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sábado, 25 de abril de 2020

MORAL SOCIAL-SAGRADA ESCRITURA

1 Evangelho: fonte de preocupação social da Igreja
 A Sagrada Escritura é a alma da teologia (Dei Verbum, n.24), é a fonte de inspiração do pensamento social. Dela fluem as interpelações para os grandes temas da atualidade social; justiça, direitos humanos, a fraternidade e a solidariedade. Jesus e sua mensagem, o Reino de Deus, são o ponto de partida e de chegada (Mc 1, 15; Mt 5: 3-12). O amor (ágape) é o conceito mais importante (cf. 1Cor 13) e a regra de ouro da moral social da Igreja: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12; Lc 6,31). O Evangelho deve ser anunciado no mundo do trabalho, da economia, da política, da cultura, da família. Todas estas realidades são parte da vida humana e, portanto, são alcançadas pela salvação trazida por Cristo.
A experiência do amor cristão torna-se compromisso por amor; a fé busca a expressão ética. Isto é afirmado claramente na Carta de Tiago:
De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta (Tg 2,14-17; cf. 1 Jo 4,19-21).
A experiência do amor se faz solicitação e busca de configuração de  uma sociedade justa, onde todos estão incluídos para participar em sua organização e  desfrutar de bem-estar. O social forma parte essencial do ser humano e, por isso, com toda a razão, os bispos latino-americanos declararam: “o nosso comportamento social é uma parte integrante do nosso seguimento de Cristo” (Puebla, n.476).
A este respeito, a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37; Mt 22,34-40; Mc 12,28-31) é muito esclarecedora. O escriba ou o jurista pergunta a Jesus “quem é o meu próximo?”, porque não se deve cometer erros neste ponto em que está em jogo a vida eterna.
A resposta de Jesus é surpreendente porque não dá uma definição teórica do próximo, não requer – ao estilo grego – um amor universal pela humanidade, mas mostra através da parábola, o procedimento concreto de amor autêntico ao próximo. Ou seja, a Jesus não importa perguntar quem ele é, ou qual sua nacionalidade ou confissão, mas sim mostrar que todo aquele que precisa da nossa ajuda é nosso próximo e nós somos o próximo dele.
A partir da parábola, podem ser tiradas as seguintes conclusões éticas sobre o amor cristão:
a) A ruptura no conceito vigente de próximo. A pergunta inicial do perito da lei presumia uma delimitação excludente na categoria de próximo (até quem chega a minha obrigação de amar? ou quem está incluído no conceito de próximo?). Jesus recusa-se a responder esta questão e sublinha que o próximo é aquele que vem ao nosso encontro no momento particular e concreto da vida diária. O conceito cristão de próximo é o resultado da história e não o seu ponto de partida. Em outras palavras, Jesus não define o conceito de próximo, mas descreve a ação pela qual se faz do outro um próximo. Em nossa linguagem cotidiana, a palavra “próximo” tem o sentido geral de “vizinho” ou “fulano”, um significado abstrato, passivo e neutro. Na parábola, o conceito de próximo está relacionado a uma ação dinâmica, comprometedora e histórica. O próximo não é apenas outro, mas aquele que eu torno um outro relevante e significativo; fazer do outro, através de uma ação concreta, o meu próximo.
b) O critério de compaixão. A descrição da ação de proximidade não é definida pela presença (o sacerdote e o levita estavam presentes), mas pela capacidade de se compadecer frente a necessidade do outro. Só quem teve compaixão (padecer com) é identificado por Jesus como alguém que se comportou como próximo. O doutor da lei perguntou: quem é o meu próximo? E Jesus responde com outra pergunta: a quem você tratou como próximo? Ou seja, o critério fundamental de proximidade se define a partir das necessidades do outro. Portanto, o próximo não é definido pela mera presença, mas através da ação de acudir o outro que é um necessitado.
c) A prática do amor. A capacidade de se compadecer frente as necessidades do outro faz com que o amor não se manifeste apenas através de sentimentos e palavras, mas também – e especialmente – em fatos concretos. O samaritano se preocupou pelo ferido: ele se aproximou, tratou suas feridas, derramando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. E a resposta de Jesus foi: “faça o mesmo” e “faça isso e viverá”. Jesus não estava interessado no desenvolvimento teórico-legalista da delimitação do conceito de próximo, pois urgia a prática concreta do amor diante da necessidade do outro.
d) Amor sem limites. A verdadeira compaixão leva à radicalidade na prática do amor. Esta radicalidade é mostrada na ajuda desinteressada do samaritano diante do desvalido, porque, para além das divisões nacionais e de culto, o outro está ferido. A vida de Jesus é o exemplo desse amor sem limites, é mediante sua própria vida que a propõe como um modelo de serviço aos outros.
e) O necessitado como referente primário. O doutor da lei pergunta pelo objeto do amor (o conhecimento teórico: a quem eu devo amar?) enquanto Jesus responde em termos de sujeito do amor (a realização prática de como se deve amar). A resposta de Jesus coloca o sujeito na mesma posição daquele que padece a necessidade e, a partir dessa situação de abandono, levanta a questão: o que posso fazer? É precisamente a capacidade de compaixão que o torna sensível às necessidades do outro e leva a uma prática do amor. O necessitado torna-se a medida específica de um amor sem limites,  expressão e verificação do amor a Deus.
Jesus faz do amor ao outro uma pergunta altruísta (levantar a questão a partir da necessidade do outro) e não uma observação egocêntrica (como eu posso ajudar o outro a partir de minha situação confortável de não necessitado). Portanto, a justiça tem a sua origem em Deus. O amor, a verdade e a justiça são uma unidade em Deus. “O amor – caritas – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a se envolverem com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz” (Caritas in veritate n.1). O amor ganha forma operativa na justiça. Se, por um lado, a justiça não pode ser separada da caridade (Populorum progressio n.22), por outro lado, é o primeiro caminho da caridade: reconhecer e respeitar os direitos dos indivíduos e dos povos! (Caritas in veritate n.6). A justiça que brota do amor de Deus é o fundamento da justiça social e da opção pelos marginalizados, indefesos e excluídos da sociedade.
2  O ensinamento social da Igreja
Ensinamento Social da Igreja (Doutrina Social da Igreja) é a elaboração, de forma sistemática, da preocupação do Magistério  com os problemas sociais,  explicitando as obrigações sociais. Ou seja, o dever cristão de cooperar com a construção de um mundo humano e justo (Gaudium et Spes, n.34, 43, 72; Octogesima Adveniens, n.24).
O documento inaugural é a encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII, publicada em 15 de maio de 1891. É a primeira vez que um documento do Magistério é totalmente dedicado à denominada “questão social”. A Igreja se volta para os problemas que afligem aos pobres. Seu contexto é o de uma sociedade profundamente transformada pela Revolução Industrial: revolução socioeconômica, com o surgimento e consolidação da indústria; política, por meio do fortalecimento dos Estados-nação; científica, através do aprofundamento do conhecimento aliado à técnica; filosófica, fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade. No final do século XIX, a Igreja se encontra frente ao capitalismo e ao socialismo marxista.
Lista dos principais documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI) em ordem cronológica:
Rerum Novarum (RN): Leão XIII de 1891.
Quadragesimo anno (QA): Pio XI, 1931.
Radiomensagem A solennità: Pio XII de 1941.
Mater et Magistra (MM): João XXIII, 1961.
Pacem in Terris (PT): João XXIII, 1963.
Constituição Pastoral Gaudium et Spes: Concílio Vaticano II, 1965.
Declaração Dignitatis Humanae: Concílio VaticanoII, 1965.
Populorum Progressio (PP): Paulo VI de 1967
Octogesima adveniens (OA): Paulo VI 1971.
Justiça no mundo: Sínodo dos Bispos, 1971.
Sollicitudo Rei Socialis (SRS): João Paulo II, de 1987.
Laborem Exercens (LE): João Paulo II de 1981.
Centesimus Annus (CA): João Paulo II, de 1991.
Caritas in veritate (CV): Bento XVI: 2009.
Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CSDC): Conselho Pontifício de Justiça e Paz, 2004.
Na América Latina e no Caribe, os documentos das Assembleias da Conferência do Episcopado Latino-americano (CELAM) em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) oferecem elementos para o pensamento social. São textos caracterizados pelo profetismo, pela opção preferencial pelos pobres, pela defesa e a promoção da dignidade humana. A condição fundamental da verdadeira libertação é a superação de todas as formas de escravidão. O Evangelho deve iluminar o compromisso pela libertação de cada homem e de todos os homens.
O Documento de Aparecida desenvolveu orientações para uma agenda social (n.347-546.): globalização da solidariedade e da justiça, o compromisso com os novos rostos de Cristo (moradores de rua, imigrantes, doentes, dependentes químicos, prisioneiros); compromisso com a defesa da família e da vida humana (infância, juventude, idosos, mulheres); a necessidade de uma pastoral da comunicação social; a presença mais eficaz e profética na política; compromisso de solidariedade com os povos indígenas e afrodescendentes. A teologia da libertação também oferece uma contribuição inestimável para a reflexão e a práxis social dos cristãos.
3 Princípios permanentes
 Ao longo das várias “encíclicas sociais” surgidas desde a Rerum Novarum até os dias atuais – e apesar das mudanças que ocorreram durante esse mesmo período – se repetem um conjunto de princípios éticos que formam a essência do pensamento social da Igreja.
Primeiro, encontramos a afirmação solene da sagrada dignidade do ser humano, de cada homem e mulher. O núcleo da antropologia bíblica é a semelhança do ser humano o seu criador (Gn 1,26-28; cf. Sab 2,23; Eclo 17,3). E, como imagem e semelhança de Deus, se revela de maneira perfeita e completa na pessoa de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (2 Coríntios 4,4; Col 1,15).
Esta dignidade é a raiz dos direitos humanos e deve ser proclamada e defendida contra todos os tipos de agressão. Portanto, somente o reconhecimento da dignidade humana é condição de possibilidade de uma sociedade justa. Neste sentido, o verdadeiro progresso é entendido como um desenvolvimento integral da transição de condições “menos humanas para condições “mais humanas”; ou seja, o desenvolvimento autêntico não é medido apenas, nem de maneira privilegiada, pela quantidade, mas especialmente pela qualidade; e isso significa o dever de solidariedade, de justiça social e caridade universal e internacional (Mater et Magistra n.97-103; Pacem in Terris n.123; Populorum Progressio n.65; Laborem Exercens n.15; Sollicitudo Rei Socialis n.44). “A fé cristã se ocupa do desenvolvimento contando apenas com Cristo, a quem deve fazer referência toda a autêntica vocação para o desenvolvimento humano integral” (Caritas in veritate n.18).
A exigência do bem comum é uma das principais chaves da ética social, porque as suas exigências são o critério da justiça social; o bem comum é entendido como o conjunto das condições de vida social com que os homens e as mulheres, as famílias, as associações e os povos podem alcançar, com maior plenitude e facilmente, a sua própria realização. No princípio da equidade – o cuidado especial para os mais vulneráveis na sociedade – está incluído no princípio do bem comum, de modo que o bem de todos tem um correspondente privilegiado (Rerum Novarum n.24, 25; Quadragesimo Anno n.110; Mater et Magistra n.65; Pacem in Terris n.53-66; Gaudium et spes n.74; Sollicitudo rei socialis n.42, 43).
O princípio da subsidiariedade enfatiza a dignidade e a responsabilidade do indivíduo e dos organismos intermediários, evitando o individualismo liberal e o estatismo totalitário, porque favorece a intervenção do Estado para o bem comum, facilitando a iniciativa do indivíduo e do grupo como um contributo para a comunidade humana (Rerum novarum n.26; Quadragesimo anno n.76-80; Mater et Magistra n.51-58).
O princípio da destinação universal dos bens prevalece sobre o direito de propriedade, porque é a tradução do bem comum no campo socioeconômico (Rerum Novarum n.16; Quadragesimo Anno n.45-50; Populorum Progressio  n.23-24) “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os homens e todos os povos (Gn 1,28-29), de modo que os bens criados devem ser distribuídos equitativamente a todos, de acordo com a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et Spes n.69). O direito de acesso universal de todos ao uso dos bens deve ser equitativamente garantido para cada indivíduo (Centesimus Annus n.6). É um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade (Populorum Progressio n.22).
Reconhece-se o direito à propriedade privada, incluindo os meios de produção, mas dentro do contexto do princípio primário da destinação universal dos bens, uma vez que todos os outros direitos lhe estão subordinados  (Gaudium et Spes n.71). Toda propriedade dos meios de produção tem uma função social e deve contribuir para o bem comum.
O trabalho ocupa a chave essencial e o centro da questão social (Laborem Exercens n.3). O ser humano é o sujeito do trabalho, de modo que se afirma a prioridade do trabalho sobre o capital.
Todo trabalho humano procede imediatamente da pessoa, a qual como que marca com o seu zelo as coisas da natureza, e as sujeita ao seu domínio. É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina (Gaudium et Spes n.67).
 A questão salarial, a flexibilização, a precarização e o desemprego estão entre as principais preocupações da moral social. Rejeita-se a redução do trabalho a uma simples mercadoria ou a uma força anônima, e se sublinha a responsabilidade do empresário direta e indiretamente sobre o trabalho. Também apela para a solidariedade de e com os homens e as mulheres no trabalho (Quadragesimo anno n.53 ; Laborem Exercens n.3, 6, 7, 8, 12, 16, 17). O cumprimento do princípio da remuneração justa é a medida concreta para cumprir com a justiça social na relação entre o trabalhador e o empresário.
Bento XVI apela à universalização do trabalho decente:
um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes em nível pessoal, familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa (Caritas in veritate n.63).
 A Igreja apoia os sindicatos e as diversas lutas da classe trabalhadora por seus direitos (Compêndio n.305). Os sucessivos documentos têm procurado acompanhar a evolução dos desafios sindicais que surgiram com o capitalismo (Rerum Novarum n.34, 39-40; Gaudium et Spes n.68). As organizações de trabalho são “protagonistas da luta pela justiça social” (Laborem Exercens n.20).
4 Âmbitos de aplicação
4.1 Economia
O papa Francisco tem uma visão crítico-profética da economia contemporânea. “Vivemos em uma economia de exclusão e desigualdade. Essa economia mata!” (Evangelii Gaudium, n.53). Retomando um tema importante da teologia da libertação, a Igreja condena a idolatria do dinheiro. “Criamos novos ídolos. A adoração do bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma versão nova e cruel do fetichismo do dinheiro e da ditadura da economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano” (Evangelii Gaudium n.53). “Na vida econômica e social deve ser respeitada e promovida a dignidade da pessoa humana, a sua vocação e o bem de toda a sociedade. Porque o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social” (Gaudium et Spes n.63).
A economia em todas as suas extensões, é um setor de atividade humana. A relação entre economia e ética é necessária, mesmo que elas sejam reguladas, cada uma em seu campo, por princípios próprios. Na verdade, para Bento XVI, “a economia tem necessidade da ética para funcionar corretamente; não qualquer ética, mas uma ética que seja amiga da pessoa” (Caritas in veritate n.45). O objetivo da economia é produzir riqueza e seu incremento é voltado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade. Mas, “o principal objetivo da produção é não apenas o aumento da quantidade de produtos, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem de suas necessidades materiais e das exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa” (Gaudium et Spes n.64).
O desenvolvimento econômico “não deve ser entregue só ao arbítrio de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes ou só da comunidade política ou de algumas nações mais poderosas” (Gaudium et Spes n.65). As necessidades dos pobres não permitem prorrogação. Portanto, eles devem ter prioridade sobre os desejos dos ricos. Há necessidades econômicas que são direitos humanos fundamentais (Pacem in Terris n.11). “Não é um mero aumento de produtividade ou lucro, ou poder, mas o serviço do homem integral” (Gaudium et Spes n.64).
De acordo com Bento XVI, há iniciativas no âmbito da economia que indicam que “é  possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da atividade econômica” (Caritas in veritate n.36). Existem alguns exemplos: fundos de investimento ético, microcréditos (Caritas in veritate n.45 e 65), cooperativas de consumo (n.66) e  a economia civil e de comunhão (n.46). Na verdade, cada empresa deveria ser caracterizada pela capacidade de servir o bem comum da sociedade através da produção e fornecimento de bens e serviços úteis e necessários para as pessoas. Deve criar riqueza para toda a sociedade, não só para o empresário (Compêndio, n.344).
4.2 Política
A pessoa humana é o fundamento e objetivo da convivência política (Gaudium et Spes n.25). A comunidade política vem da natureza das pessoas e existe para obter o bem comum, que seria de outra forma inatingível (Gaudium et Spes n.74). No entanto, para auxiliar na transformação de uma sociedade injusta, os cristãos devem participar da política. “Embora a justa ordem da sociedade e do Estado sejam o dever central da política, a Igreja não pode nem deve ser deixada de fora da luta pela justiça” (Evangelii Gaudium n.183; Deus caritas est n.28) . A mensagem bíblica inspira o compromisso cristão: “a política é uma forma de oferecer adoração a Deus” (Puebla n.521).
