A PROMOÇÃO DA PAZ
488 Antes de ser um dom de Deus ao homem e um projeto humano conforme o desígnio divino, a paz é antes de tudo, um atributo especial essencial de Deus: «Senhor – Paz» (Jz 6,24). A criação, que é um reflexo da glória divina, almeja a paz. Deus cria todas as coisas e toda a criação forma um conjunto harmônico, bom em todas as suas partes (cf. Gên 1,4.10.12.18.21.25.31).A paz funda-se na relação primária entre cada ser humano e Deus mesmo, uma relação caracterizada pela retidão (cf. Gên 17,1). Em seguida ao ato voluntário com que o homem altera a ordem divina, o mundo conhece espargimento de sangue e divisão: a violência se manifesta nas relações interpessoais (cf. Gn 4,1-16) e sociais (cf. Gn 11,1-9). A paz e a violência não podem habitar na mesma morada, onde há violência aí Deus não pode estar (cf. 1 Cr 22,8-9).
489 Na Revelação bíblica, a paz é muito mais do que a simples ausência de guerra: ela representa a plenitude da vida (cf. Mt 2,5); longe de ser uma construção humana, é um sumo dom divino oferto a todos os homens, que comporta a obediência ao plano de Deus. A paz é o efeito da bênção de Deus sobre o Seu povo: «O senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz» (Num 6,26). Tal paz gera fecundidade (cf. Is 48,19), bem-estar (cf. Is 48,18), ausência de medo (cf. Lv 54,6) e alegria profunda (cf. Pr 12,20).
490 A paz é a meta da convivência social, como aparece de modo extraordinário na visão messiânica da paz: quando todos os povos forem para a casa do Senhor e Ele indicará a eles os seus caminhos, estes poderão caminhar ao longo das veredas da paz (cf. Is 2,2-5). Um mundo novo de paz, que abraça toda a natureza, é prometido para a era messiânica (cf. Is 11,6-9) e o próprio messias é definido «Príncipe da Paz» (Is 9,5). Lá onde reina a Sua paz, lá onde essa vem parcialmente antecipada, «ninguém poderá mais lançar o povo de Deus no medo (cf. Sof 3,13). A paz será então duradoura, pois quando o rei governa segundo a justiça de Deus, a retidão germina e a paz abunda «até que cesse a lua de brilhar» (Sal 71,7). Deus aspira dar a paz ao Seu povo: «ele diz palavras de paz ao seu povo, para seus fiéis, e àqueles cujos corações se voltam para ele» (Sl 84,9). O Salmista, escutando aquilo que Deus tem a dizer ao seu povo sobre a paz, ouve estas palavras: «A bondade e a fidelidade outra vez se irão unir, a justiça e a paz de novo se darão as mãos» (Sl 84,11).
491 A promessa de paz, que percorre todo o Antigo Testamento, encontra o seu cumprimento na Pessoa mesma de Jesus. A paz, de fato, é o bem messiânico por excelência, no qual estão compreendidos todos os outros bens salvíficos. A palavra hebraica «shalom», no sentido etimológico de «plenitude», exprime o conceito de «paz» na plenitude do seu significado (cf. Is 9,5 s; Mi 5,1-4). O reino do Messias é precisamente o reino da paz (cf. Jó 25,2; Sl 29,11; 37,11; 71,3.7; 84, 9.11; 118,165; 124,5; 127,6; 147,3; Ct 8,10; Is 26,3.12; 32,17 s; 52,7; 54,10; 57,19; 60,17; 66,12; Ag 2,9; Zc 9,10 et alibi). Jesus «é a nossa paz» (Ef 2,14), Ele que abateu o muro divisório da inimizade entre os homens, reconciliando-os com Deus (cf. Ef 2,14): assim São Paulo, com simplicidade, indica a razão radical que motiva os cristãos a uma vida e a uma missão de paz.
