países marcados pela pobreza e subdesenvolvimento: «Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os países que foram excluídos registraram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das atividades econômicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso eqüitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos»[930]. Entre as causas que predominantemente concorrem em determinar o desenvolvimento e a pobreza, além da impossibilidade de ascender ao mercado internacional[931], devem ser enumerados o analfabetismo, a insegurança alimentar, a ausência de estruturas e serviços, a carência de medidas para garantir o saneamento básico, a falta de água potável, a corrupção, a precariedade das instituições e da própria vida política. Existe uma conexão entre a pobreza e a falta, em muitos países, de liberdade, de possibilidade de iniciativa econômica, de administração estatal capaz de predispor um sistema adequado de educação e de informação. 448 O espírito da cooperação internacional exige que acima da estrita lógica do mercado esteja a consciência de um dever de solidariedade, de justiça social e de caridade universal[932]; efetivamente existe «algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade»[933]. A cooperação é a via que a Comunidade Internacional no seu conjunto deve empenhar-se a percorrer «segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana»[934]. Dela derivarão efeitos muito positivos: um aumento da confiança nas potencialidades das pessoas pobres e, conseqüentemente, dos países pobres e uma distribuição dos bens eqüitativa. b) Luta contra a pobreza 449 No início do novo milênio, a pobreza de milhões de homens e mulheres é «é a questão que, em absoluto, mais interpela a nossa consciência humana e cristã»[935]. A pobreza põe um dramático problema de justiça: a pobreza, nas suas diferentes formas e conseqüências, caracteriza-se por um crescimento desigual e não reconhece a cada povo «igual direito a »sentar-se à mesa do banquete comum»»[936]. Tal pobreza torna impossível a realização daquele humanismo plenário que a Igreja almeja e persegue, para que as pessoas e os povos possam «ser mais»[937] e viver em «condições mais humanas»[938]. A luta contra a pobreza encontra uma forte motivação na opção, ou amor preferencial, da Igreja pelos pobres[939].Em todo o seu ensinamento social a Igreja não se cansa de reafirmar também outros princípios fundamentais seus: dentre todos prima o da destinação universal dos bens[940]. Com a constante reafirmação do princípio da solidariedade, a doutrina social estimula a passar à ação para promover o «bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»[941]. O princípio da solidariedade, também na luta contra a pobreza, deve ser sempre oportunamente ladeado pelo da subsidiariedade, graças ao qual é possível estimular o espírito de iniciativa, base fundamental de todo desenvolvimento socioeconômico, nos países pobres[942]: aos pobres se deve olhar «não como um problema, mas como possíveis sujeitos e protagonistas dum futuro novo e mais humano para todo o mundo»[943]. c) A dívida externa 450 Deve-se ter presente o direito fundamental dos povos ao desenvolvimento nas questões ligadas à crise dos débitos de muitos países pobres[944].Tais crises têm, na sua origem, causas complexas e de vário gênero, seja de caráter internacional ― flutuações de câmbios, especulações financeiras, neocolonialismo econômico ― seja no interior de cada um dos países endividados ― corrupção, má gestão do dinheiro público, uso indevido dos empréstimos recebidos. Os sofrimentos maiores, atribuíveis à questões estruturais, mas também a comportamentos pessoais, atingem as populações dos países endividados e pobres, as quais não têm responsabilidade alguma. A comunidade internacional não pode ignorar uma semelhante situação: mesmo reafirmando o princípio que o débito contraído deve ser honrado, é preciso encontrar os caminhos para não comprometer o «fundamental direito dos povos à subsistência e ao progresso»[945].