Na sociedade política destacam-se como requisitos éticos os valores da igualdade e da participação em uma estrutura democrática (democracia), porque correspondem melhor à dignidade e ao sentido de responsabilidade do cidadão (Mater et Magistra n.83; Octogesima adveniens n.24, 26, 30-35; Pacem in terris n.159; Sollicitudo rei socialis n.20-21).
A autoridade política é necessária em função das tarefas que lhe são confiadas e deve ser um componente positivo e insubstituível da convivência civil (Pacem in Terris n.279). Essa autoridade deve garantir a harmonia social, sem tomar o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas orientando-a, no respeito e na proteção da independência dos sujeitos individuais e sociais para a  realização do bem comum.
O sujeito da autoridade política é o povo considerado, na sua totalidade, como o  titular da soberania. Portanto, a Igreja observa com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos e garante a possibilidade de escolher os seus governantes ou de substituí-los (Gaudium et Spes n.75). “É uma exigência da dignidade humana que todos possam, com pleno direito,  se envolver na vida pública” (Pacem in Terris n.73). Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e com base em uma concepção correta da pessoa humana (Centesimus Annus n.46). A este respeito, os partidos políticos têm a função de promover a participação e o acesso de todos às responsabilidades públicas e orientar a sociedade para o bem comum (Gaudium et Spes n.75). Outro instrumento de participação política é o referendum, no qual se realiza uma forma direta de eleições políticas.
A Igreja e a comunidade política, embora ambas se expressem com estruturas organizacionais visíveis, são de natureza diversa, seja por sua configuração ou pela finalidade perseguida: “no campo que lhes é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas” (Gaudium et Spes n.76). Por esta razão, a Igreja mantém a sua autonomia frente às ideologias. Qualquer sistema, segundo o qual as relações sociais estejam determinadas inteiramente por fatores econômicos, é contrário à natureza humana (Catecismo n.2423-2425). Rejeita-se a ideologia liberal (Liberalismo, Capitalismo) por seu materialismo prático (hierarquia errada de valores), bem como a ideologia marxista (Marxismo) por seu materialismo dialético (uma visão errônea de reduzir o ser humano a um resultado das relações econômicas).
4.3 Questão ambiental
A questão moral contempla a natureza como “expressão de um desígnio de amor e de verdade” (Caritas in veritate n.48). O meio ambiente foi dado por Deus a todos, constituindo seu uso  uma responsabilidade que temos com os pobres, as gerações futuras e toda a humanidade (…). Quando falta essa perspectiva, o homem acaba considerando a natureza um tabu intocável ou, pelo contrário,  abusa dela. Nem uma nem outra atitude corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus (Caritas in veritate n.48).
Frente às mudanças climáticas, a extinção da biodiversidade e a poluição, as questões relacionadas com a preservação do meio ambiente devem levar em consideração as questões  energéticas. O desenvolvimento deve basear-se “no reconhecimento mais urgente dos limites dos recursos naturais, alguns dos quais são não renováveis. Usá-los como se fossem inesgotáveis, com controle absoluto, compromete gravemente a sua disponibilidade não só para a geração presente, mas, sobretudo, para as gerações futuras” (Sollicitudo Rei Socialis n.34).
A comunidade internacional tem o dever de encontrar formas institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, também com a participação de países pobres, para que eles possam planejar conjuntamente o futuro. Esta responsabilidade é global, porque não está relacionada apenas à energia, mas a toda a criação, já que não devemos deixar despojadas de recursos as novas gerações (Caritas in veritate n.50). Em suma, é necessária uma verdadeira mudança de mentalidade que nos induza a adotar novos estilos de vida (Centesimus Annus n.36).
Requer-se uma espécie de ecologia humana, entendida no seu justo sentido  (Caritas in veritate n.51). O documento de Aparecida apresenta propostas neste sentido: aprofundar a presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório, e apoiá-las em seus esforços para alcançar uma distribuição equitativa da terra, da água e dos espaços urbanos; buscar um modelo de desenvolvimento alternativo integral e solidário baseado em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana, que se fundamente no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens (Aparecida n.474).
5 A solidariedade como proposta ética
A moral social apresenta a solidariedade humana como um requisito inalienável (Gaudium et Spes n.12-32 ; Sollicitudo Rei Socialis n.38-40). A solidariedade é a expressão humana da responsabilidade social do indivíduo e da sociedade com o outro e entre todos. Portanto, a solidariedade é considerada uma exigência humana, porque cada indivíduo é um ser social, forma parte de uma sociedade e  a realização do indivíduo necessariamente envolve a realização de cada um. Viver é conviver.
A solidariedade torna-se uma condição de existência para todos. Não se estende a mão (de cima) para quem está embaixo, mas se caminha junto com o outro; não é uma visão verticalista da sociedade, mas horizontal, em que não se estende uma mão paternalista de um grupo social para o outro , senão que se aperta a mão do outro em reconhecimento da igual dignidade. Por isso, a solidariedade não significa dar o que se tem de sobra, mas é uma expressão de amor pelo semelhante. O outro se torna um próximo quando alguém dele se aproxima.
O conceito de solidariedade ocupa um lugar privilegiado na visão cristã. A Sagrada Escritura é o relato da história solidária de Deus com a humanidade e a condição humana de criatura, significando uma superação da mera dependência pela responsabilidade em um contexto dialogal entre Deus e a humanidade. Ou seja, a comunidade divina (o mistério da Trindade) se revela como comunhão com a humanidade na pessoa de Jesus, o  Cristo, e convida o ser humano a compartilhar uma  vida em comum união com o divino e entre si. A experiência de solidariedade divina torna-se responsabilidade ética de solidariedade nas relações interpessoais e sua estruturação em instituições  (Jo 13, 34-35).
A solidariedade, explica João Paulo II, não é um sentimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou afastadas. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; isto é, para o bem de todos e de cada um, para que todos nós sejamos verdadeiramente responsáveis ​​por todos (Sollicitudo Rei Socialis n.38).
Esta compreensão da solidariedade tem raízes bíblicas profundas. “Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei. Sou eu o guarda do meu irmão?” (Gênesis 4,9). A resposta de Cain contrasta fortemente com a afirmação de Jesus: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Assim, enquanto Caim desconhece seu próprio irmão, Jesus identifica-se com os membros mais fracos da sociedade, fazendo-se seu irmão.
Em uma sociedade globalizada, escreve Bento XVI, o sentido cristão da solidariedade deve ser global.
A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas também um dever. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio (Caritas in veritate n.43).
 6 Os direitos humanos como desafio urgente
 A crescente consciência dos direitos fundamentais da pessoa humana como uma expressão jurídica e política da dignidade do ser humano tem uma formulação privilegiada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris em 1948. Esta Declaração é um verdadeiro marco cultural na história da humanidade, ao afirmar que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo 1º) e que estes direitos pertencem a “toda pessoa, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição” (artigo 2º).
Esta proclamação destaca os direitos que correspondem à pessoa humana como tal e, portanto, são logicamente e historicamente anteriores ao Estado. Assim, o Estado não concede esses direitos, mas simples e necessariamente tem que reconhecê-los. Estes direitos são inalienáveis porque correspondem às condições básicas que permitem a realização do indivíduo na sociedade ou uma sociedade formada por indivíduos e, portanto, pertencem à mesma natureza humana.
No pensamento pontifício, o autêntico desenvolvimento da sociedade se baseia no respeito e na promoção dos direitos humanos. “Não seria verdadeiramente digno do homem um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações populares (…). Tanto os povos como as pessoas devem gozar de uma igualdade fundamental” (Sollicitudo Rei Socialis n.33).
Atualmente, a Igreja entende que a defesa dos direitos humanos como expressão da dignidade inalienável de cada ser humano é parte essencial de sua missão evangelizadora. De fato, os bispos latino-americanos proclamaram solenemente:
sentimo-nos urgidos a cumprir, por todos os meios, o que pode ser o imperativo original desta hora de Deus, em nosso Continente: uma audaciosa profissão de cristianismo e uma promoção eficiente da dignidade humana e de seus fundamentos divinos, precisamente entre os que mais necessitam, ou porque a desprezam ou sobretudo porque, sofrendo este desprezo, buscam – talvez às cegas – a liberdade dos filhos de Deus e o advento do homem novo em Jesus Cristo (Puebla n.320).
 A responsabilidade de uma reflexão sobre os direitos humanos dos esquecidos da história é crucial para que este discurso tenha a legitimidade de uma ética universal, uma vez que de outra forma o horizonte dos direitos humanos só é aplicável para alguns na sociedade.
7 Uma releitura da opção pelos pobres
A preocupação com os pobres e explorados sociais é uma das raízes mais profundas da moral social. A causa dos marginalizados confirma a missão e serviço da Igreja como prova de sua fidelidade a Cristo, para ser verdadeiramente a Igreja dos pobres (Laborem Exercens n.8). O papa Francisco proclama uma “Igreja pobre para os pobres” (Evangelii Gaudium n.198), porque “para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica [...] entendida como uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (Evangelii Gaudium n.199).
A visão cristã particular, que sustenta e ilumina os direitos e deveres humanos, encontra na opção pelos pobres sua verificação de radical autenticidade (Teologia da Libertação). A finalidade da opção pelos pobres é a sua personalização na sociedade porque consiste principalmente em um relacionamento, uma aliança, um jogar-se a sorte com eles. Esta aliança com os perdedores da história (e também as suas vítimas) é, de certa forma, perder a própria vida. Ao pobre o salva de sua carência e aquele que opta é libertado da sua alienação. O que salva é a transcendência implicada na relação: sair para fora de si mesmo e respeitosamente chegar ao outro, e, nesta dupla transcendência, a transcendência maior de deixar agir o Espírito, de reconhecer Jesus no pobre, e de fazer o plano do Pai.
Esta opção não é diferente daquela pela humanidade, mas consiste precisamente no caminho concreto para torná-la eficaz. Deus, em Jesus, estabelece uma aliança com toda a humanidade e, em primeiro lugar, com os pobres, porque neles não é reconhecida essa humanidade, por falta do que a cultura atual considera valioso e digno de ser humano. Assim, optando por aqueles que de acordo com esse paradigma dominante humano não têm valor, Deus deixa claro que a sua escolha é pela  humanidade e que esta condição é inerente a cada ser humano. “Os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho” (Evangelii Gaudium n.48).
Deus, ao reconhecê-los (Mt 25, 31-46), mostra que ele não é o Deus dos sábios ou dos ricos ou poderosos, e sim o Deus dos seres humanos. Mas também proclama que o indivíduo não chega à categoria de pessoa humana pela posse desses atributos. Em outras palavras, como os pobres tendem a sentir-se não humanos ao introjetar a avaliação negativa da cultura dominante, Deus, quando opta por eles, certifica a condição humana e possibilita que a assumam.
O pobre que aceita essa relação com Deus não se sente excluído, mas reconhecido. Essa aceitação é a fonte da vida, porque lhe permite encarar a realidade e se relacionar com outros nela. Já não cabe a  resignação, porque a descoberta do respeito por si próprio se abre em direção ao outro e ao compromisso com a realidade.
Aquele de outro grupo social que opta pelos pobres ingressa em uma relação que significa dar-se. O dar-se pressupõe criar as condições de igualdade. É a lógica da encarnação: Jesus não se agarra à sua condição divina, mas se despoja de todos os privilégios  tornando-se semelhante aos seres humanos (Fil 2,6-7). Então, dar a si mesmo  também  inclui dar o que se tem. Por isso, Jesus fala àquele que quer segui-lo para vender tudo e se dar aos pobres (Mt 19,21). Esta opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (Documento de Aparecida: discurso inaugural, n.3).
A superação da pobreza, como uma expressão de respeito eficaz para toda e qualquer pessoa humana, exige um sujeito universal. O núcleo deste sujeito universal são os próprios pobres, mas os demais também são necessários para apoiar e facilitar esse processo. A integração do pobre na sociedade como um sujeito social é uma condição necessária, mas não suficiente, para superar a pobreza, porque também se precisa de uma aliança com os não pobres, para que optem por eles. Para que “entre vocês não haja pobre” (Dt 15,4)!
Esta opção implica um redimensionamento da existência, pessoal e social, daqueles de outros grupos sociais que a assumem. Por isso, a dinâmica da opção pelos pobres tende à criação de uma cultura alternativa. Assim, a opção pelos pobres,  que começa como uma maneira de sair de si mesmo para afirmar o outro que é negado,  que começa vivendo-se como perda e sacrifício realizado como correspondência à fé em Deus que funda a própria vida,  torna-se progressivamente uma oportunidade não só de humanização radical, mas também de progresso enquanto ser cultural e até mesmo de valorização profissional.
Para superar a pobreza, e afirmar a dignidade do pobre, é preciso redimensionar o que existe para dar um lugar aos pobres na sociedade. Dar lugar aos pobres significa um ajuste estrutural tão profundo que equivale a configurar uma nova figura histórica; significa renunciar a  muitos elementos do atual sistema de bem-estar; renunciar, em primeiro lugar, a esse consumismo frenético e refrear a sede ilimitada de riqueza e poder. Na verdade,
enquanto não se elimine a exclusão e a desigualdade  dentro da sociedade e entre os diferentes povos, será impossível  erradicar a violência (…). Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças de ordem ou serviços de inteligência que possam garantir a tranquilidade indefinidamente. Isso não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta dos que são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto em sua raiz. (…) Se cada ação tem consequências, uma mal imerso nas estruturas de uma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar por um futuro melhor. (Evangelii Gaudium n.59).
A fundamentação deste sentido vital é o reconhecimento real do outro no ato de reconhecer-se  a si mesmo (filho de Deus e irmão de todos). Mas o reconhecimento positivo dos pobres – o que é feito tanto nas relações estruturais como nas relações pessoais – provoca uma transformação tão profunda  na própria vida, e é uma novidade tão radical na figura histórica vigente, que não pode ser realizada se não se abrem horizontes muito motivadores: sem um coração de carne (cf. Oséias 6,6), nunca haverá justiça, nem, por conseguinte, será possível a vida humana na terra. Isto é o que está em jogo na opção pelos pobres. Portanto, de acordo com o papa Francisco, “ninguém deve dizer que está longe dos pobres porque suas escolhas de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos meios acadêmicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais (…) ninguém pode sentir-se dispensado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (Evangelii Gaudium n.201). Só haverá paz no mundo quando se fizer justiça para os pobres (Populorum progressio n.76). Justiça e paz se abraçarão! (Sl 85).
Tony Mifsud Buttigieg SJ. Universidad Alberto Hurtado, Chile. Texto original em espanhol.
 8 Referências Bibliográficas
Não foi possível optar apenas por uma referência bibliográfica destes textos pontifícios da DSI. Assim, a lista já está no início do texto. São documentos de domínio universal. Todos estão disponíveis na Internet, bem como nas várias versões das editoras espalhadas por todo o continente latino-americano.
Para saber mais
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CALLEJA, José Ignacio. Moral Social Samaritana I – Fundamentos e noções de ética econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2006.
_______. Moral Social Samaritana II – Fundamentos e noções de ética política cristã. São Paulo: Paulinas, 2009.
BRACKLEY, Dean. Ética social y ética de la vida según el pensamiento del papa Benedicto XVI. Revista Agustiniana, v.54, n.164/165. p.369-395.
CAMACHO LARANA, Ildefonso. Doutrina social da Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Loyola, 1995.
CASTILLO GUERRA, Jorge. Teología de la migración: movilidad humana y transformaciones teológicas. Theologica Xaveriana, v.63, n.176, jul/dez 2013. p.367-401.
CONSELHO PONTIFÍCIO DE JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.
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IBANEZ, Franklin. Repensar la justicia desde la ecologia. Miscelánea Comillas, v.70 n.137, 2012. p.357-372.
KAMMER, Fred. Fé-Justiça em ação: uma introdução ao pensamento social católico. São Paulo: Loyola, 2009.
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MIFSUD, Antony. Moral de Discernimiento. Tomo IV. Santiago: San Pablo, 2003.
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ZAMAGNI, Stefano. Por una economía del bien común. Madrid: Ciudad Nueva, 2012