Na vigília de Sua morte, Jesus fala de Sua relação de amor com o Pai e da força unificante que este amor irradia sobre os discípulos; é um discurso de despedida que mostra o sentido profundo da Sua vida e que pode ser considerado uma síntese de todo o Seu ensinamento. Sigila o Seu testamento espiritual o dom da paz: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14,27). As palavras do Ressuscitado não ressoarão diversamente; toda vez que Ele encontrar os Seus, estes receberão d’Ele a saudação e o dom da paz: «Paz a vós» (Lc 24,36; Jo 20,19.21.26).
492 A paz de Cristo é antes de tudo a reconciliação com o Pai, que se atua mediante o missão apostólica confiada por Jesus aos Seus discípulos; esta tem início com um anúncio de paz: «Em toda a casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa!» (Lc 10,5; cf. Rm 1, 7). A paz é pois reconciliação com os irmãos, porque Jesus, na oração que nos ensinou, o «Pai Nosso», associa o perdão pedido à Deus ao oferecido aos irmãos: «perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam» (Mt 6,12). Com esta dupla reconciliação o cristão pode tornar-se artífice da paz e, portanto, partícipe do reino de Deus, segundo quanto o mesmo Jesus proclama: «Bem-aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9).
493 A ação pela paz nunca é dissociada do anúncio do Evangelho, que é precisamente «a boa nova da paz» (At 10,36; cf. Ef 6,15), dirigida a todos os homens. No centro do «Evangelho da paz» (Ef 6,15), está o mistério da Cruz, porque a paz está inserida no sacrifício de Cristo (cf. Is 53,5: «O castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas»): Jesus crucificado cancelou a divisão, instaurando a paz e a reconciliação precisamente «pela virtude da cruz, aniquilando nela a inimizade» (Ef 2,16) e dando aos homens a salvação da Ressurreição.
II. A PAZ:
FRUTO DA JUSTIÇA E DA CARIDADE
FRUTO DA JUSTIÇA E DA CARIDADE
A paz é fruto da justiça (cf. Is 32,17)[1020], entendida em sentido amplo como o respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da pessoa humana. A paz é um perigo quando ao homem não é reconhecido aquilo que lhe é devido enquanto homem, quando não é respeitada a sua dignidade e quando a convivência não é orientada em direção para o bem comum. Para a construção de uma sociedade pacífica e para o desenvolvimento integral de indivíduos, povos e nações, resulta essencial a defesa e a promoção dos direitos humanos[1021].
A paz é fruto também do amor: «a verdadeira paz é mais matéria de caridade que de justiça, pois a função da justiça é somente remover os obstáculos para a paz, como por exemplo, a injuria e o dano caudados; mas a paz mesma é ato próprio e específico da caridade»[1022].
495 A paz se constrói dia a dia na busca da ordem querida por Deus[1023]e pode florescer somente quando todos reconhecem as próprias responsabilidades na sua promoção[1024]. Para prevenir conflitos e violências, é absolutamente necessário que a paz comece a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada pessoa: assim pode estender-se nas famílias e nas diversas formas de agregação social, até envolver toda a comunidade política[1025]. Em um clima difuso de concórdia e de respeito à justiça, pode amadurecer uma autêntica cultura de paz[1026], capaz de difundir-se também na Comunidade Internacional. A paz é, portanto, «fruto de uma ordem inscrita na sociedade humana pelo seu Divino Fundador e que os homens, sempre desejosos de uma justiça mais perfeita, hão de fazer amadurecer»[1027]. Tal ideal de paz «não pode conseguir-se na terra se não se salvaguardar o bem dos indivíduos e os homens não comunicarem entre si com confiança as riquezas do seu espírito e das suas faculdades criadoras»[1028].
496 A violência nunca constitui uma resposta justa. A Igreja proclama, com a convicção da sua fé em Cristo e com a consciência de sua missão, «que a violência é um mal, que a violência é inaceitável como solução para os problemas, que a violência não é digna do homem. A violência é mentira, pois que se opõe à verdade da nossa fé, à verdade da nossa humanidade. A violência destrói o que ambiciona defender: a dignidade, a vida, a liberdade dos seres humanos»[1029].