CAPÍTULO X
SALVAGUARDAR O AMBIENTE
I. ASPECTOS BÍBLICOS
451 A experiência viva da presença divina na história é o fundamento da fé do povo de Deus: «Éramos escravos do Faraó no Egito, e o Senhor nos tirou do Egito com mão forte» (Dt 6,21). A reflexão sobre a história permite reassumir o passado e descobrir a obra de Deus nas próprias raízes: «Meu pai era um Arameu errante» (Dt 26,5); de Deus que pode dizer ao Seu povo: «Eu tirei Abraão vosso pai, do outro lado do rio» (Js 24,3). É uma reflexão que permite olhar com confiança para o futuro, graças à promessa e à aliança que Deus renova continuamente: «sereis para mim a porção escolhida entre todos os povos» (Ex 19,5).A fé de Israel vive no tempo e no espaço deste mundo, visto não como um ambiente hostil ou um mal da qual libertar-se, mas freqüentemente como o próprio dom de Deus, o lugar e o projeto que Ele confia à responsável direção e operosidade do homem. A natureza, obra da criação divina, não é uma perigosa concorrente. Deus, que fez todas as coisas, viu que cada uma delas «... era coisa boa» (Gn 1,4.10.12.18.21.25). No vértice da Sua criação, como «coisa muito boa» (Gn 1,31), o Criador coloca o homem. Só o homem e a mulher, entre todas as criaturas, foram queridos por Deus «a sua imagem» (Gn 1,27): a eles o Senhor confia a responsabilidade sobre toda a criação, a tarefa de tutelar a harmonia e o desenvolvimento (cf. Gn 1,26-30). O liame especial com Deus explica a privilegiada posição do casal humano na ordem da criação. 452 A relação do homem com o mundo é um elemento constitutivo da identidade humana. Trata-se de uma relação que nasce como fruto da relação, ainda mais profunda, do homem com Deus. O Senhor quis o ser humano como Seu interlocutor: somente no diálogo com Deus a criatura humana encontra a própria verdade, da qual extrai inspiração e normas para projetar a história no mundo, um jardim que Deus lhe deu para que seja cultivado e guardado (cf. Gn 2,15). Nem o pecado elimina tal tarefa, mesmo agravando com dor e sofrimento a nobreza do trabalho (cf. Gn 3,17-19). A criação é sempre objeto do louvor na oração de Israel: «Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria» (Sl 104,24). A salvação é entendida como uma nova criação, que restabelece aquela harmonia e aquela potencialidade de crescimento que o pecado comprometeu: «Vou criar novo céu e nova terra» (Is 65, 17) — diz o Senhor ―« então, o deserto se mudará em vergel ... e a justiça reinará no vergel ... o meu poso habitará em mansão serena»(Is 32, 15-18). 453 A salvação definitiva, que Deus oferece a toda a humanidade mediante o Seu próprio Filho, não se atua fora deste mundo. Mesmo ferido pelo pecado, este é destinado a conhecer uma purificação radical (cf. 2 Pe 3,10) da qual saíra renovado (cf. Is 65, 17; 66, 22; Ap 21, 1), transformado finalmente no lugar onde «habitará a justiça» (cf. 2 Pe 3, 13). No Seu ministério público Jesus valoriza os elementos naturais. Da natureza Ele é não só sábio interprete nas imagens que dela costuma oferecer e nas parábolas, mas também Senhor (cf. o episódio da tempestade sedada acalmada em Mt 14, 22-33; Mc 6, 45-52; Lc 8, 22-25; Jo 6, 16-21): o Senhor a coloca ao serviço de Seu desígnio redentor. Ele chama os Seus discípulos contemplar as coisas, as estações e os homens com a confiança dos filhos que sabem não poder ser abandonados por um Pai providente (cf. Lc 11, 11-13). Longe de se tornar escravo das coisas, o discípulo de Cristo deve saber servir-se delas para criar partilha e fraternidade (cf. Lc 16, 9-13). 454 O ingresso de Jesus Cristo na história do mundo culmina na Páscoa, onde a mesma natureza participa do drama do Filho de Deus rejeitado e da vitória da Ressurreição (cf. Mt 27, 45.51; 28, 2). Atravessando a morte e nela inserindo a novidade resplendente da Ressurreição, Jesus inaugura um mundo novo no qual tudo é submetido a Ele (cf 1 Cor 15,20-28) e restabelece aquela relação de ordem e harmonia que o pecado havia destruído. A consciência dos desequilíbrios entre o homem e a natureza de ser acompanhada pelo conhecimento de que, em Jesus, se realizou a reconciliação do homem e do mundo com Deus, de sorte que cada ser humano consciente do Amor divino, pode reencontrar a paz perdida: «Todo aquele que está em Cristo é uma criatura nova. Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo» (2 Cor 5,17). A natureza, que fora criada no Verbo, por meio do mesmo Verbo, feito carne, foi reconciliada com Deus e pacificada (Cf. Col 1,15-20). 455 Não apenas a interioridade do homem é sanada, mas toda a sua corporeidade é tocada pela força redentora de Cristo; a criação inteira toma parte na renovação que brota da Páscoa do Senhor, mesmo entre gemidos das dores do parto (cf. Rm 8, 19-23), à espera de dar à luz «um novo céu e uma nova terra» (Ap 21, 1) que são o dom do fim dos tempos, da salvação acabada. Nesse meio tempo, nada é estranho a tal salvação: em qualquer condição de vida, o cristão é chamado a servir a Cristo, a viver segundo o seu Espírito, deixando-se guiar pelo amor, princípio de uma vida nova, que restitui o mundo e o homem ao projeto das suas origens: «... o mundo, a vida, a morte, o presente, o futuro. Tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus» (1 Cor 3, 22-23).