A Relação íntima entre fé e teologia.

RELAÇÃO ÍNTIMA ENTRE FÉ E TEOLOGIA

Podemos dizer que existe, entre a fé e a teologia, uma relação interna ou orgânica, e não uma relação meramente exterior ou mecânica. Portanto, percebe-se a continuidade vital entre essas duas realidades, e não podemos reduzi-la a uma mera justaposição.
          Poderíamos aqui usar muitas metáforas. Assim, a fé é para a teologia:
         
          - como a seiva para a árvore;
          - como a fonte para o rio;
          - como o fermento para o pão;
          - como a alma para o corpo;
          - como o punho fechado para a mão espalmada.

          A teologia é a fé mesma que se articula, a partir de dentro, em discurso racional. Este é o desdobramento teórico da fé. É seu desabrochamento intelectual. Teologia é fides in statu scientiae ( a fé em estado de ciência). É o pathos (amor paixão) que toma a forma do logos, a experiência que se faz razão. É a sabedoria no modo de saber.

          A teologia não acrescenta materialmente um pingo de luz à fé. Desenvolve apenas seu conteúdo material. Desdobra suas virtualidades latentes. É a ratio estendendo o intellectus: a razão explanando a intuição. Portanto, a fé é como a enteléquia da teologia, isto é, sua forma dinâmica interna. É seu conatus, sua alma viva e inquieta. Eis o que diz Clemente de Alexandria (ca. 150), diretor do primeiro instituto de teologia, o Didaskalion:

         “A fé é, por assim dizer, um conhecimento elementar e concentrado das coisas necessárias. A gnose (=conhecimento teológico), por sua vez, é a demonstração firme e segura do que se recebe na fé. Ela se edifica sobre a fé, por meio do ensinamento do Senhor, e conduz a uma indefectível posse intelectual”

          Como podemos ver, a teologia como discurso se distingue do discurso da fé, tal qual a confissão. Dá-se entre as duas certa ruptura – uma ruptura no nível da forma, especificamente da linguagem. A teologia é mutável, diversificada, enquanto a fé tem um caráter absoluto, definitivo.
          Isso tudo é verdade no plano da forma. Contudo, no do conteúdo, há profunda continuidade. A substância viva da teologia é a própria fé. A teologia não diz outra coisa que a fé, só o diz de outro modo. Non novum sed nove: não diz coisas novas, mas diz as mesmas coisas perenes da fé, de modo diferente.

          Por isso tinha razão Tertuliano ao dizer:

         “Nós não temos curiosidade além de Jesus Cristo. Nem temos necessidade de investigar além do Evangelho. Quando cremos, não sentimos falta de outras crenças, pois a primeira coisa que cremos é que não há outra coisa para crer”

S. João da Cruz afirma o mesmo em outros termos:

“Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua única Palavra – e não há outra -, (Deus) disse-nos tudo de uma vez nessa Palavra e nada mias tem a dizer.”

          A fé im-plica dentro de si a teologia; e a teologia ex-plica, como que para fora, a fé recolhida em si mesma. Na fé encontramos uma teologia implícita e na teologia, uma fé explícita. As razões teológicas se relacionam com a fé não ao modo da “substituição” ou da “diminuição”, mas ao modo da “adição”

A Perspectiva de Paulo Sobre a Ceia do Senhor


No contexto dos debates contemporâneos sobre a teologia sacramental, a passagem de 1 Coríntios 11.17-34 tem ocupado um espaço decisivo para a fundamentação teológica do tema eucarístico. Este ensaio busca apresentar uma leitura exegética e confessionalmente orientada da passagem de 1Co 11.17-34 a fim de demonstrar as implicações da teologia paulina da eucaristia para a Igreja cristã, mantendo efetivamente, um diálogo crítico tanto com o legado da teologia reformada do sacramento, quanto às contribuições contemporâneas que surgiram no movimento neoliberal da teologia da Esperança e seus ecos entre os teólogos latino-americanos – especificamente na hermenêutica contextual. 

Este ensaio leva em conta que os debates suscitados no decorrer dos séculos, sobretudo na Idade Média, acerca da teologia eucarística, são um forte indício da importância que a Igreja concedeu aos estudos sobre a Ceia do Senhor. Como herdeiros dos erários da teologia reformada é prudente perguntarmos pela validade e relevância dos estudos eucarísticos reformados em nossos dias, não apenas para mapear a contribuição de Calvino (que foi, e continua sendo importante), mas pela própria reflexão eucarística herdada nos credos e nas confissões reformadas, especialmente na relação com o texto de 1 Coríntios 11.17-34. Apesar de velha, a teologia reformada mantém sua pertinência no tratamento bíblico da mesa do Senhor.

A teologia eucarística segue fecundando estudos teológicos hodiernos. Além dos temas tradicionais, tanto na teologia do século XX, como em estudos bíblicos contemporâneos, surgiram novas luzes para a compreensão da mesa do Senhor. Temas como: a dimensão escatológica da Ceia; as implicações da Ceia como sacramento da comunidade messiânica, o lugar da criança na Ceia do Senhor, o significado cristológico da mesa eucarística, além do desafio da mesa do Senhor para aproximação ecumênica das religiões cristãs – e até não cristãs, em alguns casos – são desenvolvidos e aplicados ao contexto da igreja. De certa forma, a teologia latino-americana acompanhou essas ênfases contemporâneas buscando aplicá-las no contexto brasileiro de injustiça social. Tudo isto apenas demonstra que “os sacramentos jamais foram algo de importância puramente teórica para o cristianismo. Desde os primórdios tiveram importância decisiva para a vida e a adoração cristãs. Isto é válido especialmente no caso da eucaristia.”1 

1. As implicações da celebração ilícita da ceia do Senhor
Uma característica marcante da primeira carta de Paulo aos Coríntios é a ênfase na resolução de tensões entre a doutrina e a prática cristã. Existe uma abundância de exemplos sobre comportamentos e doutrinas que Paulo precisou corrigir através desta carta. Além de problemas morais, relacionais e doutrinários, a comunidade cristã em Corinto também pecava ao reunir-se em torno da ceia do Senhor de forma abusiva. Sabedor desses fatos, com amor e autoridade, Paulo dirigiu uma exortação à igreja de Corinto, a fim de corrigir os abusos praticados diante da mesa do Senhor. 

Os versos 17-22 apresentam a problemática que afetava os coríntios quanto à prática da Ceia do Senhor. Deve-se considerar que o apóstolo não abordou o problema da ceia entre os coríntios de uma forma meramente descritiva. Ele não queria apenas demonstrar conhecimento dos fatos ilícitos em torno da mesa do Senhor, mas elencar, com vistas à exortação, as implicações negativas da celebração inadequada da Ceia do Senhor. Olhar para esse trecho focalizando não apenas o erro litúrgico dos coríntios, mas as implicações que decorriam da distorção da ceia do Senhor, é fundamental para entendermos os riscos que a comunidade cristã assumia, quando ignorava o ensino autorizado sobre a Ceia do Senhor. 

1.1 Prejuízo para a igreja
Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor, e sim para pior (1Co 11.17).

Os coríntios já tinham se tornado dignos de elogios porque as tradições que foram entregues pelo apóstolo estavam sendo cumpridas (11.2). Ou seja, havia uma base de ensino apostólico autoritativo, que servia como critério indicar o caminho certo e errado para os cristãos primitivos. Contudo, nesta exortação, o apóstolo afirma claramente que não havia razões para elogiar a atitude dos coríntios, especificamente quando eles se reuniam para celebrar a ceia do Senhor. 

Paulo afirmou que os coríntios estavam se reunindo “não para o melhor, mas para o pior” (v.17.) O apóstolo colocou dois termos gregos em contraste: a palavra “krei/tton”, que expressa o sentido de algo “mais preferível, mais vantajoso, melhor”, enquanto que o termo “h-tton” indica o sentido de algo “inferior, mais fraco, pior”.2 Com o estabelecimento deste contraste, fica evidente que a intenção do apóstolo era apontar para o caráter abençoador do culto de Deus, e de forma mais específica, do sacramento da ceia. Ao mesmo tempo, ele tencionava trazer à lume o seguinte fato: todas as vezes que o culto, e principalmente o sacramento da ceia era profanado, os cristãos da igreja de corinto não se reuniam para serem abençoados por Deus, antes, eles se reuniram em torno do pior – para a derrota deles. “Em vez de a comunhão ser um ato eminentemente edificante, estava tendo um efeito dilacerante.”3
  
Portanto, Paulo pressupõe que as pessoas devem se reunir no culto para o melhor e não para o pior. Contudo, quando a ceia não é corretamente celebrada, o povo reúne-se para a derrota, demonstrando assim que a celebração ilícita da ceia do Senhor implica em prejuízo para a saúde espiritual da Igreja.

1.2  Divisões na Igreja
Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio (1Co 11.18).

Outra razão levantada por Paulo para não elogiar os coríntios era a divisão (sci,smata). Quando os cristãos em Corinto se reuniam em culto, era uma comunidade dividida que se ajuntava. Paulo tomou conhecimento dos fatos, possivelmente, via relatório de outros membros da comunidade. Cautelosamente, o apóstolo afirma crer em parte no que foi denunciado. Certamente Paulo falou dessa maneira, porque ele já tinha conhecimento de outras formas de divisão na igreja (ver: 1Co 1.11-13).

Ao dizer que os coríntios se reuniam como Igreja (evkklhsi,a|), o apóstolo indica que eles estavam reunidos como povo de Deus em culto. Na perspectiva de Paulo a “evkklhsi,a|” é o termo para descrever o povo de Deus que vive no contexto de uma nova aliança. Por isso Kistemaker afirma com propriedade que o termo igreja “deve ser interpretado no sentido do corpo de Cristo em cultos realizados em vários lugares.”4 
 
Pode-se dizer que a comunidade cristã em Corinto já havia experimentado divisões, mas na presente conjuntura, Paulo chama a atenção para a divisão que implicava em graves distorções do sentido da Ceia do Senhor. Os membros da Igreja de Corinto não guardaram corretamente a tradição sobre a Ceia do Senhor que fora entregue, e por isso a Igreja estava dividida. Sendo assim, ao referir-se às divisões no meio da igreja, o apóstolo estava focalizando não apenas a divisão em si, o que já era um fato lamentável, mas como a divisão gestava implicações negativas – sobretudo, a desobediência em relações a tradição apostólica sobre a Ceia do Senhor. 