Também o mundo atual necessita do testemunho dos profetas não armados, infelizmente objeto de escárnio em toda época[1030]: «Aqueles que renunciam à ação violenta e sangrenta e, para proteger os direitos do homem, recorrem a meios de defesa ao alcance dos mais fracos testemunham a caridade evangélica, contanto que isso seja feito sem lesar os direitos e as obrigações de outros homens e das sociedades. Atestam legitimamente a gravidade dos riscos físicos e morais do recurso à violência, com seu cortejo de mortes e ruínas»[1031].
III. O FALIMENTO DA PAZ: GUERRA
497 O Magistério condena «a crueldade da guerra»[1032] e pede que seja considerada com uma abordagem completamente nova[1033]: de fato, «não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados»[1034]. A Guerra é um «flagelo»[1035] e não representa nunca um meio idôneo para resolver os problemas que surgem entre as nações: «Nunca foi e jamais o será»[1036], porque gera conflitos novos e mais complexos[1037]. Quando deflagra, a guerra torna-se uma «carnificina inútil»[1038], uma «aventura sem retorno»[1039], que compromete o presente e coloca em risco o futuro da humanidade: «Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra»[1040]. Os danos causados por um conflito armado, de fato, não são apenas materiais, mas também morais[1041]: a guerra é, ao fim e ao cabo, «a falência de todo o autêntico humanismo»[1042], «é sempre uma derrota da humanidade»[1043]: «nunca mais uns contra os outros, nunca mais, nunca!... nunca mais a guerra, nunca mais a guerra! »[1044].498 A busca de soluções alternativas à guerra para resolver os conflitos internacionais assumiu atualmente um caráter de dramática urgência, porque «a terrível capacidade dos meios de destruição, acessíveis já às médias e pequenas potências, e a conexão cada vez mais estreita entre os povos de toda a terra, tornam muito difícil ou praticamente impossível limitar as conseqüências de um conflito»[1045]. É portanto essencial a busca das causas que originam um conflito bélico, em primeiro lugar as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é necessário intervir com o objetivo de removê-las: «Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento»[1046].
499 Os Estados nem sempre dispõem dos instrumentos adequados para promover eficazmente a própria defesa: disso resulta a necessidade e a importância das Organizações Internacionais e Regionais, que devem ser capazes de colaborar para fazer frente aos conflitos e de favorecer a paz, instaurando relações de confiança recíproca aptas a tornar impensável o recurso da guerra[1047]: «É lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns da natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e seus respectivos povos não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens»[1048].
a) A legítima defesa
500 Uma guerra de agressão é intrinsecamente imoral. No trágico caso em que esta se desencadeie, os responsáveis por um Estado agredido têm o direito e o dever de organizar a defesa inclusive recorrendo à força das armas[1049].O uso da força, para ser lícito, deve responder a algumas rigorosas condições: «que: ― o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade das nações seja durável, grave e certo; ― todos os outros meios de pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes; ― estejam reunidas as condições sérias de êxito; ― o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves que o mal a eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na avaliação desta condição. Estes são os elementos tradicionais enumerados na chamada doutrina da “guerra justa”. A avaliação dessas condições de legitimidade moral cabe ao juízo prudencial daqueles que estão encarregados do bem comum»[1050].
Se tal responsabilidade justifica a posse de meios suficientes para exercer o direito à defesa, permanece para os Estados a obrigação de fazer todo o possível para «garantir as condições de paz não apenas sobre o próprio território, mas em todo o mundo»[1051]. Não se deve esquecer que «uma coisa é utilizar as forças militares para justa defesa dos povos, outra coisa é querer subjugar outras nações. O poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político dele mesmo. E depois de lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se torna lícito entre as partes inimigas»[1052].