II. O HOMEM E O UNIVERSO DAS COISAS
456 A visão bíblica inspira as atitudes dos cristãos em relação ao uso da terra, assim como ao desenvolvimento da ciência e da técnica. O Concílio Vaticano II afirma que o homem «tem razão o homem, participante da luz da inteligência divina, quando afirma que, pela inteligência é superior ao universo material»[946]; os Padres Conciliares reconhecem os progressos feitos graças à aplicação incansável do engenho humano ao longo dos séculos, nas ciências empíricas, nas artes técnicas e nas disciplinas liberais[947]. O homem hoje, «graças sobretudo à ciência e à técnica, estendeu e continuamente estende o seu domínio sobre quase toda a natureza»[948]. Porque o homem, «criado à imagem de Deus, recebeu a missão de submeter a terra e todas as coisas que nela existem, de governar o mundo na justiça e na santidade, e de, reconhecendo a Deus como Criador de todas as coisas, orientar para Ele o seu ser, bem como o universo inteiro, de tal maneira que, sujeitas todas as coisas ao homem, o nome de Deus seja glorificado em toda a terra», o Concílio ensina que a «a atividade humana, individual e coletiva, ou aquele esforço gigantesco, com que os homens se atarefam ao longo dos séculos para melhorar as condições de vida, considerado em si mesmo, corresponde à vontade de Deus»[949]. 457 Os resultados da ciência e da técnica são, em si mesmos, positivos: os cristãos «longe de oporem as conquistas do engenho e do esforço humano ao poder de Deus, e de considerarem a criatura racional como uma espécie de rival do Criador, (...) estão, ao contrário, bem persuadidos de que as vitórias do gênero humano são um sinal da grandeza divina e uma conseqüência dos Seus desígnios inefáveis»[950]. Os Padres conciliares ressaltam também o fato de que «quanto mais cresce o poder do homem, tanto mais se alarga o campo das suas responsabilidades, tanto individuais como coletivas»[951], e que toda atividade humana deve corresponder, segundo o desígnio de Deus e a Sua vontade, ao verdadeiro bem da humanidade[952]. Nesta perspectiva, o Magistério tem repetidas vezes sublinhado que a Igreja católica não se opõe de modo algum ao progresso[953], antes considera «a ciência e a tecnologia ... um produto maravilhoso da criatividade humana, que é dom de Deus, uma vez que nos forneceram possibilidades maravilhosas, de que beneficiamos com ânimo agradecido»[954]. Por esta razão, «como crentes em Deus, que julgou “boa” a natureza por Ele criada, nós gozamos dos progressos técnicos e econômicos, que o homem, com a sua inteligência, consegue realizar»[955]. 458 As considerações do Magistério sobre a ciência e sobre a tecnologia em geral valem também para a sua aplicação ao ambiente natural e à agricultura. A Igreja aprecia «as vantagens advêm ― e que podem advir ainda ― do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria»[956]. Efetivamente «a técnica poderia constituir, com uma reta aplicação, um precioso instrumento útil para resolver graves problemas, a começar pelos da fome e da enfermidade, mediante a produção de variedades de plantas mais progredidas e resistentes e de preciosos medicamentos»[957]. Contudo é importante reafirmar o conceito de «reta aplicação», porque «nós sabemos que este potencial não é neutro: pode ser usado tanto para o progresso do homem como para a sua degradação»[958]. Por esta razão, «é necessário ... manter uma atitude de prudência e examinar com olhos atentos a natureza, a finalidade e os modos das várias formas de tecnologia aplicada»[959]. Os cientistas, portanto, devem usar «verdadeiramente as suas pesquisas e as suas capacidades técnicas em serviço da humanidade»[960], sabendo subordiná-las «aos princípios e valores morais que respeitam e realizam na sua plenitude a dignidade do homem»[961]. 459 Ponto de referência central para toda aplicação científica e técnica é o respeito ao homem, que deve acompanhar uma indispensável atitude de respeito para com as demais criaturas viventes. Também quando se pensa a uma alteração delas, « é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado »[962]. Neste sentido, as formidáveis possibilidades da pesquisa biológica suscitam profunda inquietude, porquanto «ainda não se esteja em condições de avaliar as perturbações provocadas na natureza por uma indiscriminada manipulação genética e pelo imprudente desenvolvimento de novas plantas e de novas formas de vida animal, para não falar já de inaceitáveis intervenções sobre as origens da própria vida humana»[963]. Efetivamente, «já se verificou, porém, que a aplicação de algumas dessas descobertas no campo industrial e agrícola, a longo prazo produzem efeitos negativos. Isto pôs cruamente em evidência que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da considerarão das suas conseqüências noutras áreas e, em geral, das conseqüências no bem-estar das futuras gerações»[964]. 460 O homem não deve, portanto, esquecer que «a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho ... se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus »[965]. Ele não deve «dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair»[966]. Quando se comporta deste modo, « em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele»[967]. Se o homem intervém na natureza sem abusar e sem danificá-la, se pode dizer que «intervém não para modificar a natureza mas para a ajudar a desenvolver-se segundo a sua essência, aquela da criação, a mesma querida por Deus. Trabalhando neste campo, evidentemente delicado, o investigador adere ao desígnio de Deus. Aprouve a Deus que o homem fosse o rei da criação»[968]. No fundo é o próprio Deus que oferece ao homem a honra de cooperar com todas as forças da inteligência na obra da criação.