1.3 Contraste entre o falso e o verdadeiro cristianismo
Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio (1Co 11.19)  

O uso errado da Ceia do Senhor, retroalimentado pelas divisões (ai`re,seij) na igreja, implicava na manifestação do contraste entre o verdadeiro e o falso cristianismo. Paulo está dizendo que os partidos, serviam de alguma forma, para revelar quem eram os genuínos cristãos. O apóstolo chega a esta dedução de uma forma lógica. O ponto é o seguinte: uma vez que os coríntios, através das divisões e dos partidos, não se conformavam com os limites da tradição autoritativa sobre a Ceia, eles assumiram, por consequência, uma falsa ceia, e uma falsa comunhão. Neste ponto, o comentário de Calvino é pertinente quando ele diz:

Tomo cisma e heresia aqui como sendo uma questão de posição em que um vai além do outro. Assim, o cisma será sempre encontrado onde estão presentes animosidades secretas, onde está ausente aquela harmonia que deve haver entre crentes, ou onde interesses conflitantes impõe sua presença; onde cada um pensa nos próprios meios de assegurar seus direitos, não acalentado o mínimo de interesse no que outros dizem ou fazem.5 
Isto posto numa relação de contraste, o verdadeiro cristianismo se expressava sempre que as celebrações da Ceia ocorriam dentro dos limites da tradição que foi entregue. Por outro lado, o falso cristianismo era manifesto na quebra da tradição evangélica sobre a Ceia. Nesse sentido, as divisões e facções dos coríntios diante da mesa do Senhor se configuram como desobediência no tocante aos limites estabelecidos pelo Evangelho. Os coríntios conheciam a tradição autorizada da Ceia, e mesmo assim, deliberadamente celebravam a ceia deles.

1.4 Obliteração da ceia
Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis (1Co 11.20).
   
No dizer do apóstolo Paulo, sempre que os coríntios se reuniam divididos em torno da mesa do Senhor, eles anulavam a celebração da Ceia do Senhor. Uma vez que a tradição sobre a Ceia do Senhor foi rompida, a implicação imediata de tudo isso em termos do culto era o falseamento (ou ausência) da Ceia do Senhor. Pode-se pensar desta forma por causa do uso que Paulo faz da conjunção inferencial “ou=n”. Essa conjunção “expressa simples sequência ou consequência”. Isto posto, o que Paulo estava afirmando era que a comunidade dividida podia até estar junta no mesmo lugar, mas nun6ca esteve celebrando a Ceia do Senhor – ela se alegrava em outras coisas, mas definitivamente não prestava o culto de Deus. 

De acordo com a tradição, acredita-se que os cristãos de Corinto realizavam uma grande refeição comunitária denominada de ágape. Alguns estudiosos são da opinião que o ágape precedia a mesa do Senhor.7  Outros entendem que quando Paulo fala da mesa do Senhor, ele pensava em uma refeição apenas. Desta forma, “a prática que ele reprova não é a de uma refeição separada (precedente) da Ceia do Senhor, mas o abuso de uma única refeição (“a Ceia do Senhor”).8 Contudo, independente destas reconstruções históricas, nada altera o juízo negativo que Paulo fez das celebrações eucarísticas da igreja de Corinto. 

Para o apóstolo, uma comunidade dividida podia até banquetear-se, mas não se alimentaria do Senhor. Essa era a situação da igreja de corinto. Eles se reuniram para comer e beber, mas a Ceia do Senhor não foi servida, porque os limites do ensino apostólico foram postos de lado. Na perspectiva de Paulo, qualquer celebração eucarística que contradiga os limites da tradição apostólica é falsa e ilusória. Por isso, Prior tem razão quando diz:

Não é de admirar que Paulo não pudesse chamar as reuniões da igreja coríntia de “Ceia do Senhor”: eles não eram submetidas à autoridade do Senhor; mal havia consciência da presença dele, e muito pouco se recordava da morte do Senhor. Como uma reunião dessas poderia ser chamada de “Ceia do Senhor”?9 

1.5 Demonstração de egoísmo
Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague (1 Co 11.21)

Nesse ponto, Paulo descreve a superfície do problema, cujo estofo era a divisão. Os coríntios envolvidos com a divisão da igreja estavam tomando a Ceia antes, o que resultava em fome e embriaguez diante da mesa do Senhor. 

Esse verso tem ocupado um lugar importante na literatura exegética e dogmática sobre a mesa do Senhor. Muitos comentaristas entendem que o conceito de indignidade diante da eucaristia, tem relação direta com a demonstração de egoísmo que os coríntios manifestaram com outros membros. Assim, deduz-se que o conceito de indignidade era muito mais a atitude egoísta dos ricos, que um impedimento intelectual ou uma insubmissão catequética. Dentro desta linha de raciocínio, Fernando Bortolleto afirma que a intenção do apóstolo Paulo era resolver um problema específico na comunidade de Corinto, e não oferecer um ensino geral sobre a celebração da Ceia do Senhor. Para ele, o conceito de indignidade estava diretamente relacionado com a postura dos ricos humilhando os pobres da comunidade no momento em que eles (os mais ricos) comiam antecipadamente a ceia. Para Bortolleto, à medida que esse contexto é delimitado, pode-se perceber o que “significa participar dignamente.”10
De fato, a noção de que havia uma tensão entre ricos e pobres na comunidade cristã em Corinto é deduzível do texto bíblico, e também conta com o apoio da pesquisa histórica. Horsley observou que “em meio a todas as pompas oferecidas pela elite cada vez mais munificente e honrada, os coríntios tinham uma reputação de pessoas incautas e carentes em termos de manejo social, em parte porque os abastados exploravam em demasia os pobres.”11  Essa falta de manejo, culturalmente erigida na vivência social dos coríntios, de alguma forma, despontava seus ecos quando eles reuniam na Ceia. Isto posto, uma reconstrução do contexto social da igreja de Corinto pode ser compatível, em termos, com o seguinte cenário: 

Os membros mais ricos da igreja dão acolhida às reuniões e assembleias e, provavelmente, fornecem alimento para todos. Bem de acordo com as expectativas em muitas associações antigas e com a prática muitas vezes adotada em banquetes quando os dependentes de um patrono eram convidados, os hospedeiros ofereciam quantidade maior e qualidade melhor de alimento e bebida aos eram iguais a ele em status social, do que os participantes de status inferior.12  

Embora a dinâmica da indignidade tenha tido algo a ver com o tratamento egoístico dos coríntios em relação aos outros membros pobres da Igreja, isto, contudo, não anula o fato que a tradição sobre a Ceia do Senhor era um princípio geral que os coríntios egoístas estavam colocando de lado. Não se trata, nem de longe, de negar o problema sociológico descrito, e amplamente demonstrado pelo texto, bem como pela reconstrução histórica – ainda que nesse segundo ponto a evidência seja secundária. Trate-se antes de não reduzir a questão do conflito entre pobres e ricos como a única forma de indignidade possível, frente ao ensino geral do Evangelho sobre a Ceia do Senhor. 

Deve-se considerar que “nesta carta, portanto, Paulo convoca os coríntios a voltar aos elementos fundamentais do evangelho, como meio de incentivá-los a viver em harmonia.”13  Tendo isto em mente, faz-se mais justiça ao texto bíblico quando considera-se que, na presente exortação, Paulo resgata a tradição da última ceia, bem como as implicações para a postura correta diante da Ceia, que decorrem dessa tradição. 

Por vezes, pode-se verificar Paulo recorrendo a uma tradição fixa, ou ao texto bíblico, como princípio geral para resolver um problema específico.  Isto pode ser visto na distorção com respeito à ressurreição de Jesus (1 Co 15.1-3), ou mesmo na questão da mulher exercer o ofício de presbítero na comunidade (1 Tm 2.12-15).

Portanto, reconhecemos que o problema social entre os cristãos implicava num abuso egoístico da mesa do Senhor. Nesse caso, o egoísmo socialmente manifesto era a superfície de um problema cujo estofo manifestava uma distorção do ensino apostólico sobre a Ceia do Senhor.  O tratamento injusto para com os pobres, por parte dos membros mais abastados da comunidade era uma manifestação tangível da rebeldia do coração em relação à lei moral de Deus e ao sentido da Ceia ordenado por Jesus Cristo. Embora Paulo não use o termo “pecado” ao tratar dos abusos perpetrados pelos coríntios facciosos, tanto a disposição de alma, como o comportamento indigno, no dizer dele acarretam culpa. Por causa da indignidade, a comunidade egoísta “provocava seu castigo.”14  De uma forma ou de outra, os coríntios egoístas estavam quebrando o que foi ordenado por Deus.

1.6 Desprezo e humilhação pela igreja de Deus
Não tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? (1 Co 11.22a).

Na estrutura literária de uma repreensão às perguntas retóricas tem como finalidade “incitar o outro à refletir sobre o comportamento negativo.”15 Usando, pois, o expediente das perguntas retóricas, o apóstolo confronta os coríntios que estavam deturpando o significado da mesa do Senhor, questionando se eles não tinham suas próprias casas para comer e beber.

Essa argumentação retórica aponta para um fato que não pode ser ignorado sem prejuízo para toda a interpretação da passagem. O fato é o seguinte: os coríntios não podiam colocar a mesa do Senhor no mesmo pé de igualdade com as refeições que eles realizavam nos lares. Paulo não está dizendo que eles deviam cultivar um tratamento desigual dentro das casas deles, enquanto na igreja eles deveriam teatralizar igualdade. Tal conselho seria hipocrisia, tendo em vista que em todas as situações a glória de Deus deveria ser buscada (1 Co 10.31). Considerando que na conclusão da exortação, Paulo desenvolverá o argumento de que eles devem comer nos seus próprios lares (1 Co 11.33-34a), fica evidente que o apóstolo tinha em mente que a Ceia do Senhor não podia ser tratada como as comensalidades cotidianas – que também deviam glorificar a Deus. 

No outro questionamento, Paulo levanta a questão do desprezo e da humilhação dentro da igreja. A celebração errada da Ceia implica no desprezo que os egoístas tinham para com a igreja de Deus. Ao desprezar o outro irmão eles estavam desvalendo aquele que foi acolhido na comunhão dos santos. O termo grego “katafronei/te”, usado por Paulo, tem a ver com a ideia de “desdenhar” e “tratar com desprezo”.16 Com isso, Paulo queria comunicar que a mesa do Senhor é um lugar de comunhão e nuncade desprezo daqueles que são irmãos em Cristo e membros da nova aliança. Os coríntios tinham que refletir e mudar essa atitude vergonhosa de desprezo para com outros membros na comunhão dos santos.

O egoísmo dos coríntios também redundava em humilhação dos irmãos que nada tinham para a ocasião da ceia. A atitude egoísta deles fazia os outros irmãos sofrerem vergonha. Os coríntios egoístas deviam refletir e deixar de lado a humilhação dos pobres, pois em torno de Cristo todos são um (1Co 10.17; Gl 3.28). 

1.7 Censura em vez de elogio
Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto, certamente, não vos louvo (1 Co 11.22b). 

 
Paulo retomou o mesmo assunto que colocou no v.17 a fim de pôr em relevo o comportamento censurável dos coríntios.  Nesse ponto, parece evidente que o apóstolo Paulo lançou mão do estilo retórico dos discursos epidíticos cuja principal intenção era a declaração de “valores comuns, elogiando ou censurando para influenciar uma avaliação presente.” Em termos gerais, “a retórica epitidíca, portanto, procura usar valores da honra e da vergonha indagando a respeito da louvabilidade das ações de alguém.”  Dito isto, a intenção de Paulo era deixar claro que, a atitude dos coríntios, dividindo a igreja, reunindo-se de forma egoística diante da mesa do Senhor, desprezando e humilhando os irmãos pobres da comunidade, jamais poderia ser considerada uma atitude digna de louvor. 
Eles não podiam ser elogiados como foram em outros momentos quando guardaram as tradições. Porém, como os valores gerais do evangelho estavam sendo escamoteados, e sobretudo a tradição da última ceia do Senhor estava sendo desafiada, no somatório desses fatores pesados na balança pendiam para a censura, não para o louvor. 

Aplicação
Da mesma forma que Paulo dirigiu uma reprovação aos cristãos da comunidade em Corinto porque eles não consideraram a tradição autoritativa sobre a Ceia do Senhor, a mesma reprovação se dirige aos cristãos de todas as épocas, sempre que eles se encontrarem assumindo uma ceia autônoma, que se guia por padrões alheios aos que foram ordenados por Cristo. 

A celebração indevida da mesa do Senhor possui implicações gravíssimas para a saúde da igreja cristã.  O povo de Deus reunido em culto não pode esperar bênção quando as ordenanças do Senhor para o culto são postas de lado. Não existe culto da vitória quando a igreja se reúne em torno de divisões, facções, egoísmo, desprezo do outro irmão e humilhação dos despossuídos. Quando a igreja se reúne colocando de lado os padrões divinos para o culto, ela se ajunta para sua própria derrota.

2. O ensino de Jesus sobre a ceia

Após apresentar a raiz, e as implicações do problema dos coríntios, diante da mesa do Senhor, o apóstolo Paulo trouxe novamente à memória da igreja as palavras de Jesus na última ceia com os seus discípulos.  A tradição que o apóstolo reafirmou aos coríntios, encontra-se nas seguintes passagens paralelas: Mateus 26.26-29, Marcos 14.22-25 e Lucas 22.15-20. A diversidade e a unidade das passagens sinóticas, comparadas com o relato de Paulo demonstram grande harmonia, revelando assim que a igreja possuía um norte seguro para reunir-se da maneira correta diante da mesa do Senhor. O fato de Paulo trazer outra vez a tradição da última ceia de Jesus com seus discípulos, para corrigir o desvio cúltico dos coríntios, revela que o apóstolo buscou apoiar sua exortação do ensino geral do Evangelho de Cristo.

Deve-se ainda observar que Paulo procurou enfatizar as fronteiras sobre o uso adequado da Ceia dentro dos limites ordenados por Cristo. Paulo teve todo o cuidado para ensinar apenas o que Cristo ordenou. Por isso, assim como recebeu de Cristo, ele retransmitiu o ensino sobre a Ceia do Senhor com fidelidade. Os estudiosos debatem sobre como Paulo recebeu essa tradição, se por meio de uma revelação ou por meio do ensino oral através da tradição. O segundo ponto é preferível, ainda que não seja possível fechar a questão sobre o processo de transmissão da tradição de Paulo que repassou aos coríntios. 