501 A Carta das Nações Unidas, nascida da tragédia da Segunda Guerra Mundial e voltada a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, se baseia na interdição generalizada do recurso à força para resolver as controvérsias entre os Estados, exceto em dois casos: a legítima defesa e as medidastomadas pelo Conselho de Segurança no âmbito das suas responsabilidades para manter a paz. Em todo caso, o exercício do direito a defender-se deve respeitar «os limites tradicionais de necessidade e de proporcionalidade»[1053].
Quando, ademais, a uma ação bélica preventiva, lançada sem provas evidentes de que uma agressão está para ser desferida, essa não pode deixar de levantar graves questões sob o aspecto moral e jurídico. Portanto, somente uma decisão dos organismos competentes, com base em rigorosas averiguações e motivações fundadas, pode dar legitimação internacional ao uso da força armada, identificando determinadas situações como uma ameaça à paz e autorizando uma ingerência na esfera do domínio reservado de um Estado.
b) Defender a paz
502 As exigências da legítima defesa justificam a existência, nos Estados, das forças armadas, cuja ação deve ser posta ao serviço da paz: os que com tal espírito tutelam a segurança e a liberdade de um País, dão um autêntico contributo à paz[1054]. Toda a pessoa que presta serviço nas forças armadas é concretamente chamada a defender o bem, a verdade e a justiça no mundo; não poucos são aqueles que nas forças armadas sacrificaram a própria vida por tais valores e para defender vidas inocentes. O crescente número de militares que atuam no seio de forças multinacionais, no âmbito das «missões humanitárias e de paz», promovidas pelas Nações Unidas, é um fato significativo[1055].
503 Todo membro das forças amadas está moralmente obrigado a opor-se às ordens que incitam a cumprir crimes contra o direito das nações e os seus princípios universais[1056].Os militares permanecem plenamente responsáveis pelas ações que cometem em violação dos direitos das pessoas e dos povos ou das normas do direito internacional humanitário. Tais atos não podem ser justificadas com o motivo da obediência a ordens superiores.
Os objetores de consciência, os quais se recusam por principio a efetuar o serviço militar nos casos em que este seja obrigatório, porque a sua consciência os leva a rejeitar qualquer forma de uso da força, ou mesmo a participação em um determinado conflito, devem estar disponíveis a desempenhar outros tipos de serviços: «Parece justo que as leis prevejam o caso dos que, por imperativos de consciência, recusam tomar as armas, desde que entretanto aceitem servir, de outra forma, a comunidade humana»[1057].
c) O dever de proteger os inocentes
504 O direito ao uso da força com o objetivo de legítima defesa é associado ao dever de proteger e ajudar as vítimas inocentes que não podem defender-se das agressões. Nos conflitos da era moderna, freqüentemente no seio do próprio Estado, as disposições do direito internacional humanitário devem ser plenamente respeitados. Em muitas circunstâncias a população civil é atingida, por vezes também como objetivo bélico. Em alguns casos, é brutalmente massacrada ou desenraizada das próprias casas e das próprias terras com transferências forçadas, sob o pretexto de uma «purificação étnica»[1058] inaceitável. Em tais trágicas circunstâncias, é necessário que as ajudas humanitárias cheguem à população civil e que não sejam jamais utilizadas para condicionar os beneficiados: o bem da pessoa humana deve ter precedência sobre os interesses das partes em conflito.
505 O princípio de humanidade, inscrito na consciência de cada pessoa e povo, comporta a obrigação de manter as populações civis ao abrigo dos efeitos da guerra: «Aquele mínimo de proteção à dignidade de todo o ser humano, garantido pelo direito internacional humanitário, é com muita freqüência violado em nome de exigências militares ou políticas, que jamais deveriam prevalecer sobre o valor da pessoa humana. Sente-se hoje a necessidade de encontrar um novo consenso sobre os princípios humanitários e de consolidar os fundamentos, a fim de impedir o repetir-se de atrocidades e abusos»[1059].
