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domingo, 19 de abril de 2020

A COMUNIDADE POLÍTICA I. ASPECTOS BÍBLICOS

A COMUNIDADE POLÍTICA
I. ASPECTOS BÍBLICOS

377 O povo de Israel, na fase inicial da sua história, não tem reis, como os demais povos, porque reconhece tão-somente o senhorio de Iahweh. É Deus que intervém na história através de homens carismáticos, conforme testemunha o Livro dos Juízes. Ao último destes homens, Samuel, o povo pedirá um rei semelhante (cf. 1 Sam 8, 5; 10, 18-19). Samuel põe os Israelitas de sobreaviso acerca das conseqüências de um exercício despótico da realeza (cf. 1 Sam 8, 11-18); contudo, o poder régio pode ser experimentado como dom de Iahweh que como dom de Iahweh que vem em socorro de seu povo (cfr 1 Sam 9, 16). Finalmente, Saul receberá a unção real (cf. 1 Sam 10, 1-12). O episódio evidencia as tensões que levaram Israel a uma concepção de realeza diferente da dos povos vizinhos: o rei, escolhido por Iahweh (cf. Dt 17, 15: 1 Sam 9, 16) e por Ele consagrado (cf. 1 Sam 16, 12-13) será visto como Seu filho (cf. Sal 2, 7) e deverá tornar visível o senhorio e o desígnio de salvação (cf. Sal 72). Deverá ainda fazer-se defensor dos fracos e assegurar ao povo a justiça: as denúncias dos profetas apontarão precisamente para as inadimplências dos reis (cfr 1 Re 21; Am 2, 6-8; Mi 3, 1-4).

378 O protótipo de rei escolhido por Iahweh é Davi, cuja condição humilde o relato bíblico ressalta com complacência (cf. 1 Sam 16, 1-13). Davi é o depositário da promessa (cf. 2 Sam 7, 13 ss; Sal 89, 2-38; 132, 11-18), que o coloca na origem de uma tradição real, precisamente a tradição «messiânica», a qual não obstante todos os pecados e as infidelidades do mesmo Davi e de seus sucessores, culmina em Jesus Cristo, o «ungido de Iahweh» (isto é, «consagrado do Senhor» cf. 1 Sam 2, 35; 24, 7.11; 26, 9.16; Ex. 30, 22-32) por excelência, filho de Davi (cf. as duas genealogias em Mt 1, 1-17 e Lc 3, 23-38; ver também Rm 1, 3).
O fracasso, no plano histórico, da realeza não ocasionará o desaparecimento do ideal de um rei que, em fidelidade a Iahweh, governe com sabedoria e exerça a justiça. Esta esperança reaparece repetidas vezes nos Salmos (cf. Sal 2; 18; 20; 21; 72). Nos oráculos messiânicos é esperado, para um tempo escatológico, a figura de um rei dotado do Espírito do Senhor, pleno de sapiência e em condição de trazer justiça aos pobres (cf. Is 11, 2-5; Jr 23, 5-6). Verdadeiro pastor do povo de Israel (cf. Ez 34, 23-24; 37, 24) levará a paz aos povos (cf. Zc 9, 9-10). Na literatura sapiencial, o rei é apresentado como aquele que emite justos juízos e aborrece a iniqüidade (cf. Pr 16, 12), julga os pobres com equidade (cf. Pr 29, 14) e é amigo do homem de coração puro (cf. Pr 22, 11). Torna mais explícito o anúncio de tudo quanto os Evangelhos e os demais autores do Novo Testamento vêem realizado em Jesus de Nazaré, encarnação definitiva da figura do rei descrita no Antigo Testamento.