2.1 Jesus instituiu a ceia entre os seus discípulos
Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei (1 Co 11.23a)

O significado, o mandamento e o paradigma litúrgico da Ceia do Senhor vieram do próprio Jesus Cristo. Apesar de Paulo afirmar claramente que recebeu do Senhor a tradição da última Ceia, alguns estudiosos liberais compreenderam a tradição da ceia do Senhor como uma emolduração literária resultante de uma adaptação dos rituais mistéricos gregos. Essa posição é altamente questionável, mas ainda assim é importante mencioná-la. O estudioso luterano Rudolf Bultmann defendeu essa posição com os seguintes termos:

No cristianismo helenista, assim como ocorreu com o batismo, também a ceia do Senhor foi entendida como sacramento nos termos nos mistérios. (…) Nos mistérios, porém, ele desempenha um papel especial; nele, trata-se da comunhão com um divindade morta e ressuscitada, em cujo destino o celebrante recebe parte por meio da refeição sacramental.18  

No entendimento de Bultmann, é provável que o evento da última ceia até tivesse alguma relação com o Jesus histórico, mas ainda assim, a forma literária do escrito paulino encerrou o dito da ceia numa moldura literária mistérica. Sendo assim, para ele, a ceia do Senhor provavelmente era a comprovação que o “laço da comunhão no sentido da tradição do judaísmo e do próprio Jesus histórico, tivessem sido transformadas em celebrações sacramentais no cristianismo helenista.” 19
Apesar dos supostos pontos de contato que relacionam a Ceia do Senhor com os cultos mistéricos, deve-se reconhecer a fragilidade desta posição antes de tudo porque “nossa falta de conhecimento das práticas secretas dos mistérios torna perigoso traçar linhas de conexão e dependência.”20  Além disso, a clareza da afirmação de Paulo não deixa dúvidas que ele recebeu do Senhor a tradição sobre a ceia. 

A terminologia tradicional solene que ele emprega nesse caso não apenas indica que ele se associa a uma versão existente das palavras da instituição, como também marca esses termos como sendo de tradição apostólica e revestidos de autoridade – conforme as palavras (recebidas) “do Senhor” destacam deliberadamente – trazem algum esclarecimento sobre o caráter da revelação dessa tradição.”21 
Portanto, ao reafirmar a tradição da última Ceia de Jesus, o apóstolo Paulo estava resgatando os limites que definiam o correto uso da Ceia, do uso abusivo dela. A mesa do Senhor é regida pela instrução do próprio Cristo. O problema dos coríntios tinha a ver com a adoção de atitudes que não mais refletiam o significado do ensino geral sobre a ceia. Ao afirmar que a tradição foi entregue aos coríntios, Paulo deixa claro que os coríntios conheciam os limites impostos pelo ensino do Senhor. 

2.2 Jesus estabeleceu o significado da ceia
Que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; 24 e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. 25 Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim (1 Co 11.23b-35)

A prática abusiva dos coríntios diante da mesa do Senhor não era compatível com o significado da ceia do Senhor entregue pelo próprio Jesus. Mas a questão é: qual o significado da ceia do Senhor? Para chegarmos ao cerne do sentido da ceia é preciso considerar três coisas: 1) a natureza da refeição que Jesus compartilhou com os seus discípulos; 2) o significado do pão e do vinho dados por Jesus; 3) o comer e beber em memória de Jesus.

2.2.1 O significado da refeição

Quanto à natureza da refeição de Jesus com seus discípulos, de acordo com os relatos sinóticos, ela seguramente “tinha o caráter de celebração pascal.”22  Pode-se chegar a essa conclusão observando a introdução à narrativa da última ceia do Evangelho de Lucas, bem como a linguagem vicária, ou sacrificial, que é comum em todas as narrativas sinóticas e também no texto paulino. 

O Evangelho de Lucas não deixa dúvida que o contexto da última ceia de Jesus com seus discípulos transcorreu numa cerimônia pascal: 

“Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos.  E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus.” (Lc 22.14-16).
Deve-se notar, que além da linguagem sacrificial, que remete ao contexto da celebração pascal, o dito de Jesus também aponta para o significado escatológico justaposto que indica o cumprimento no reino de Deus. Esse ponto será elaborado no tratamento mais adiante na seção dos princípios para a correta participação da mesa do Senhor.
Além da evidência de Lucas acerca do contexto pascal da última ceia de Cristo com os seus discípulos, todos os sinóticos, bem como o texto paulino, registram a linguagem vicária da entrega que Jesus fez de si mesmo. Todas as narrativas concordam que Jesus entregou “a si mesmo” de maneira vicária:

Mateus 26.28Marcos 14.24Lucas 22.19-201 Co 11.24
“Porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados.”“Então, lhes disse: Isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos.”“E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós.”“e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.”


Logo, deve-se reconhecer que na última ceia de Jesus com os seus discípulos, ele se referiu a sua morte na cruz como uma morte sacrificial, ou seja, uma morte vicária para a remissão dos pecados “de vós” e “de muitos”. Como bem observou Joaquim Jeremias: “usando expressões próprias da língua sacrifical, Jesus apresentou a sua morte como morte substitutiva.”23
Dito isto, o entendimento que os cristãos primitivos tiveram, inclusive Paulo, era que a Ceia do Senhor significava uma celebração da nova aliança fundamentada na morte de Jesus em lugar do seu povo.  Pode-se chegar a essa conclusão considerando que,
Paulo já havia feito alusão ao pão asmo, referindo-se a Jesus como ‘nosso cordeiro da páscoa’ que foi sacrificado (…) e isso mostra que, para Paulo, as palavras ditas na Última Ceia significam que Jesus estava cumprindo o papel sacrificial do cordeiro no estabelecimento da nova aliança.24 
Este contexto sacrificial não pode ser desconsiderado para o entendimento da repreensão que Paulo direciona aos coríntios. A atitude divisória deles excluindo os pobres, deturpava o ensino geral do Evangelho sobre a mesa do Senhor. O pão e o vinho não tinham como objetivo promover embriaguez, desprezo e humilhação.
Jesus Cristo estabeleceu a Ceia para que os seus discípulos pudessem alegrar-se no perdão de Deus, com base no sacrifício que ele fez de si mesmo, de uma vez por todas. “A base da refeição sacrificial encontra-se no sacrifício: por causa de seu caráter expiatório, o sacrifício abre caminho para o comer e beber com um coração que se alegra no favor de Deus.”25  Nesse sentido, pode-se afirmar que a “ partilha do pão e do cálice constitui um evento em que a fé apreende o significado da pessoa e da obra de Cristo” , e na experiência negativa dos coríntios, o sentido sacrificial da morte de Jesus estava sendo escamoteado.

2.2.2 O significado do pão e do vinho

Na última ceia com os seus discípulos, Jesus Cristo deu significado ao pão e ao vinho e os relacionou com o seu corpo e o seu sangue. No decorrer dos séculos o pensamento cristão tem oferecido várias tentativas de compreensão do significado do pão e do vinho na instituição da Ceia do Senhor. A relação do pão e do vinho com o corpo e o sangue de Cristo é inconteste, mas a questão é: como se dá essa relação? Ela é realística? É simbólica? É metafórica? Ainda que em termos sintéticos, as principais interpretações sobre o significado da relação do corpo e do sangue de Jesus com o pão e vinho da ceia, são as seguintes:

Visão romanistaDe acordo com a Igreja Católica Romana, o sacramento da eucaristia possui caráter sacrificial de reapresentação de memória da morte de Cristo e aplicação do seu poder. Quem nega que a missa é um verdadeiro e real é considerado anátema. A Igreja Romana também defende o conceito de transubstanciação que em outras palavras significa que pão e vinho são transformados em sua essência, de tal forma que no sacramento estão contidos real e substancialmente o corpo e sangue de Jesus.27
Visão luteranaLutero rejeitava a ideia de missa como sacrifício em favor da igreja. Negava a doutrina da transubstanciação.  Contudo, para Lutero, quando Cristo disse “isto” [no caso o pão] “é o meu corpo”, ele não queria dizer que o pão significa seu corpo, mas antes é “meu corpo”.28 O próprio Lutero disse: “Para que haja verdadeiro corpo e verdadeiro sangue não é necessário que se transubstanciem o pão e o vinho. (…) A contrário, permanecendo ambos o que são, é que é dito com razão: este pão é meu corpo e este vinho meu sangue.”29 A noção luterana sobre a presença de Cristo na ceia é denominada de consubstanciação.
Visão zuinglianaZuínglio, assim como Lutero, rejeitava os dogmas da transubstanciação, bem como do sacrifício da missa. Também discordava da noção de Lutero sobre a presença de Cristo no sacramento. Para Zuínglio, Cristo “não estava corporalmente presente na eucaristia.”30 As palavras de Cristo na instituição da Ceia com os seus discípulos deveriam ser interpretada de maneira figurativa. Quando Cristo diz o pão “é” seu “corpo”, representa que o pão “significa” seu corpo. Nesse sentido a Ceia do Senhor era apenas uma comemoração. 31 O corpo de Cristo está no céu.
Visão calvinistaAssim como Lutero e Zuínglio, o reformador João Calvino acompanhava a rejeição quanto a caráter rememorativo do sacrifício da missa, bem como negava a doutrina da transubstanciação e da consubstanciação. Calvino entendia que a Ceia era um banquete espiritual onde Cristo prometeu ser o pão da vida para alimentar as almas dos cristãos. Calvino reconhecia a Ceia como um mistério onde pão e vinho eram os símbolos da nutrição invisível que a igreja participa, quando com fé, recebe o corpo e o sangue de Cristo. Para Calvino era preciso reconhecer a presença real de Cristo na Ceia sem com isso atar sua presença ao pão (transubstanciação) ou dentro do pão (consubstanciação luterana). No dizer de Calvino: “Se é verdade que o signo visível nos é dado para selar a doação da realidade invisível, então, uma vez aceito o símbolo de seu corpo, confiemos que o próprio corpo também é certamente nos é dado.”32
  