Uma categoria particular de vítimas da guerra é a dos refugiados, constrangidos pelos combates a fugir dos lugares em que vivem habitualmente, até mesmo a encontrar abrigo em países diferentes daqueles em que nasceram. A Igreja está do lado deles, não só com a presença pastoral e com o socorro material, mas também com o empenho de defender a sua dignidade humana: «A solicitude pelos refugiados deve esforçar-se por reafirmar e sublinhar os direitos humanos, universalmente reconhecidos, e a pedir que para eles sejam efetivamente realizados»[1060].
506 As tentativas de eliminação de inteiros grupos nacionais, étnicos, religiosos ou lingüísticos são delitos contra Deus e contra a própria humanidade e os responsáveis de tais crimes devem ser chamados a responder diante da justiça[1061]. O século XX caracterizou-se tragicamente por vários genocídios: daquele dos armênios ao dos ucranianos, do dos cambojanos àqueles ocorridos na África e nos Bálcãs. Dentre eles se destaca o holocausto do povo hebraico, a Shoah: «os dias da Shoah assinalaram uma verdadeira noite na história, registrando crimes inauditos contra Deus e contra o homem»[1062].
A Comunidade Internacional no seu conjunto tem a obrigação moral de intervir em favor destes grupos, cuja própria sobrevivência é ameaçada ou daqueles que os direitos fundamentais são maciçamente violados. Os estados, enquanto parte de uma comunidade internacional, não podem ficar indiferentes: ao contrário, se todos os outros meios à disposição se revelarem ineficazes, é «legítimo e até forçoso empreender iniciativas concretas para desarmar o agressor»[1063].O princípio da soberania nacional não pode ser aduzido como motivo para impedir a intervenção em defesa das vítimas[1064].As medidas adotadas devem ser realizadas no pleno respeito do direito internacional e do princípio fundamental da igualdade entre os Estados.
A Comunidade internacional dotou-se também de uma Corte Penal Internacional para punir os responsáveis por atos particularmente graves: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão. O Magistério não deixou de encorajar repetidamente tal iniciativa[1065].
d) Medidas contra quem ameaça a paz
507 As sanções, nas formas previstas do ordenamento internacional contemporâneo, miram a corrigir o comportamento do governo de um País que viola as regras da convivência internacional pacífica e ordenada ou que põe em prática formas graves de opressão sobre a população. As finalidades das sanções devem ser precisadas de modo inequívoco e as medidas adotadas devem ser periodicamente verificadas pelos organismos competentes da Comunidade Internacional, para uma objetiva avaliação da sua eficácia e do seu real impacto sobre a população civil. O verdadeiro objetivo de tais medidas é abrir o caminho para as tratativas e o diálogo. As sanções não devem jamais constituir um instrumento de punição direta contra toda uma população: não é lícito que devido às sanções venham sofrer inteiras populações e especialmente os seus membros mais vulneráveis. As sanções econômicas, em particular, são um instrumento a ser utilizado com grande ponderação e a ser submetidos a rígidos critérios jurídicos e éticos[1066]. O embargo econômico deve ser limitado no tempo e não pode ser justificado quando os efeitos que produzem se revelam indiscriminados.
e) O desarmamento
508 A doutrina social propõe a meta de um «desarmamento geral, equilibrado e controlado»[1067]. O enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz. O princípio de suficiência, em virtude do qual um Estado pode possuir unicamente os meios necessários para a sua legítima defesa, deve ser aplicado seja pelos Estados que compram armas, seja por aqueles que as produzem e as fornecem[1068]. Todo e qualquer acúmulo excessivo de armas ou o seu comércio generalizado não podem ser justificados moralmente; tais fenômenos devem ser avaliados também à luz da normativa internacional em matéria de não-proliferação, produção, comércio e uso dos diferentes tipos de armamentos. As armas não devem jamais ser consideradas à guisa dos outros bens intercambiados em plano mundial ou nos mercados internos[1069].