III. A CRISE NA RELAÇÃO HOMEM-AMBIENTE
461 A mensagem bíblica e o Magistério eclesial constituem os pontos de referência parâmetro para avaliar os problemas que se põem nas relações entre o homem e o ambiente[969]. Na origem de tais problemas pode identificar-se a pretensão de exercitar um domínio incondicional sobre as coisas por parte do homem, um homem desatento àquelas considerações de ordem moral que devem caracterizar cada atividade humana.A tendência à «exploração inconsiderada»[970]dos recursos da criação é o resultado de um longo processo histórico e cultural: «A época moderna registrou uma capacidade crescente de intervenção transformadora por parte do homem. O aspecto de conquista e de exploração dos recursos tornou-se predominante e invasivo, e hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre o perigo de ameaçar o ambiente como “casa”. Por causa dos poderosos meios de transformação, oferecidos pela civilização tecnológica, parece às vezes que o equilíbrio homem-ambiente tenha alcançado um ponto crítico»[971]. 462 A natureza aparece assim como um instrumento nas mãos do homem, uma realidade que ele deve constantemente manipular, especialmente mediante a tecnologia. A partir do pressuposto, que se revelou errado, de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração seja possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos, se difundiu uma concepção redutiva que lê o mundo natural em chave mecanicista e o desenvolvimento em chave consumista; o primado atribuído ao fazer e ao ter mais do que ao ser causa graves formas de alienação humana[972] . Uma semelhante postura não deriva da pesquisa científica e tecnológica, mas de uma ideologia cientificista e tecnocrática que tende a condicioná-la. A ciência e a técnica, com o seu progresso, não eliminam a necessidade de transcendência e não são de per si causa da secularização exasperada que conduz ao niilismo: enquanto avançam em seu caminho, suscitam interrogações sobre o seu sentido e fazem crescer a necessidade de respeitar a dimensão transcendente da pessoa humana e da própria criação. 463 Uma correta concepção do ambiente, se de um lado não pode reduzir de forma utilitarista a natureza mero objeto de manipulação e desfrute, por outro lado não pode absolutizar a natureza e sobrepô-la em dignidade à própria pessoa humana. Neste último caso, chega-se ao ponto de divinizar a natureza ou a terra, como se pode facilmente divisar em alguns movimentos ecologistas que querem que se dê um perfil institucional internacionalmente garantido às suas concepções[973]. O Magistério tem motivado a sua contrariedade a uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, porque «se propõe eliminar a diferença ontológica e axiológica entre o homem e os outros seres vivos, considerando a biosfera como uma unidade biótica de valor indiferenciado. Chega-se assim a eliminar a superior responsabilidade do homem, em favor de uma consideração igualitária da “dignidade” de todos os seres vivos»[974]. 464 Uma visão do homem e das coisas desligadas de qualquer referência à transcendência conduziu a negação do conceito de criação e a atribuir ao homem e à natureza uma existência completamente autônoma. O liame que une o mundo a Deus foi assim quebrado: tal ruptura terminou por desancorar do mundo também do homem e, mais radicalmente, empobreceu sua mesma identidade. O ser humano viu-se a considerar-se alheio ao contexto ambiental em que vive. É bem clara a conseqüência que daí decorre: «a relação que o homem tem com Deus é que determina a relação do homem com os seus semelhantes e com o seu ambiente. Eis por que a cultura cristã sempre reconheceu nas criaturas, que circundam o homem, outros tantos dons de Deus que devem ser cultivados e conservados, com sentido de gratidão para com o Criador. Em particular, as espiritualidades beneditina e franciscana têm testemunhado esta espécie de parentesco do homem com o ambiente da criação, alimentando nele uma atitude de respeito para com toda a realidade do mundo circunstante»[975]. Há que se ressaltar principalmente a profunda conexão existente entre ecologia ambiental e «ecologia humana»[976]. 465 O Magistério enfatiza a responsabilidade humana de preservar um ambiente íntegro e saudável para todos[977]: «A humanidade de hoje, se conseguir conjugar as novas capacidades científicas com uma forte dimensão ética, será certamente capaz de promover o ambiente como casa e como recurso, em favor do homem e de todos os homens; será capaz de eliminar os fatores de poluição, de assegurar condições de higiene e de saúde adequadas, tanto para pequenos grupos como para vastos aglomerados humanos. A tecnologia que polui pode também despoluir, a produção que acumula pode distribuir de modo eqüitativo, com a condição de que prevaleça a ética do respeito pela vida e a dignidade do homem, pelos direitos das gerações humanas presentes e daquelas vindouras»[978].