Para entendermos o sentido do pão e do vinho temos que continuar mantendo o foco no contexto sacrificial da última ceia de Jesus com os seus discípulos. Nesse sentido deve-se lembrar que na refeição pascal Jesus e os seus discípulos não estavam realizando o sacrifício requerido pela lei. A refeição que Jesus e os seus discípulos celebraram pressupunha que o sacrifício já havia sido feito e a vítima sacrifical já havia sido morta. Dito isto, toda a ambiência daquela mesa remetia à comunhão com Deus com base no sacrifício feito anteriormente.
Dentro do contexto sacrificial, Jesus tomou um pão e disse: “Isto é o meu corpo que será entregue por vós”. Em seguida tomou um cálice e disse: este cálice é a nova aliança no meu sangue derramado em favor de muitos.” Desta forma, o Senhor Jesus, inaugurou o sacramento da nova aliança. No dizer de Vos “é evidente que nosso Senhor representa seu sangue (morte) como a base e inauguração de um novo relacionamento religioso dos discípulos para com Deus.”33  Sendo assim, mantendo os olhos no contexto sacrificial da refeição de Jesus com os seus discípulos, tanto o pão como o vinho seriam os símbolos do seu sacrifício e não o sacrifício propriamente dito. Da mesma forma que a refeição pascal pressupunha o sacrifício de um cordeiro, os discípulos todas as vezes que comessem o pão e tomassem o cálice, deviam lembrar que o pão e o vinho, daquele momento em diante, simbolicamente representariam o sacrifício do próprio Cristo. Jesus não estava se sacrificando na ceia, mas instituindo os elementos visíveis que serviram como sinais do sacrifício absoluto que ele realizaria na cruz do calvário. Portanto, o contexto sacrifical da mesa de Cristo desta forma afasta a ideia de reapresentação sacrifical na eucaristia.
Entretanto, apenas a elucidação da comparação simbólica do corpo e do sangue de Cristo com o pão e o vinho, por si mesma, não faz justiça ao texto sagrado em sua totalidade. Além do uso específico que Cristo fez, é preciso considerar a promessa de que seu corpo seria comida e seu sangue como bebida. Neste ponto é importante considerar algumas notas do estudo criterioso desenvolvido pelo erudito reformado Herman Ridderbos. Ele insiste que na visão de Paulo: “comer, beber e a força derivada disso implicam uma analogia com a apropriação da virtude ou a ação do que ela representa, ou seja, seu corpo e seu sangue.”34  O argumento de Ridderbos leva em consideração a explicação que Paulo fez sobre a mesa do Senhor em 1 Co 10.16-21. Para o apóstolo, o alimento do povo de Deus é Cristo (1Co 10.4). Desta maneira, quando o povo de Deus se reúne para a ceia do Senhor deve ter a consciência que comer do pão e beber do vinho implica em receber Cristo para ter comunhão com ele.  Comentando essa passagem, Calvino diz: “sempre que vejam os símbolos instituídos pelo Senhor, convençam-se e tenham por certo que a verdade da coisa significada está presente.”35  Ou seja, embora haja elementos simbólicos, a força das palavras de Deus exigem da noção de comunhão, uma noção de presença real. Em outras palavras, isto quer dizer que,
ser participante da mesa do Senhor, referido por Paulo nesse contexto, bem como participar da mesa dos demônios, estabelece uma comunhão, dá acesso a uma realidade representada pelo pão, pelo vinho, por uma mesa, um alimento. Não há qualquer questão ou pensamento da transição de uma ‘substância’ para outra, mas a relação assim criada não é somente uma relação noética, mas também algo presente e real. É entrar em contato vivo com a realidade do que é representado pelos sinais externos.36
Tal visão do sacramento afasta a noção zuingliana de simples memorial, bem como a noção luterana de consubstanciação, tendo que a noção de comunhão com Cristo na mesa é tanto real como espiritual ( 1Co 12.13).
No dizer de Paulo, a mesa do Senhor também apontava para a unidade do povo de Deus (1 Co 10.17). Mesmo sendo a igreja do Senhor composta por “muitos” irmãos e irmãs, quando todos se reúnem para a comunhão com Cristo, o pão único representa que o povo de Deus é um só corpo. “Comer pão junto numa refeição liga os participantes e forma um vínculo de unidade.”37
Dito isto, a falha dos coríntios passava pela ignorância deliberada com respeito ao uso dos elementos. Por conta do egoísmo determinado, alguns dos membros da igreja em Corinto desconsideravam o significado simbólico da Ceia que apontava para a nova aliança com base no sangue de Cristo, bem como desconsideravam a própria promessa de Jesus no tocante a sua presença trazendo alimentação e nutrição para a alma. O egoísmo deles, e a divisão que dela decorria, produzia uma quebra de comunhão uns com os outros.
A ceia instituída por Cristo comunica uma realidade de comunhão tanto vertical como horizontal. Entretanto, os coríntios com suas posturas egoístas e facciosas anulavam a Ceia do Senhor. Sendo assim, é justo afirmar que Paulo não exortou duramente os coríntios apenas por um problema sociológico, mas pelo fato que o significado da Ceia estava sendo posto de lado pelos membros egoístas. Para Paulo, uma comunidade dividida não celebra a ceia do Senhor nos termos e nas formas que ele ordenou. Desta forma,
para os coríntios celebrarem de fato a ceia do Senhor, eles iam ter que levar mais a sério o que ela era na essência: a celebração da redenção operada na nova aliança e que foi possibilitada pela morte autossacrificial de Cristo por eles na cruz. Para reconhecê-la como tal, seria necessário haver uma mudança na maneira em que os cristãos coríntios estavam tratando uns aos outros.38
2.2.3 O significado da anamnese
A tradição da última ceia, que Paulo reafirmou aos coríntios, constitui uma mesa que é celebrada em memória de Jesus Cristo. Alguns intérpretes tendem a ver essa recordação como um tipo de rememoração daqueles que morrem. Em parte, parece ser esse o sentido que Strong relaciona em sua interpretação da memória de Cristo na ceia. Para ele, “como uma mãe determina aos filhos que se reúnam junto à sua sepultura e comemorem a sua morte, do mesmo modo Cristo determina que seu povo se reúna e se lembre Dele.” 39
A tradição que segue Zuínglio, interpreta a ceia do Senhor como um memorial onde o pão é partido e o vinho é distribuído para que se lembre de Jesus. Mas, em que sentido se dá essa memória? Será que a anamnese é o significado da ceia do Senhor? Como já foi analisado em passagens anteriores, a ceia do Senhor, através do pão e do vinho, simboliza e representa Cristo. Ao participarmos da mesa do Senhor, de alguma forma, mantemos comunhão com Ele. Não é possível fazer justiça à teologia de Paulo sobre a ceia deixando de lado esses pontos que demonstram a comunhão dos crentes com Cristo na eucaristia. Dito isto, a noção de simples memorial não comtempla o ensino de Jesus e de Paulo sobre a Ceia do Senhor.
Novamente faz-se necessário voltar ao contexto pascal da última ceia de Jesus com os seus discípulos, pois o sentido da anamnese da mesa do Senhor está ligado ao contexto sacrificial da última Ceia. Cristo é o cordeiro pascal (1 Co 5.9) que entregou sua vida como sacrifício vicário para a remissão dos pecados do seu povo. A morte de Cristo é o único caminho para a redenção. Desta forma, lembrar de Cristo na ceia é recordar do valor infinito de seu sacrifício. É trazer à memória que a única forma de estar diante de Deus é através do sangue de Cristo derramado para remissão dos pecados. Em termos sintéticos concordamos com Guthrie, quando ele diz:
Na liturgia da Páscoa judaica, o líder de cada família reconta a história dos eventos nacionais do passado para lembrar a cada participante de que ele tem uma continuidade com esses eventos. Algo semelhante pode estar em mente na ordenança cristã, obrigando aqueles que participam dela a se lembrarem da morte de Cristo não somente como um ato passado, mas como uma realidade presente.40
Os coríntios, por meio de suas divisões e egoísmos manifestos descartavam a memória da obra de sacrificial de Jesus.  Ao invés de comer a ceia do Senhor em seu contexto sacrificial, eles comiam a ceia deles, deixando de lado os termos e as formas ordenadas por Jesus.
Aplicação
Sempre que nos aproximamos da mesa do Senhor de maneira egoística, desprezando o outro irmão em Cristo e envergonhando os que nada tem, nos tornamos dignos de repreensão duras. Contudo, não olhemos apenas para o problema que se apresenta na superfície das nossas mesas. Devemos urgentemente perguntar pela raiz do problema. Somente assim veremos que a postura digna de repreensão diante da mesa do Senhor está diretamente ligada ao descaso quanto ao significado da mesa do Senhor explicitado no evangelho e reafirmado na teologia de Paulo. O problema dos coríntios era um conflito entre a doutrina e a prática.
A igreja de hoje também passa pelo mesmo problema, mas com um agravante: o descaso pela doutrina da Palavra de Deus. A ênfase da teologia do século XX, e da teologia contemporânea, em tratar a religião cristã como um encontro que se dá no paradoxo, trouxe em seu bojo, não apenas uma redefinição da proclamação cristã em termos existenciais (ou de baixo), mas uma atitude de desconfiança com a precisão dogmática em termos de formulação doutrinária confessional. Em termos práticos, onde a teologia contemporânea espraiou sua influência, via de regra, ou o sentido confessional foi relativizado ou foi totalmente reinterpretado em categorias existenciais, ou como se costuma dizer em solo latino-americano: foi interpretado no chão da nossa realidade.
Em nossos dias, mais do que nunca, precisamos reafirmar que a doutrina da Palavra de Deus precede, define e orienta a práxis da igreja. Dito isto, nosso grande desafio é a refirmar novamente o conteúdo doutrinário que Jesus instituiu na ceia com seus discípulos, que é o mesmo que Paulo aplicou à igreja de Corinto. Precisamos recuperar o significado sacrificial da Ceia do Senhor, para relembrando-o como sacramento da nova aliança. Precisamos ter comunhão pessoal com Cristo sem suprimir a verdade que “ele nos amou tanto que tomou sobre si a justiça divina para que pudéssemos ter livre passagem, para sempre.”41  Sem o reconhecimento dessas verdades, definitivamente não é a ceia do Senhor que comemos.
3. Os princípios da correta celebração da ceia do Senhor
Paulo nos versos 17-22 tratou das implicações negativas geradas pela celebração distorcida da mesa do Senhor. Depois de resgatar a tradição da última ceia do Senhor com os seus discípulos, nos versos 26-32 o apóstolo descreve os princípios que devem nortear a verdadeira celebração da ceia do Senhor (kuriako.n dei/pnon).  Nesse trecho, tanto a tradição sobre a última ceia de Jesus Cristo, quanto os princípios apostólicos acerca da correta ministração eucarística se entrelaçam, formando assim uma instrução de caráter normativo para a igreja cristã em todas as épocas.
3.1 Anúncio da morte de Jesus
“Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor” (1Co 11.26a)
Paulo indica que a correta ministração da Ceia exige a pregação acerca da morte do Senhor. Isto significa que todas as vezes que Igreja se reúne para celebrar a Ceia do Senhor ela deve testemunhar o caráter vicário da morte do Senhor. Assim como o anfitrião, nos termos da velha aliança, no banquete pascal, testemunhava a ação salvífica de Deus na história, o povo da nova aliança tinha que proclamar o significado da morte de Jesus. Em termo simples, “Paulo enfatiza que a celebração da Ceia do Senhor de fato ‘proclama’ todo o evangelho e oferece instrução e sustento durante a caminhada do já para o ainda não.”42
Em cada ceia a igreja é convocada a olhar para o passado, a fim de proclamar no presente, a base para o novo relacionamento com Deus através da morte de Jesus. Como bem expressa Ridderbos:
Esse versículo não se refere mais à tradição da Ceia, mas serve para conformar a admoestação anterior. Em concordância com a ordem da anamnese, o comer e beber da Ceia tem como ponto de partida a morte de Cristo e o povo de Corinto deve continuar ciente disso. Daí o indicativo: “anunciais”. Com estas palavras, o caráter da anamnese é mais bem descrito. Não se trata simplesmente de uma lembrança subjetiva, mas da manifestação ativa da continuidade e do significado presente da morte de Cristo. O termo ‘anunciais’ tem, desde modo, um significado profético e declarativo.43
Quando a morte de Jesus é proclamada, segundo as Escrituras, no contexto de uma celebração sacrificial, onde o pão e o vinho simbolizam e representam os benefícios da morte vicária de Cristo em favor do seu povo, tal anúncio se torna em implicação do modo correto de celebrar a ceia do Senhor. Desta forma, a Igreja é nutrida pelo anúncio profético do Evangelho e pela promessa de Jesus ao seu povo.
Cristo instituiu a Ceia como um “bem” permanente para a sua igreja. Esse é um benefício acrescentado a todos os outros benefícios para significar e selar essa morte. Isso permanecerá até o momento da volta de Cristo. Sua morte deve ser proclamada até que ele venha porque, nessa dispensação, a cruz é e continuará sendo a fonte e a causa das bênçãos, o centro da recordação da Igreja.44
Na perspectiva de Paulo, aqueles que visam reunir-se para melhor, devem se alimentar da proclamação do pão da vida, trazendo à memória por meio do anúncio profético do Evangelho a cruz de Jesus Cristo e o significado da sua morte. Por esse princípio da proclamação da morte do Senhor, a igreja reúne-se cada vez mais cônscia que “a ceia do Senhor enfoca a totalidade da pregação do evangelho a respeito do sacrifício de Cristo e põe a mesa com ele.”
3.2 Esperança na vinda de Jesus
“até que ele venha” (1 Co 11.26b)
A Ceia do Senhor é escatologicamente orientada. Com isto, o que se quer dizer é que a mesa do Senhor além do significado sacrificial que aponta para o sacrifício absoluto de Jesus em nosso lugar, também expressa o caráter escatológico da vinda do Reino de Deus. O estabelecimento do reino de Deus e a nova aliança estão indissoluvelmente ligadas no significado da Ceia do Senhor. Nesse sentido, Oscar Cullmann tem razão quando lembra que o culto cristão eucarístico “nos reconduz para trás, ao Crucificado e ao Ressuscitado, e nos transporta, em seguida para aquele que virá no fim dos tempos.”46
A ênfase no direcionamento escatológico da ceia do Senhor é uma marca dos estudos contemporâneos sobre a teologia da eucaristia. Muitos estudiosos têm feito da dimensão escatológica da mesa do Senhor um fator decisivo para a determinação exegética do significado da Ceia. Essa ênfase escatológica é vista no labor interpretativo de Schweitzer. No entendimento dele,
Paulo toma como seu ponto de partida a concepção cristã primitiva da ‘Refeição do Senhor’ como uma antecipação da mesa de comunhão com Cristo na Festa Messiânica, e que é deste ponto de vista que Paulo interpreta as palavras de Jesus na Ceia acerca do comer e beber seu corpo e sangue.47
Com base nessa ênfase escatológica, a teologia da esperança inverte o viés interpretativo de Schweitzer. Enquanto Schweitzer reconhecia as expectativas escatológicas já realizadas, a teologia da esperança qualifica a ceia como uma antecipação proléptica do Reino futuro. Nesse sentido, a ceia é um sacramento antecipatório da comunidade messiânica.  Segundo Pannenberg: “A última santa ceia de Jesus antes de sua paixão deu continuidade à sua prática anterior de refeições, pelo fato de que também lá a ceia, pela participação de Jesus, já se tornou antecipação, em forma de sinal, do senhorio vindouro de Deus.”48
Para fazermos justiça com o texto bíblico, e sobretudo, para que se participe corretamente da mesa do Senhor é preciso levar em conta o sentido escatológico da Ceia, sem, contudo, perder de vista que a vinda do Reino não compete com o significado sacrificial da mesa do Senhor. O significado da morte expiatória de Jesus em nada diminui o cumprimento escatológico realizado e a orientação escatológica manifesta. A correta participação da mesa do Senhor requer que o coração do povo da aliança recorde a morte vicária de Jesus, proclame no presente o significado da sua morte, sem perder de vista a expectativa da sua volta. Desta forma, a Ceia coordena passado, presente e futuro.
Em todos os relatos, tanto no de Paulo, como nos relatos sinóticos, o elemento escatológico está conectado indissoluvelmente ao significado sacrificial da Ceia.  Hendriksen lembra acertadamente que “a comunhão não somente aponta para o passado, para o que Cristo fez, mas também para adiante, para o que ele ainda vai significar para nós.”49  Deve-se lembrar que pão e vinho, no contexto da refeição sacrificial, estão sempre acompanhadas pela maravilhosa promessa de Cristo: “em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até àquele dia em que o hei de beber, novo, no reino.” (Mc 14.25).