O Magistério, ademais, expressou uma avaliação moral do fenômeno da dissuasão: «A acumulação de armas parece a muitos uma maneira paradoxal de dissuadir da guerra os eventuais adversários. Vêem nisso o mais eficaz dos meios suscetíveis de garantir a paz entre as nações. Este procedimento de dissuasão impõe severas reservas morais. A corrida aos armamentos não garante a paz. Longe de eliminar as causas da guerra, corre o risco de agravá-las»[1070]. As políticas de dissuasão nuclear, típicas do período da chamada Guerra Fria, devem ser substituídos por medidas concretas de desarmamento, baseadas no diálogo e na negociação multilateral.
509 As armas de destruição de massa – biológicas, químicas e nucleares – representam uma ameaça particularmente grave; aqueles que as possuem têm uma responsabilidade enorme diante de Deus e de toda a humanidade[1071].O princípio da não proliferação das armas nucleares juntamente com as medidas de desarmamento nuclear, assim como a proibição dos testes nucleares, são objetivos estritamente ligados entre si, que devem ser atingidos o mais rápido possível mediante controles eficazes no plano internacional[1072].A proibição de desenvolvimento, de aumento de produção, de acúmulo e de emprego das armas químicas e biológicas, assim como as decisões que impõem a sua destruição, completam o quadro normativo internacional para o abandono de tais armas nefastas[1073], cujo uso é explicitamente reprovado pelo Magistério: «Toda a ação bélica, que tende indistintamente para a destruição de cidades inteiras e de extensas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e contra o próprio homem, e como tal deve ser condenada firmemente e sem hesitação»[1074].
510 O desarmamento deve estender-se à interdição das armas que infligem efeitos traumáticos excessivos ou cujo efeito é indiscriminado, assim como as minas anti-homem, um tipo de pequenos dispositivos, desumanamente insidiosos, pois que continuam a provocar vítimas mesmo muito tempo depois do fim das hostilidades: os Estados que as produzem, as comercializam ou as usam ainda são responsáveis por retardar gravemente a definitiva interdição de tais instrumentos mortíferos[1075]. A comunidade internacional deve continuar a empenhar-se na atividade de desativação das minas, promovendo uma cooperação eficaz, inclusive a formação técnica, com os países que não dispõem de meios próprios adequados para efetuar a urgentíssima depuração de seus territórios e que não são capazes fornecer uma assistência adequada às vítimas das minas.
511 Medidas apropriadas são necessárias para o controle da produção, da venda, da importação e da exportação de armas leves e individuais, que facilitam muitas manifestações de violência. A venda e o tráfico de tais armas constituem uma séria ameaça para a paz: estas são as armas mais utilizadas nos conflitos internacionais e a sua disponibilidade faz aumentar o risco de novos conflitos e a intensidade daqueles em curso. A postura dos Estados que aplicam severos controles sobre a transferência internacional de armamentos pesados, mas não prevêem nunca, ou tão-somente em raras ocasiões, restrições sobre o comércio das armas leves e individuais, é uma contradição inaceitável. É indispensável e urgente que os governos adotem regras adequadas para controlar a produção, o acúmulo, a venda e o tráfico de tais armas[1076],de modo a fazer frente à crescente difusão, em larga parte entre grupos de combatentes que não pertencem às forças militares de um Estado.