IV. UMA RESPONSABILIDADE COMUM
466 A tutela do ambiente constitui um desafio para toda a humanidade: trata-se do dever, comum e universal, de respeitar um bem coletivo[979], destinado a todos, impedindo que se possa fazer «impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados — animais, plantas e elementos naturais — como se quiser, em função das próprias exigências»[980]. É uma responsabilidade que deve amadurecer com base na globalidade da presente crise ecológica e à conseqüente necessidade de enfrentá-la globalmente, enquanto todos os seres dependem uns dos outros na ordem universal estabelecida pelo Criador: «é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, qual é exatamente o cosmos»[981]. Esta perspectiva reveste uma particular importância quando se considera, no contexto dos estreitos liames que unem vários ecossistemas entre si, o valor da biodiversidade, que deve ser tratada com sentido de responsabilidade e adequadamente protegida, porque constitui uma extraordinária riqueza para a humanidade toda. A tal propósito, cada um pode facilmente advertir, por exemplo, a importância da região amazônica, «um dos espaços mais apreciados do mundo pela sua diversidade biológica, que o torna vital para o equilíbrio ambiental de todo o planeta»[982]. As florestas contribuem para manter equilíbrios naturais essenciais indispensáveis para a vida[983]. A sua destruição, também através de inconsiderados incêndios dolosos acelera o os processos de desertificação com perigosas conseqüências para as reservas de água e compromete a vida de muitos povos indígenas e o bem-estar das gerações futuras. Todos, indivíduos e sujeitos institucionais, devem sentir-se comprometidos a proteger o patrimônio florestal e, onde necessário, promover adeguados programas de reflorestamento. 467 A responsabilidade em relação o ao ambiente, patrimônio comum do gênero humano, se estende não apenas às exigências do presente, mas também às do futuro: «Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um fato e um beneficio, mas também um dever»[984]. Trata-se de uma responsabilidade que as gerações presentes têm em relação às futuras[985], uma responsabilidade que pertence também a cada um dos Estados e à Comunidade Internacional. 468 A responsabilidade em relação ao ambiente deve encontrar uma tradução adequada em campo jurídico. É importante que a Comunidade Internacional elabore regras uniformes para que tal regulamentação consinta aos Estados controlar com maior eficácia as várias atividades que determinam efeitos negativos no ambiente e preservar os ecossistemas prevendo possíveis acidentes: «Compete a cada Estado, no âmbito do próprio território, a tarefa de prevenir a degradação da atmosfera e da biosfera, exercendo um controlo atento, além do mais, sobre os efeitos das novas descobertas tecnológicas e científicas; e ainda, dando aos próprios cidadãos a garantia de não estarem expostos a agentes inquinantes e a emanações tóxicas»[986]. O conteúdo jurídico do «direito a um ambiente são e seguro»[987] é fruto de uma elaboração gradual, requerida pela preocupação da opinião pública em disciplinar o uso dos bens da criação segundo as exigências do bem comum e em uma vontade comum de introduzir sanções para aqueles que poluem. As normas jurídicas, todavia, por si sós não bastam[988]; a par destas, devem amadurecer um forte senso de responsabilidade, bem como uma efetiva mudança nas mentalidades e nos estilos de vida. 469 As autoridades chamadas a tomar decisões para afrontar riscos sanitários e ambientais, às vezes, se encontram diante de situações nas quais os dados científicos disponíveis são contraditórios ou quantitativamente escassos: em tal caso pode ser oportuna uma avaliação inspirada pelo «princípio de precaução», que não comporta a aplicação de uma regra, mas uma orientação ordenada a administrar situações de incerteza. Esta manifesta a exigência de uma decisão provisória e modificável com base em novos conhecimentos que eventualmente se venham a alcançar. A decisão deve ser proporcional às providências já tomadas em vista de outros riscos. As políticas cautelatórias, baseadas no princípio de precaução, requerem que as decisões sejam baseadas em um confronto entre riscos e benefícios previsíveis para cada possível opção alternativa, inclusive a decisão de não atuar. À abordagem baseada no princípio de precaução liga-se a exigência de promover todo o esforço para adquirir conhecimentos mais aprofundados, mesmo sabendo que a ciência não pode chegar rapidamente a conclusões acerca da ausência de riscos. As circunstâncias de incerteza e a provisoriedade tornam particularmente importante a transparência no processo decisório. 