A Ceia do Senhor, portanto, é a refeição da redenção, o cálice da salvação, o pão da Igreja porque se fundamenta na morte de Cristo. Mas é assim apenas durante o tempo interino entre o cumprimento que já começou e a consumação que se espera. Jesus dá aos seus discípulos seu corpo e seu sangue como alimento para o caminho que ainda está à frente. Com isso, ele os envia no caminho da História com pão suficiente para que possam viver, mas todo esse comer e beber é feito somente em antecipação da nova terra e do novo vinho, isto é, da plenitude da alegria.50
Que doce consolo recebemos do nosso Redentor! Sua morte é a base da nova aliança. Essa aliança persistirá pela eternidade. Assim, aguardamos pelo dia onde cearemos com ele sem lágrimas e sem a tristeza do pecado no coração, num céus e terra restaurados. Aleluia!
3.3 Cuidado para não comer indignamente a ceia do Senhor
Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor.  (1 Co 11.27)
Paulo alerta a Igreja de Corinto sobre o risco do comer “indigno” (avnaxi,wj). O que ele tinha em mente ao falar da indignidade diante da mesa do Senhor? O que é ser réu do corpo e do sangue de Jesus Cristo?
Recorrendo mais uma vez ao sentido sacrificial da Ceia do Senhor, a noção de indignidade tem a ver com o desprezo pelo sacrifício que Cristo fez, bem como pelas palavras da instituição do rito da ceia, e em decorrência disso, o desprezo do outro irmão. Deve-se ter em mente que o desprezo pelo outro, antes de tudo, era o desprezo à lei de Deus e o Evangelho de Jesus. O comer indigno não é descaso do rito pelo rito, mas da mesa do Senhor pelo que ela representa, e pela memória que ao redor dela é proclamada.
Evidentemente que a noção de indignidade não pode remeter a uma construção meritória da participação da mesa do Senhor por meio de boas obras. Se tal padrão de dignidade fosse requerido, ninguém poderia participar da mesa do Senhor.
Se deve excluir toda a ideia de que por mérito ou direito legal a pessoa teria que, ou seria capaz de, tornar-se ‘digna’ de comer o pão. A ideia, na verdade, é de comer e beber de modo inadequado ou impróprio, de modo que não condiz e não está em concordância com o ato em si. Trata-se de uma questão de respeito pelo verdadeiro caráter daquilo que é chamado pão e cálice do Senhor.51
Na perspectiva escatológica da teologia contemporânea, sobretudo na teologia da esperança, a noção de ceia aberta tem impacto direto sobre o conceito de indignidade diante da mesa do Senhor. De acordo com Moltmann, nenhuma pessoa é virtualmente indigna de participar da eucaristia, quando o seu significado escatológico é devidamente compreendido. Para Moltmann ceia de Cristo é aberta a todos e todas. Para ele, “toda comunhão de mesa pode, por isso, ser celebrada como um antegozo do grande banquete dos povos (Is 25,6ss.) e do comer e beber no Reino de Deus (Mt 22,1s).”52  Em termos simples, entende-se que o Crucificado não apenas cumpriu o culto sacrificial da religião judaica, antes ele crucificou a própria ideia de culto sacrificial. Desta forma, é impossível sustentar a ideia de culto ou profanidade mundana, pois o reino de Jesus já trouxe o grande banquete messiânico, aberto para todos os povos, para dentro da história como antecipação do reino futuro. No dizer de Moltmann a Igreja celebra a morte de Jesus como uma festa.
Nesse
“culto se preserva e presentifica aquilo que parece ter valor eterno, a saber, a entrega absoluta de Cristo. Paradoxalmente o especial é reprimido e destruído. No sentido que o véu templo foi rompido, a cruz de Cristo encerrou o culto.”53
Desta forma, por meio de uma complexa abstração, Moltmann afirma que a Ceia, quando vista do ponto de vista escatológico, e à luz da própria prática comensal de Jesus Cristo, indica a abertura escatológica da mesa eucarística para fora do templo. Como Jesus comeu com todos e todas, inclusive publicamos e pecadores, o culto eucarístico da Igreja messiânica não deve ser confessionalmente restrito, mas sempre aberto a todos e todas.
“A comunhão de refeição com Cristo segue o convite do próprio Cristo e não um dogma cristológico. Pois se trata de uma refeição do Senhor e não de um evento organizado por uma igreja ou confissão. A igreja deve sua vida ao Senhor e sua comunhão, à ceia dele, e não vice-versa. O convite do Senhor dirige-se a todos. Se uma igreja limitasse a abertura de seu convite por conta própria, faria da ceia do Senhor uma ceia da igreja e colocaria no centro não a comunhão com ele, mas sua própria comunhão. Por isso frisamos por meio da expressão “ceia do Senhor” a primazia do Senhor sobre a sua Igreja e questionamos qualquer ceia da Igreja confessionalmente restrita.”54
Apesar do teor altamente especulativo da teologia de Moltmann sobre a ceia do Senhor, ela possui implicações e desafios concretos em relação à prática eucarística da igreja. A visão eucarística de Moltmann é vista como uma contribuição para a abertura ecumênica da mesa do Senhor, e ao mesmo reduz o ato eucarístico ao mesmo nível da ação em prol dos necessitados. Para ele, “anunciar aos pobres o evangelho, curar enfermos, acolher os desprezados, libertar os cativos e comer e beber junto aos famintos é a festa de Cristo na história de Deus com o mundo.”55
Embora, em parte, possamos concordar com Moltmann quanto ao caráter escatológico da mesa do Senhor, as ilações que ele toma das comensalidades de Jesus estão sujeitas a muitas dificuldades hermenêuticas e exegéticas. A maior dificuldade de Moltmann consiste em desconsiderar que a atitude divisória dos coríntios foi a concretização de uma apostasia que se deu primeiro na mente deles quando se apartaram do mandamento de Cristo e de Paulo quanto ao significado sacrificial da mesa do Senhor.
Basta lembrar que o comer indigno a que Paulo se refere é a atitude divisória e egoísta dos coríntios em colocar de lado os princípios gerais do Evangelho quanto à mesa do Senhor – apenas esse motivo já prejudica a noção de ceia aberta, e não confessional, proposta por Moltmann. Além do mais, o erro dos coríntios era exatamente tratar a mesa do Senhor no mesmo pé de igualdade com outras comensalidades, ou seja, era a falta de conformidade com o padrão de fé, no sentido de desprezo pela tradição da última ceia, por parte deles, que gestava o comportamento indigno. A ceia do Senhor nesse sentido não é confessionalmente aberta, antes requer conformidade com um padrão de fé fixo. Quebrar esse padrão é o mesmo que transformar a ceia numa mesa de juízo com Deus.
Embora Moltmann tenha buscado romper com a confessionalidade diante da mesa do Senhor, na prática ele não conseguiu. Ao dizer que a festa do reino de Deus segue um padrão diacônico “fixo” de acolhimento ao pobre e o necessitado, Moltmann recorreu a uma fórmula “fixa” pela qual a festa do governo de Deus se manifesta na história.  Nesse sentido, a ideia que Moltmann tem da mesa do Senhor serve apenas para “transformar a Ceia num simples repasto fraternal, um ágape”56  – atitude esta que não apenas diminuiu o significado evangélico da mesa do Senhor, como também a anula. Certamente não podemos ir à mesa do Senhor desprezando o pobre, mas não podemos pensar que a ajuda ao pobre é a mesa do Senhor.
Diante de tudo que foi levantado, cremos que se faz mais justiça ao texto bíblico quando o conceito de indignidade é reconhecido como falta de santidade diante da mesa do Senhor, tanto por causa da embriaguez, por causa do descuido com os pobres e sobretudo por causa do descuido com a ordenança do Senhor. “Portanto, qualquer um que não respeite a santidade da comunhão nessa mesa, será réu do corpo e do sangue de Cristo, isto é, pecará contra o sacrifício feito por ele.”57
3.4 Requer autoexame e discernimento
Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si.   Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos que dormem.    (1 Co 11.28-30)
Diante da mesa do Senhor se requer o autoexame e o discernimento. Assim como na questão do conceito de indignidade, também existe um intenso debate sobre o significado do autoexame e do discernimento, bem como as implicações que dela decorrem.
João Calvino defendeu que tanto o autoexame como o discernimento são exigências impostergáveis para participar corretamente da mesa do Senhor.  No dizer de Calvino: “O Senhor não permite que todos tomem parte na Ceia, mas somente aqueles que sejam capazes de discernir o corpo e o sangue do Senhor, que podem examinar suas consciências, que podem anunciar a morte do Senhor e avaliar sua virtude.”58
O puritano Thomas Watson observou com exatidão que a,
palavra grega para examinar, dokimazo, é uma metáfora tomada do ourives que, curiosamente, testa seus metais. Assim, antes de virmos à mesa do Senhor, temos de fazer em nós mesmos um exame perscrutador e crítico pela Palavra.59
Essa noção de autoexame gerou algumas implicações. Calvino entendeu que por causa da exigência do autoexame e do discernimento as crianças ficaram impedidas de tomar parte da mesa do Senhor. Para ele, “a ordenança de Cristo as proíbe de participarem da Ceia do Senhor, porque ainda não são capazes de conhecer ou de celebrar a memória da morte de Cristo.”60
Apesar da posição de Calvino gozar de grande influência, sobretudo na tradição reformada confessional, o lugar da criança diante da mesa do Senhor tem sido amplamente debatido. Novas perspectivas que visam incluir os pequenos na comunhão estão sendo construídas.
Embora a prática da pedocomunhão (infantes e crianças pequenas que comungem antes ou à parte de uma crível profissão de fé), por longo tempo tenha permanecido confinada aos ortodoxos orientais, tem adquirido certa concorrência em igrejas liberais e círculos protestantes da ‘alta igreja’ (com algumas pequenas exceções entre alguns quadrantes conservadores reformados.)61
No Brasil, a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) resolveu na Assembleia Geral do ano de 2007 resolveu incluir as crianças na mesa da comunhão. Qual foi o referencial exegético que a IPI usou para adotar essa visão? Um dos poucos ensaios exegéticos disponíveis é um texto produzido pelo teólogo Fernando Bortolleto, onde ele afirma que o problema da igreja de Corinto era conduta indigna diante da mesa do Senhor. Nesse sentido, a requisição de autoexame e discernimento não eram princípios gerais, mas uma correção específica para um problema sociológico entre ricos e pobres na igreja de Corinto. Para Bortolleto,
“O apelo ao autoexame, v.28, somente poderá ser bem compreendido se estiver relacionado com a participação de todos no Corpo de Cristo. Não se trata de um exame intimista e individualista, mas de um exame em função da situação absurda, de negação da dimensão comunitária. E a dimensão comunitária é fundamental, pois todos devem começar e participar juntos (v.33).”62
Nessa perspectiva, o intérprete deveria pressupor que as crianças faziam parte do reino de Deus e da comunidade da nova aliança. Logo, o texto tem mais a falar contra a indisciplina dos adultos, do que sobre um impedimento das crianças – que em tese seria uma inferência não razoável – do ponto de vista da interpretação sociológica da passagem. Para ele, a única forma de impedimento seria a disciplina formal.
Outros intérpretes que defendem a participação da criança na ceia do Senhor observam que nem mesmo a limitação intelectual da criança deveria ser levada em conta, desde que o elemento da fidúcia fosse levado em conta. Sobre isto, Shelton diz:
“Será que fé pessoal é basicamente uma questão de intelecto avançado ou idade cronológica? Penso que não. Ao contrário, a fé pessoal é uma questão de propósito, de fé, de confiança e de esperança de alguém. Em todos esses aspectos, as crianças são dificilmente excluídas, podendo até, em alguns sentidos, servirem de exemplo. E pode ser que em matéria de fé, as crianças nos precedam.”63
No horizonte da teologia da esperança o tema da participação das crianças é mencionado por Pannenberg. Como já foi colocado anteriormente, a ceia do Senhor é vista pela teologia da esperança dentro de um contexto escatológico. Por conseguinte, a mesa do Senhor deveria ser vista como um banquete messiânico aberto a todos e todas. Dito isto, para Pannenberg,
“apesar de toda característica inclusa o entendimento teológico é importante para a proclamação e doutrina da igreja sobre a ceia do Senhor, mas ele não constitui condição prévia para recebê-la. Isso possui relevância prática, p. ex., para a pergunta da comunhão com criança: Ela não é questionável tão logo uma criança fora capaz de captar a ideia de que Jesus está presente na celebração da ceia, por mais misterioso que isso possa permanecer para ela. Pela mesma razão a divergência na tradição doutrinária confessional via de regra não deveria constituir um impedimento para a admissão à comunhão, enquanto nela for buscada a presença de Cristo e se concordar com a vinculação na fé com os demais que participam da mesa do Senhor.”64
Diante da questão sobre a participação das crianças e sobre a exigência de autoexame e discernimento no ensino de Paulo, creio que se fará mais justiça ao texto quando tiramos o foco da questão do critério idadee passamos a olhar para o critério do discernimento. Em certo sentido as confissões de fé reformadas acompanham esse critério do autoexame, seguido do discernimento, tendo em vista que sua “ênfase não está na comunhão somente para os adultos, mas na comunhão somente para crentes professos.”65  Nesse caso, não se trata de impor uma idade limite, mas reconhecer que a exigência do autoexame requer a compreensão do significado bíblico da mesa do Senhor e a consciência sobre a gravidade do comer indigno.
Quando se considera o autoexame e o discernimento do significado sacrificial da ceia, como algo instituído por Cristo, e, como uma exigência para a correta participação da mesa do Senhor, faz-se justiça ao fato que “no ensino de Paulo, a admissão à Ceia requer discernimento, de forma a não comer e beber indignamente.”66  Ao mesmo tempo, também se faz justiça ao fato que mesa do Senhor não “requer o exame teológico preciso, mas a profissão de fé convincente.”67
Outro viés que tem sido considerado na questão do autoexame e do discernimento tem a ver com o fulcro ético do Evangelho de Jesus Cristo, visto de uma perspectiva de baixo para cima.  A noção “de baixo para cima” funcionalmente tende a ver o agir de Jesus Cristo, em sua encarnação, como uma fonte de inspiração que determina em última instância o caminho do seguimento e a sua práxis. Quando essa noção é aplicada à teologia paulina, a noção sobre o discernimento do corpo de Cristo também é alterada. Um exemplo disso pode ser notado na visão de E.  Käsemann.
Para ele,
O corpo [de Cristo] é posto para servir e participa da glória do Senhor exaltado somente enquanto permanece seu instrumento na baixeza terrena. É isto que dá à Igreja unicidade e sentido escatológico. (…) A Igreja universal, da qual falava Paulo, se realiza somente enquanto permanecer na vida terrena de cada dia, sem fugir da baixeza que caracterizava o Senhor antes da ressurreição.68
Curiosamente essa noção cristológica, comum em círculos liberais, pode ser vista, ainda que em ecos, na literatura devocional disponível no Brasil. Nessa direção, o teólogo pentecostal Carlos Queiroz interpretou o discernimento paulino diante da Ceia do Senhor em categorias éticas, e virtualmente orientadas debaixo para cima. Segundo Carlos Queiroz:
Para Jesus Cristo, vale mais uma vida eticamente correta do que a oração corretamente confessada. Há muitos cristãos orando o Pai-Nosso sem o reconhecimento de que estão pondo muitas pessoas sob castigo da fome e da morte. É por causa de nosso egoísmo – comendo muito e deixando outras pessoas com fome –, que há muitos doentes e outros que morrem em nosso meio. Não discernir esta realidade, significa comer e beber juízo para si.69
Independente das aproximações que possam ser identificadas nos referencias teóricos elaborados pela teologia latino-americana, sobretudo a que se identifica com a missão integral no Brasil, nota-se na literatura evangélica devocional brasileira, uma noção do autoexame e o discernimento diante da ceia do Senhor, que focaliza apenas a dimensão ética, e muito em particular o problema da fome. Essa noção tenciona ser uma proposta contextual da mesa do Senhor aos dramas do pobre, do esquecido e do marginalizado.