512 A utilização de crianças e adolescentes como soldados em conflitos armados ― não obstante o fato de que a sua jovem idade não deva permitir o se recrutamento ― deve ser denunciada. Eles são coagidas com a força a participar dos conflitos, ou ainda o fazem por iniciativa própria sem ser plenamente cônscios das conseqüências. São crianças privadas não apenas da instrução que deveriam receber e de uma infância normal, mas também adestradas a matar: tudo isto constitui um crime intolerável. O seu emprego nas forças combatentes de qualquer tipo deve ser impedido; contemporaneamente, é preciso fornecer toda a ajuda possível para a cura, a educação e a reabilitação daqueles que foram envolvidos nos combates.[1077]
f) A condenação ao terrorismo
513 O terrorismo é uma das formas mais brutais de violência que atualmente atribula a Comunidade Internacional: semeia ódio, morte, desejo de vingança e de represália[1078]. De estratégia subversiva típica somente de algumas organizações extremistas, ordenada à destruição das coisas e à morte de pessoas, o terrorismo se transformou em uma rede obscura de cumplicidades políticas, utiliza também meios técnicos sofisticados, vale-se freqüentemente de enormes recursos financeiros e elabora estratégias de vasta escala, atingindo pessoas totalmente inocentes, vítimas casuais das ações terroristas[1079]. Alvos dos ataques terroristas são, em geral, os lugares da vida cotidiana e não objetivos militares no contexto de uma guerra declarada. O terrorismo atua e ataca no escuro, fora das regras com que os homens procuraram disciplinar, por exemplo, mediante o direito internacional humanitário, os seus conflitos: «Em muitos casos, o uso dos métodos do terrorismo tem-se como novo sistema de guerra»[1080]. Não se devem descurar as causas que podem motivar tal inaceitável forma de reivindicação. A luta contra o terrorismo pressupõe o dever moral de contribuir para criar as condições a fim de que esse não nasça ou se desenvolva.
514 O terrorismo deve ser condenado do modo mais absoluto. Este manifesta o desprezo total da vida humana e nenhuma motivação pode justificá-lo, pois que o homem é sempre fim e nunca meio. Os atos de terrorismo atentam contra a dignidade do homem e constituem uma ofensa para a humanidade inteira: «Existe por isso um direito a defender-se do terrorismo»[1081]. Tal direito não pode, todavia ser exercido no vácuo de regras morais e jurídicas, pois que a luta contra o terrorismo deve ser conduzida no respeito dos direitos do homem e dos princípios de um Estado de direito[1082]. A identificação dos culpados deve ser devidamente provada, pois a responsabilidade penal é sempre pessoal e, portanto, não pode ser estendida às religiões, às nações, às etnias, às quais os terroristas pertencem. A colaboração internacional contra a atividade terrorista «não pode exaurir-se meramente em operações repressivas e punitivas. É essencial que o recurso necessário à força seja acompanhado por uma análise corajosa e lúcida das motivações subjacentes aos ataques terroristas»[1083]. É necessário também um particular empenho no plano «político e pedagógico»[1084] para revolver, com coragem e determinação, os problemas que, em algumas dramáticas situações, possam alimentar o terrorismo: «O recrutamento dos terroristas, de fato, é mais fácil em contextos sociais onde os direitos são espezinhados e as injustiças longamente toleradas»[1085].
515 É profanação e blasfêmia proclamar-se terrorista em nome de Deus[1086].Neste caso se instrumentaliza também a Deus e não apenas o homem, enquanto se presume possuir totalmente a Sua verdade ao invés de procurar ser possuído por ela. Definir «mártires» aqueles que morrem executando atos terroristas é distorcer o conceito de martírio, que é testemunho de quem se deixa matar por não renunciar a Deus e não de quem mata em nome de Deus.
Nenhuma religião pode tolerar o terrorismo e, menos ainda, pregá-lo[1087]. As religiões estão antes empenhadas em colaborar para remover as causas do terrorismo e para promover a amizade entre os povos[1088].