470 A programação do desenvolvimento econômico deve considerar atentamente a «necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza»[989], já que os recursos naturais são limitados e alguns não são renováveis. O atual ritmo de exploração compromete seriamente a disponibilidade de alguns recursos naturais para o tempo presente e para o futuro[990]. A solução do problema ecológico exige que a atividade econômica respeite mais o ambiente, conciliando as exigências do desenvolvimento econômico com as da proteção ambiental. Toda atividade econômica que se valer dos recursos naturais deve também preocupar-se com a salvaguarda do ambiente e prever-lhe os custos, que devem ser considerados como «um item essencial dos custos da atividade econômica»[991]. Neste contexto hão de ser consideradas as relações entre a atividade humana e as mudanças climáticas que, vista a sua complexidade, devem ser oportuna e constantemente em nível científico, político e jurídico, nacional e internacional. O clima é um bem a ser protegido e exige que, no seu comportamento, os consumidores e os que exercem atividade industrial desenvolvam um maior senso de responsabilidade[992]. Uma economia respeitosa do ambiente não perseguirá unicamente o objetivo da maximização do lucro, porque a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não são aptos a defender ou a promover adequadamente[993]. Todos os países, sobretudo os desenvolvidos, devem perceber como urgente a obrigação de reconsiderar as modalidades do uso dos bens naturais. A busca de inovações capazes de reduzir o impacto sobre o ambiente provocado pela produção e pelo consumo deve ser eficazmente incentivada. Uma atenção particular deverá ser reservada às complexas problemáticas concernentes aos recursos energéticos[994]. As não renováveis, exploradas pelos países altamente industrializados e por aqueles que de recente industrialização, devem ser postas ao serviço de toda a humanidade. Em uma perspectiva moral caracterizada pela eqüidade e pela solidariedade entre as gerações, se deverá, outrossim, continuamente, mediante o contributo da comunidade científica, a identificar novas fontes energéticas, a desenvolver as alternativas e a elevar o nível de segurança da energia nuclear[995]. A utilização da energia, pela conexão que tem com as questões do desenvolvimento e do ambiente, chama em causa a responsabilidade política dos estados, da comunidade internacional e dos operadores econômicos; tais responsabilidades deverão ser iluminadas e guiadas pela busca contínua do bem comum universal. 471 Uma atenção especial merece a relação que os povos indígenas mantêm com a sua terra e os seus recursos: trata-se de uma expressão fundamental da sua identidade[996].Muitos povos já perderam ou correm o risco de perder, em vantagem de potentes interesses agro-industriais ou em força dos processos de assimilação e de urbanização, as terras em que vivem[997], as quais está vinculado o próprio sentido de suas existências[998]. Os direitos dos povos indígenas devem ser oportunamente tutelados[999]. Estes povos oferecem um exemplo de vida em harmonia com o ambiente que eles aprenderam a conhecer e preservar[1000]: a sua extraordinária experiência, que é uma riqueza insubstituível para toda a humanidade, corre o risco de se perder juntamente com o ambiente do qual se origina. b) O uso das biotecnologias 472 Nos últimos anos, se impôs com força a questão do uso das novas biotecnologias para fins ligados à agricultura, à zootecnia, à medicina e à proteção do ambiente. As novas possibilidades oferecidas pelas atuais técnicas biológicas e biogenéticas suscitam, de um lado, esperanças e entusiasmos e, de outro lado, alarme e hostilidade. As aplicações das biotecnologias, a sua liceidade do ponto de vista moral, as suas conseqüências para a saúde do homem, o seu impacto sobre o ambiente e sobre a economia, constituem objeto de estudo aprofundado e de vívido debate. Trata-se de questões controversas que envolvem cientistas e pesquisadores, políticos e legisladores, economistas e ambientalistas, produtores e consumidores. Os cristãos não ficam indiferentes a estas problemáticas, cônscios da importância dos valores em jogo[1001]. 473. A visão cristã da criação comporta um juízo positivo sobre a liceidade das intervenções do homem na natureza, inclusive os outros seres vivos, e, ao mesmo tempo, uma forte chamada ao senso de responsabilidade[1002]. De fato, a natureza não é uma realidade sacra ou divina, subtraída à ação humana. É, antes, um dom oferecido pelo Criador à comunidade humana, confiado à inteligência e à responsabilidade moral do homem. Por isso ele não comete um ato ilícito quando, respeitando a ordem, a beleza e a utilidade de cada ser vivente e da sua função no ecossistema, intervém modificando-lhe algumas características e propriedades. São deploráveis as intervenções do homem quando danificam os seres viventes ou o ambiente natural, ao passo que são louváveis quando se traduzem no seu melhoramento. A liceidade do uso das técnicas biológicas e biogenéticas não esgotam toda a problemática ética: como no que concerne qualquer comportamento humano, é necessário avaliar cuidadosamente a sua real utilidade, bem como as possíveis conseqüências também em termos de riscos. No âmbito das intervenções técnico-científicas de forte e ampla incidência sobre os organismos viventes, com a possibilidade de notáveis repercussões a longo prazo, não é lícito agir com ligeireza e irresponsabilidade. 