Embora o contexto da igreja de corinto, comporte existência de irmãos pobres, isso não implica automaticamente que o discernimento que Paulo exige diante da mesa do Senhor seja “apenas” ético. Certamente existia um comportamento indevido uns com os outros. Mas, para que se faça justiça ao texto bíblico é preciso compreender que a perspectiva de Paulo sobre a Ceia exige o autoexame e o discernimento do corpo de Cristo (seja o significado sacrificial da Ceia no contexto da nova aliança, ou seja a unidade do corpo de Cristo enquanto igreja). Nesse sentido a questão do autoexame e do discernimento apontam, evidentemente, para uma apreensão e uma participação espiritual, por parte do crente, não do símbolo, mas da bênção significada; e a um pecado terrível e espiritual, não de um abuso ou profanação de símbolos exteriores, mas de um abuso e profanação de Cristo, que está presente nesses símbolos.70
Deve-se reconhecer a necessidade contextualização da mensagem do Evangelho. Mas, é preciso ter cuidado com o afã de fazer justiça ao pobre, e não fazer justiça ao ensino do Evangelho. Isso para reconhecer que o Evangelho nos chama a dar pão ao pobre, mas dar pão ao pobre não é o Evangelho (Jo 6.27,51,68-69).
3.5 Julgar a si mesmo
Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo (1 Co 11.31-32)
Diante da mesa do Senhor, os coríntios deviriam considerar o “julgamento a si mesmo”. Deve-se notar que Paulo também se inclui na exortação. No dizer de Paulo, se os coríntios julgassem a si mesmos, eles não seriam julgados pelo Senhor.
O julgamento descrito por Paulo é o mesmo que disciplina. Essa disciplina, que vem do Senhor, visa livrar os crentes da condenação com o mundo. Para Talbot, deve-se entender o pensamento de Paulo da seguinte maneira: “Quando somos julgados por Deus, tornando-nos fracos e doentes, o que pode resultar em morte, é porque Deus está nos disciplinando para que não sejamos condenados junto com o restante do mundo”.71
Calvino, ao comentar essa passagem observou que Paulo fez uma aplicação dupla. Na primeira aplicação, Paulo chamou nossa atenção para o seguinte fato: Os ímpios, motivados por seus prazeres são preparados para o dia do juízo final. Nesse sentido, o “privilégio de ser arrancado das bordas da destruição, através dos castigos, pertencem aos crentes.”72  Na segunda aplicação, que Calvino observa é a seguinte: “que as disciplinas [divinas] são remédios dos quais os crentes necessitam, pois, do contrário, seriam também impelidos pelos castigos temporais.”73
Dito isto, além do autoexame e do discernimento, o correto participar da mesa do Senhor requer um julgamento de si mesmo visando a santidade. Assim como autoexame era uma exigência para a correta participação da Ceia do Senhor, o julgamento de si mesmo era uma atitude fundamental para os coríntios avaliarem seus pensamentos e condutas diante da mesa do Senhor. Prior observou com pertinência que ao ler essa passagem, “cada cristão tem a obrigação, não de atingir algum padrão moral ou espiritual de perfeição (imaginária ou de qualquer natureza), mas de buscar uma auto-avaliação rigorosa e honesta.”74
Aplicação
Paulo não estava dando conselhos de etiqueta sobre se posicionar diante da mesa do Senhor. O apóstolo expôs com clareza sobre o meio de graça que Deus estabeleceu para abençoar seu povo. Reunir-se em torno da mesa do Senhor é reconhecer que a ministração correta da mesa do Senhor exige proclamação da cruz, esperança pelo retorno do Rei, cuidado para não comer indignamente o pão e o vinho. A mesa do Senhor requer autoexame, discernimento e julgamento de si mesmo a fim de viver de maneira santa diante de Deus.
Resume-se melhor a questão quando reconhecemos que a correta participação da mesa Senhor é um ato de fé, ou melhor, um ato de confiança em Cristo, não um salto no escuro, mas uma confiança ancorada em sua Palavra.  “Não pela fé nos nossos próprios esforços ou desempenho espiritual, mas na perfeita morte sacrificial, e na ressurreição conquistadora do inferno de Cristo nosso Senhor.”75  Quando proclamamos essas verdades e discernimos elas no coração, tomando-as como a regra para o autoexame, além de afastarmos a indignidade, ainda seremos fortalecidos na esperança. Dito isto, quanto o critério para a correta participação da Ceia é o discernimento, os filhos do pacto jamais serão excluídos desse meio de graça. Tão logo eles alcancem o discernimento da obra de Cristo e da unidade do povo de Deus, e demonstrem isto por meio de uma confissão de fé pública, pode-se participar da mesa do Senhor.
Ainda que as questões sociais sejam importantes, deve-se ter cuidado para não usar o contexto da ceia do Senhor de maneira imprópria, para sugerir que o problema da fome do mundo ocupa o centro do discernimento no pensamento de Paulo. É importante fazer justiça ao pobre, mas também é importante fazer justiça ao texto bíblico, do contrário jamais se fará justiça nem ao pobre e nem a qualquer outro assunto tido por relevante na américa-latina. Deve-se ter em mente que a ceia é um sacramento da nova aliança instituído para que a igreja lembre da obra de Cristo e não das nossas boas obras. O Evangelho nos leva a uma vida de amor ao próximo, e seu cuidado. Mas, o cuidado do pobre não é o Evangelho. Jesus é cordeiro que derramou seu sangue pelos nossos pecados. É esse discernimento da salvação pelo sangue de Jesus que precisamos proclamar, meditar e tomar como parâmetro para julgar a nós mesmos.  Por causa de Jesus somos um corpo. São essas realidades que celebramos em torno da mesa do Senhor.
4. A solução para o problema litúrgico da eucaristia
Depois de lançar os fundamentos do ensino de Cristo e os princípios gerais para a celebração correta da Ceia, Paulo ordenou atitudes práticas e pastorais para corrigir o problema dos coríntios diante da mesa do Senhor. Ainda que as ordenanças de Paulo nessa passagem tratem de forma bem particular da postura desordenada dos coríntios diante da mesa do Senhor (v.21), é preciso considerar os princípios que foram lançados nessa parte conclusiva do texto, sobretudo porque elas demonstram que a eucaristia não podia ser igualada com refeições comuns.
4.1 Esperai uns pelos outros
Assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros (1 Co 11.33).
De acordo com a teologia de Paulo, a mesa do Senhor não podia ser ministrada de qualquer maneira. Uma vez reconhecido que a Ceia do Senhor foi ordenada por Cristo, que o ensino apostólico exige autoexame, discernimento e julgamento de si mesmo, diante de tudo que a mesa do Senhor sinaliza e representa, a única atitude plausível que os coríntios podiam tomar era celebrar a ceia juntos. Por isso, eles precisavam esperar uns pelos outros. Certamente Paulo direcionou essa exortação a todos e todas, embora não possamos deixar de pensar, que o peso maior dessa repreensão recaiu sobre aqueles que deliberadamente comiam tudo antes dos outros, provocando a embriaguez de alguns e a fome de outros.
Ao ordenar que eles esperassem uns pelos outros, Paulo estava lembrando aos cristãos da comunidade que eles deviam celebrar a ceia juntos, pois a unidade é uma das implicações da mesa do Senhor (1 Co 10.17). Isto posto, o comportamento egoístico dos coríntios, seja ele visto pelo foco sociológico da injustiça social, ou seja, ele visto pelo foco litúrgico, em termos de abuso do significado da Ceia, em absolutamente nada altera o fato que as divisões profanavam o significado evangélico da mesa do Senhor.
Assim, a ordem de Paulo para que os membros da comunidade esperem uns pelos outros apenas corrobora com o fato de que eles precisavam conformar a vivencias relacionais ao mandamento de Cristo e Paulo, bem como, aos princípios de justiça ordenados em outras passagens nas Escrituras.
4.2 Comei em casa
Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para juízo. (1 Co 11.34a)
No verso 34, Paulo se dirige aos que em algumas situações tiveram fome, por causa do egoísmo de alguns coríntios. A ordem de Paulo foi para que eles fizessem suas refeições em suas próprias casas. Da mesma forma, isso também se aplicava aos membros ricos. De toda forma deve-se notar, que embora houvesse pobre na igreja, eles não eram pobres miseráveis que não tinham o que comer. No contexto da passagem, creio que alguns passavam fome porque ao chegar para prestar o culto, outros já tinham consumido os mantimentos antecipadamente. Eles poderiam padecer necessidades e até fome por causa da condição social mais humilde (afinal eles não tinham nada), mas no contexto específico tratado por Paulo a fome deles era circunstancial, tendo em vista que eles poderiam comer em casa.
De acordo com a instrução de Paulo, aqueles que passavam fome, e estavam humilhados por isso, deveriam comer em casa, isto porque a mesa do Senhor não era para matar a fome física. Antes, quando eles se reuniam para comer a ceia do Senhor, eles deveriam alimentar-se de Jesus Cristo que é a substância do sacramento. Os coríntios precisavam entender que Jesus é o alimento “da mente, não do estômago; do coração e da fé, não da boca.”76  Isto não quer dizer que as necessidades dos pobres não devam ser assistidas. Quer dizer que a mesa do Senhor não deve ser confundida com uma comensalidade cotidiana.
Em termos de princípio, pode-se deduzir que de acordo com o testemunho de Paulo a ceia do Senhor não deveria ser equiparada a uma comensalidade comum. Como bem disse Strong: “a Ceia do Senhor não é um apêndice a cada refeição comum”.77 Essa clara distinção que Paulo faz entre a refeição comum e a mesa do Senhor mostra que é impossível sustentar, sem muitas dificuldades, a noção estabelecida em círculos liberais, e sobretudo na teologia contemporânea, que a Ceia do Senhor deve ser vista dentro do contexto das comensalidades do Jesus histórico. De acordo com Pannenberg:
“A última santa ceia de Jesus antes de sua paixão deu continuidade à sua prática anterior de refeições, pelo fato de que também lá a ceia, pela participação de Jesus, já se tornou antecipação, em forma de sinal, do senhorio vindouro de Deus.”78
Nesse contexto proposto por Pannenberg, no máximo a tradição da ceia serviu para fundamentar a celebração cúltica da memória de Jesus. Logo, para ser melhor entendida em seu sentido escatológico, “a tradição da última ceia de Jesus no meio de seus discípulos antes da crucificação precisa ser apreciada no contexto das celebrações de ceias do tempo pregresso em sua atuação terrena.”79
Embora a comensalidade de Jesus seja importante, e de fato elas apontam para o caráter da vinda do Reino, isso não implica necessariamente que a última ceia do Senhor com os seus discípulos tivesse um motivo escatológico dominante que igualava com as outras comensalidades de Jesus. Existem muitos outros eventos onde Jesus comeu que não tinham o caráter cúltico (ver: Lc 24.41-43). Além disso, a ordem de Paulo para que os coríntios esperem uns pelos outros, e para que se coma em casa, deixa claro que a mesa do Senhor como sacramento sucedâneo da nova aliança se distingue das outras comensalidades de Jesus.
Quando a Igreja se reúne para comer o pão e beber o vinho, eles não estão simplesmente mantando a fome de pão, mas celebrando a nova aliança com base no sacrifício de Jesus e alimentando-se do próprio Cristo. Não se trata de deixar de lado a causa dos pobres e a fome do pão. A Escritura é clara quanto ao cuidado que se deve ter com os pobres. A questão na teologia de Paulo sobre a ceia do Senhor é buscar fazer justiça ao conteúdo evangélico fixo da mesa do Senhor. Nesse caso por tudo que foi visto é nítido que Paulo estava distinguindo a mesa do Senhor de outras comensalidades cotidianas. “Se os coríntios fizerem essa distinção corretamente, Paulo diz que eles não vão incorrer na condenação de Deus.”80
4.3 Obediência ao ensino apostólico
“Quanto às demais coisas, eu as ordenarei quando for ter convosco” (1 Co 11.34b)
Haviam outros problemas que foram transmitidos e que Paulo não incluiu na exortação. Alguns comentaristas destacam que provavelmente os problemas relacionados eram de natureza menos urgente. Sejam quais forem os problemas, os coríntios poderiam “esperar até à ocasião em que ele [Paulo] fosse a Corinto.”81 O ponto mais importante que deve ser destacado é a linguagem de autoridade definida por Paulo. Embora a carta aos coríntios seja um escrito pessoal, Paulo escreve com a consciência de seu apostolado e do caráter autoritativo de seus Escritos. Embora suas cartas tenham um tom pessoal, isso em nada diminui o caráter apostólico dos seus escritos. Deve-se lembrar que “Paulo e os outros autores sagrados escreveram conscientes de sua autoridade apostólica e falaram para toda a igreja, com a intenção de que suas epístolas fossem lidas publicamente nas assembleias (cf. 1Ts 5.27; Cl 4.16).”82
Logo, tanto Paulo, quanto os coríntios, sabiam que a tradição da ceia e os princípios para a correta ministração do sacramento não podiam ser vistos como meros conselhos circunstanciais, antes eram mandamento para a Igreja cristã até a volta do Senhor.
Aplicação
Esperar uns pelos outros e comer em casa são correções práticas e pastorais que expõem os seguintes princípios: 1) quando nos reunimos para a ceia do Senhor, devemos ter a consciência que somos um corpo; 2) quando nos reunimos para a ceia do Senhor não temos como objetivo matar nossa fome de pão, mas nossa fome da Palavra de Deus.
A ceia do Senhor não é uma celebração que podemos gerenciar ao nosso bel prazer. O que aconteceu com a igreja de Corinto deve nos servir de exemplo. Eles deformaram a ceia com a desobediência frente à tradição da última ceia de Jesus Cristo com os seus discípulos. Eles escamotearam os princípios para a correta participação da mesa do Senhor. O que isso gerou? Fraqueza, doença e morte. É trágica a situação de um povo que deixa de ter Cristo como pão da vida.
De acordo com Paulo, devemos participar da mesa do Senhor juntos como um só corpo, ansiando pela comunhão com Cristo. Diante da mesa do Senhor os puritanos faziam a seguinte oração:
Sim, Senhor, vou participar da ordenança em que espero manter comunhão contigo e receber as tuas principais misericórdias para minha alma em Jesus Cristo. Vou comer contigo, alimentar-se do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Sim, vou colocar o selo da aliança da minha parte, para renovar minha aliança contigo. Vou manter comunhão com os teus santos, para que o laço da comunhão com todo o seu povo seja confirmado comigo, mais do que nunca, como forte laço de união e amor entre mim e os teus servos. Esses são os meus propósitos, essa é a obra que agora vou empreender.83
Como precisamos voltar a ter esse mesmo desejo diante da mesa do Senhor! Como precisamos resgatar a noção de reverência, alegria e santo temor diante de Jesus para cumprirmos corretamente suas ordenanças, não apenas com nossas mentes, mas também com o nosso coração.
Quando a igreja se alimenta de Cristo ela encontra o caminho para a resolução dos conflitos. Na comunhão com Cristo a igreja recebe graça para prosseguir no caminho da proclamação da sua morte, sendo renovados pela esperança da sua vinda. Na mesa da comunhão com Cristo e com os santos, a igreja encontra o fortalecimento que habilita não somente para viver no mundo, mas para resisti-lo.
Conclusão
Temas como ecumenismo, justiça social, inclusão, testemunho evangélico e esperança perpassam a reflexão teológica no contexto latino-americano e arrogam serem aplicações do texto paulino no chão da nossa realidade.
Diante disso, o resgate da teologia de Paulo sobre a Ceia do Senhor se faz imprescindível. A justiça ao pobre não pode sacrificar a justiça para com o pensamento de Paulo. A teologia deve alcançar o chão que vivemos, mas o seu ponto de partida não é chão que vivemos. Teologia evangélica tem seu ponto de partida nas Escrituras, senão ela não é evangélica.
O esforço para considerar a mensagem de Paulo é fundamental para testarmos as propostas da teologia contemporânea especialmente no que concerne ao foco escatológico, com viés “de baixo para cima” que além de desafiar a tradição reformada confessional, propõe implicações de natureza ecumênica, missiológica e diaconal, que atingem fecundam não apenas a academia, mas descem ao povo simples através da literatura devocional.
Muitas igrejas reformadas pelo mundo que tem adotado uma visão mais progressista estão procurando uma maior valorização da espiritualidade sacramental. De acordo com o estudioso presbiteriano Carlos J. Klein, no Brasil, as seguintes igrejas envolvidas nesse movimento: IPIB, IPU e alguns segmentos da IPB.84Esse movimento apenas comprova que a influência dos os estudos da teologia neoliberal têm crescido nas denominações históricas, sobretudo no que tange as tentativas de contextualizar o significado da mesa do Senhor a realidade brasileira. Nesses setores, a tendência é “reconhecer o culto eucarístico como um sinal da unidade ecumênica, que transcende as diferenças confessionais.” 85