IV. O CONTRIBUTO DA IGREJA PARA A PAZ
516 A promoção da paz no mundo é parte integrante da missão com que a Igreja continua a obra redentora de Cristo sobre a terra. A Igreja, de fato, é, «em Cristo, “sacramento”, ou seja, sinal e instrumento de paz no mundo e para o mundo»[1089]. A promoção da verdadeira paz é uma expressão da fé cristã no amor que Deus nutre por cada ser humano. Da fé libertadora no amor de Deus derivam uma nova visão do mundo e um novo modo de aproximar-se do outro, seja esse outro um indivíduo ou um povo inteiro: é uma fé que muda e renova a vida, inspirada pela paz que Cristo deixou aos Seus discípulos (cf. Jo 14,27).Movida unicamente por tal fé, a Igreja entende promover a unidade dos cristãos e uma fecunda colaboração com os crentes de outras religiões. As diferenças religiosas não podem e não devem constituir uma causa de conflito: a busca comum da paz por parte de todos os crentes é antes um forte fator de unidade entre os povos[1090]. A Igreja exorta pessoas, povos, Estados e nações a se tornarem participantes da sua preocupação com o restabelecimento e a consolidação da paz, ressaltando em particular a importante função do direito internacional[1091].
517 A Igreja ensina que uma verdadeira paz só é possível através do perdão e da reconciliação[1092]. Não é fácil perdoar diante das conseqüências da guerra e dos conflitos, porque a violência, especialmente quando conduz «até aos abismos da desumanidade e da desolação»[1093], deixa sempre como herança um pesado fardo de dor, que pode ser aliviado somente por uma reflexão profunda, leal e corajosa, comum aos contendores, capaz de enfrentar as dificuldades do presente com uma atitude purificada pelo arrependimento. O peso do passado, que não pode ser esquecido, pode ser aceito somente na presença de um perdão reciprocamente oferecido e recebido: trata-se de um percurso longo e difícil, mas não impossível[1094].
518 O perdão recíproco não deve anular as exigências da justiça e nem, tão pouco, bloquear o caminho que leva à verdade: justiça e verdade representam, pelo contrário, os requisitos concretos da reconciliação. São oportunas as iniciativas que tendem a instituir Organismos judiciários internacionais. Semelhantes Organismos, valendo-se do princípio da jurisdição universal e apoiados em procedimentos adequados, respeitosos dos direitos dos imputados e das vítimas, podem acertar a verdade sobre crimes perpetrados durante os conflitos armados[1095]. É necessário, todavia, ir além das determinações dos comportamentos delituosos, tanto ativos como omissivos, e além das decisões referentes aos procedimentos de reparação, para chegar ao restabelecimento de relações de recíproco acolhimento entre os povos divididos, sob o signo da reconciliação[1096]. Ademais, é necessário promover o respeito do direito à paz: tal direito «favorece a construção duma sociedade no interior da qual as relações de força são substituídas por relações de colaboração em ordem ao bem comum»[1097].
519 A Igreja luta pela paz com a oração. A oração abre o coração não só a uma profunda relação com Deus, como também ao encontro com o próximo sob o signo do respeito, da confiança, da compreensão, da estima e do amor[1098]. A oração infunde coragem e dá apoio a todos «os verdadeiros amigos da paz»[1099], os quais procuram promovê-la nas várias circunstâncias em que se encontram a viver. A oração litúrgica é «simultaneamente cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e a fonte da qual promana toda a sua força»[1100]; em particular a celebração eucarística, «fonte e convergência de toda a vida cristã»[1101],é nascente inesgotável de todo autêntico compromisso cristão pela paz[1102].
520 Os Dias Mundiais da Paz são celebrações de particular intensidade para a oração de invocação da paz e para o compromisso de construir um mundo de paz. O Papa Paulo VI as instituiu com o objetivo de «que se dedique aos pensamentos e aos propósitos da Paz uma celebração especial, no primeiro dia do ano civil»[1103]. As Mensagens pontifícias por ocasião de celebração anual constituem uma rica fonte de atualização e de desenvolvimento da doutrina social e mostram o constante esforço da ação pastoral da Igreja em favor da paz: «A Paz impõe-se somente com a paz, com aquela paz nunca disjunta dos deveres da justiça, mas alimentada pelo sacrifico de si próprio, pela clemência, pela misericórdia e pela caridade»[1104].
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BOM DIA
A PAZ DE CRISTO E AMOR DE MARIA.
VINDE E VEDE