474 As modernas biotecnologias têm um forte impacto social, econômico e político, no plano local, nacional e internacional: hão de ser avaliadas de acordo com os critérios éticos que devem sempre orientar as atividades e as relações humanas no âmbito sócio-econômico e político[1003]. É necessário ter na devida conta sobretudo os critérios de justiça e solidariedade, aos quais se devem ater antes de tudo os indivíduos e os grupos que atuam na pesquisa e comercialização no campo das biotecnologias. Todavia, não se deve cair no erro de crer que a mera difusão dos benefícios ligados às novas tecnologias possa resolver todos os urgentes problemas de pobreza e de subdesenvolvimento que ainda insidiam tantos países do planeta. 475 Em um espírito de solidariedade internacional, várias medidas podem ser atuadas em relação ao uso de novas biotecnologias. Deve ser facilitado, em primeiro lugar, o intercâmbio comercial eqüitativo, livre de vínculos injustos. A promoção do desenvolvimento dos povos mais desfavorecidos não será porém autêntica e eficaz se se reduz ao intercâmbio de produtos. É indispensável favorecer também a maturação de uma necessária autonomia científica e tecnológica por parte daqueles mesmos povos, promovendo também os intercâmbios de conhecimentos científicos e as tecnologias bem como a transferência de tecnologias para os países em via de desenvolvimento. 476 A solidariedade comporta também uma chamada à responsabilidade que têm os países em via de desenvolvimento e em particular, os seus responsáveis políticos, em promover uma política comercial favorável aos seus povos e o intercâmbio de tecnologias capazes de melhorar as condições alimentares e sanitárias. Em tais países deve crescer o investimento na pesquisa, com especial atenção às características e às necessidades particulares do próprio território e da própria população, sobretudo levando em conta que algumas pesquisas no campo das biotecnologias, potencialmente benéficas, requerem investimentos relativamente modestos. Para este fim seria útil a criação de Organismos nacionais dedicados à proteção do bem comum mediante uma atenta gestão dos riscos. 477 Os cientistas e técnicos empenhados no setor das biotecnologias são chamados a trabalhar com inteligência e perseverança na busca de melhores soluções para os graves e urgentes problemas da alimentação e da saúde. Eles não se devem esquecer de que as suas atividades dizem respeito a materiais, viventes e não, pertencentes à humanidade como um patrimônio, destinado também às gerações futuras; para os crentes se trata de um dom recebido do Criador, confiado à inteligência e à liberdade humanas, também estas dons do Altíssimo. Saibam os cientistas empenhar as suas energias e as suas capacidades em uma busca apaixonada, guiada por uma consciência límpida e honesta[1004]. 478 Os empresários e responsáveis pelas entidades públicas que se ocupam da pesquisa, da produção e do comércio dos produtos derivados das novas biotecnologias devem ter em conta não só o legítimo lucro, mas também o bem comum. Este princípio, válido para todo tipo de atividade econômica, torna-se particularmente importante quando se trata de atividades que se relacionam com a alimentação, a medicina, a proteção da saúde e do ambiente. Com as suas decisões, empresários e responsáveis pelas entidades públicas interessadas podem orientar os progressos no setor das biotecnologias para metas muito promissoras pelo que respeita a luta contra a fome, especialmente nos países mais pobres, a luta contra as doenças e a luta pela salvaguarda do ecossistema, patrimônio de todos. 479 Os políticos, os legisladores e os administradores públicos têm a responsabilidade de avaliar as potencialidades, as vantagens e os eventuais riscos conexos com o uso das biotecnologias. Não é de desejar que as suas decisões, em plano nacional ou internacional, sejam ditadas por pressões provenientes de interesses de parte. As autoridades públicas devem favorecer também uma correta informação da opinião pública e saber, em todo caso, tomar as decisões convenientes para o bem comum. 480 Também os responsáveis pela informação têm uma tarefa importante, a desempenhar com prudência e objetividade. A sociedade espera da parte deles uma informação completa e objetiva, que ajude os cidadãos a formar uma opinião correta acerca dos produtos biotecnológicos, sobretudo porque se trata de algo que lhes diz respeito diretamente enquanto possíveis consumidores. Deve-se, portanto, evitar cair na tentação de uma informação superficial, alimentada por entusiasmos fáceis ou por alarmismos injustificados. c) Ambiente e partilha dos bens 481 Também no campo da ecologia a doutrina social convida a ter presente que os bens da terra foram criados por Deus para ser sabiamente usados por todos: tais bens devem ser divididos com equidade, segundo a justiça e a caridade. Trata-se essencialmente de impedir a injustiça de um açambarcamento dos recursos: a avidez, seja esta individual ou coletiva, é contrária à ordem da criação[1005].Os atuais problemas ecológicos, de caráter planetário, podem ser eficazmente enfrentados somente através de uma cooperação internacional capaz de garantir uma maior coordenação do uso dos recursos da terra. 482 O princípio da destinação universal dos bens oferece uma fundamental orientação, moral e cultural, para desatar o complexo e dramático nó que liga crises ambientais e pobreza. A atual crise ambiental atinge particularmente os mais pobres, seja porque vivem naquelas terras sujeitas à erosão e à desertificação, ou porque envolvidos em conflitos armados ou ainda constrangidos a migrações forçadas, seja porque não dispõem dos meios econômicos e tecnológicos para proteger-se das calamidades. Muitíssimos destes pobres vivem nos subúrbios poluídos das cidades em alojamentos casuais ou em aglomerados de casas decadentes e perigosas. (slums, bidonvilles, Barrios, favelas). Ademais, tenha-se sempre presente, a situação dos países penalizados pelas regras de comércio internacional não eqüitativo, nos quais prevalece uma escassez de capitais freqüentemente agravada pelo ônus da dívida externa: nestes casos a fome e a pobreza tornam quase inevitável uma exploração intensiva e excessiva do ambiente. 483 O estreito liame que existe entre desenvolvimento dos países mais pobres, crescimento demográfico e uso razoável do ambiente, não é utilizado como pretexto para escolas políticas e econômicas pouco conformes à dignidade da pessoa humana. No Norte do planeta se assiste a uma «a quebra do índice de natalidade, com repercussões sobre o envelhecimento da população, que se torna incapaz mesmo de se renovar biologicamente»[1006], ao passo que no Sul a situação é diferente. Se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário[1007]: «Existe uma opinião vastamente difundida, segundo a qual a política demográfica é apenas uma parte da estratégia global sobre o desenvolvimento. Por conseguinte, é importante que qualquer debate acerca de políticas demográficas tenha em consideração o desenvolvimento presente e futuro, tanto das nações como das regiões. Ao mesmo tempo, é impossível pôr de parte a natureza mesma daquilo que a palavra “desenvolvimento” significa. Qualquer desenvolvimento digno deste nome deve ser integral, ou seja, deve orientar-se para o verdadeiro bem de cada pessoa e de toda a pessoa»[1008]. 484 O princípio da destinação universal dos bens se aplica naturalmente também à água, considerada nas Sagradas Escrituras como símbolo de purificação (cf. Sal 51, 4, Jo 13, 8) e de vida (cf. Jo 3,5; Gal 3,27): «Como dom de Deus, a água é instrumento vital, imprescindível para a sobrevivência e, portanto, um direito de todos»[1009]. A utilização da água e dos serviços conexos deve ser orientada à satisfação das necessidades e sobretudo das pessoas que vivem em pobreza. Um acesso limitado à água potável incide no bem-estar de um número enorme de pessoas e é freqüentemente causa de doenças, sofrimentos, conflitos, pobreza e até mesmo de morte: para ser adequadamente resolvida, tal questão «necessita ... ser enquadrada de forma a estabelecer critérios morais baseados precisamente no valor da vida e no respeito pelos direitos e pela dignidade de todos os seres humanos»[1010]. 485. A água, pela sua própria natureza, não pode ser tratada como uma mera mercadoria entre outras e o seu uso deve ser racional e solidário. A sua distribuição se enumera, tradicionalmente entre as responsabilidades dos órgãos públicos, porque a água sempre foi considerada como um bem público, característica que deve ser mantida caso a gestão venha a ser confiada ao setor privado. O direito à água[1011], como todos os direitos do homem, se baseia na dignidade humana, e não em considerações de tipo meramente quantitativo, que consideram a água tão somente como um bem econômico. Sem água a vida é ameaçada. Portanto, o direito à água é um direito universal e inalienável. d) Novos estilos de vida 486 Os graves problemas ecológicos exigem uma efetiva mudança de mentalidade que induza a adotar novos estilos de vida[1012], «nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento»[1013]. Tais estilos de vida devem ser inspirados na sobriedade, na temperança, na autodisciplina, no plano pessoal e social. É necessário sair da lógica do mero consumo e promover formas de produção agrícola e industrial que respeitem a ordem da criação e satisfaçam as necessidades primárias de todos. Uma semelhante atitude, favorecida por uma renovada consciência da interdependência que une todos os habitantes da terra, concorre para eliminar diversas causas de desastres ecológicos e garante uma tempestiva capacidade de resposta quando tais desastres atingem povos e territórios[1014]. A questão ecológica não deve ser abordada somente pelas aterrorizantes perspectivas que o degrado ambiental perfila: esta deve traduzir-se, sobretudo, em uma forte motivação para uma autêntica solidariedade de dimensão universal. 487 A atitude que deve caracterizar o homem perante a criação é essencialmente a da gratidão e do reconhecimento: de fato, o mundo nos reconduz ao mistério de Deus que o criou e o sustém. Se se coloca entre parentes a relação com Deus, esvazia-se a natureza do seu significado profundo, depauperando-a. Se, ao contrário, se chega a descobrir a natureza na sua dimensão de criatura, é possível estabelecer com ela uma relação comunicativa, colher o seu significado evocativo e simbólico, penetrar assim no horizonte do mistério, franqueando ao homem a abertura para Deus, Criador dos céus e da terra. O mundo se oferece ao olhar do homem como rastro de Deus, lugar no qual se desvela a Sua força criadora, providente e redentora. |
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