b) Jesus e a autoridade política
379 Jesus rejeita o poder opressivo e despótico dos grandes sobre nações (cf. Mc 10, 42) e suas pretensões de fazerem-se chamar benfeitores (cf. Lc 21, 25), mas nunca contesta diretamente as autoridades de seu tempo. Na diatribe sobre o tributo a ser pago a César (cf. Mc 12, 13-17; Mt 22, 15-22; Lc 20, 20-26), Ele afirma que se deve dar a Deus o que é de Deus, condenando implicitamente toda tentativa de divinizar e de absolutizar o poder temporal: somente Deus pode exigir tudo do homem. Ao mesmo tempo o poder temporal tem o direito àquilo que lhe é devido: Jesus não considera injusto o tributo a César.
Jesus, o Messias prometido, combateu e desbaratou a tentação de um messianismo político, caracterizado pelo domínio sobre as nações (cf. Mt 4, 8-11; Lc 4, 5-8). Ele é o Filho do Homem que veio «para servir e entregar a própria vida» (Mc 10, 45; cf. Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27). Aos discípulos que discutem sobre qual é o maior, Jesus ensina a fazer-se último e a servir a todos (cf. Mc 9, 33-35), indicando aos filhos de Zebedeu, Tiago e João, que ambicionam sentar-se à Sua direita, o caminho da cruz (cf. Mc 10, 35-40; Mt 20, 20-23).

c) As primeiras comunidades cristãs
380 A submissão, não passiva, mas por razões de consciência(Rm 13, 5) ao poder constituído corresponde à ordem estabelecida por Deus. São Paulo define as relações e os deveres dos cristãos para com as autoridades (cf. Rm 13, 1-7). Insiste no dever cívico de pagar os tributos: «Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito» (Rm 13, 7). O Apóstolo certamente não pretende legitimar todo poder, pretende antes ajudar os cristãos a «fazer o bem diante de todos os homens» (Rm 12, 7), também nas relações com a autoridade, na medida em que esta está ao serviço de Deus para o bem da pessoa (cf. Rm 13, 4; 1 Tm 2, 1-1; Tt 3, 1) e «para fazer justiça e exercer a ira contra aquele que pratica o mal» (Rm 13, 4).
São Pedro exorta os cristãos a submeter-se «a toda autoridade humana por amor a Deus» (1 Pe 2, 13). O rei e os seus governadores têm a função de «punir os malfeitores e premiar os bons» (cf. 1 Pe 2, 14). A sua autoridade deve ser «honrada», isto é, reconhecida, porque Deus exige um comportamento reto, que «emudeça a ignorância dos insensatos» (1 Pe 2, 15). A liberdade não pode ser usada para cobrir a própria malícia, mas para servir a Deus (cf. ibidem). Trata-se portanto de uma obediência livre e responsável a uma autoridade que faz respeitar a justiça, assegurando o bem comum.

381 A oração pelos governantes, recomendada por São Paulo durante as perseguições, indica explicitamente o que a autoridade política deve garantir: uma vida calma e tranqüila a transcorrer com toda a piedade e dignidade (cf. 1 Tm 2, 1-2). Os cristãos devem estar «prontos para qualquer boa obra» (Tt 3, 1), sabendo «dar provas de toda mansidão para com todos os homens» (Tt 3, 2), conscientes de ter sido salvos não pelas suas obras, mas pela misericórdia de Deus. Sem «o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido em profusão, por meio de Cristo, nosso Salvador» (Tt 3, 5-6), todos os homens são «insensatos, rebeldes, transviados, escravos de paixões de toda a espécie, vivendo na malícia e na inveja, detestáveis, odiando-nos uns aos outros» (Tt 3, 3). Não se deve esquecer a miséria da condição humana, marcada pelo pecado e resgatada pelo amor de Deus.

382 Quando o poder humano sai dos limites da vontade de Deus, se autodiviniza e exige submissão absoluta, torna-se a Besta do Apocalipse, imagem do poder imperial perseguidor, ébrio «do sangue dos santos e dos mártires de Jesus» (Ap. 17, 6). A Besta tem a seu serviço o «falso profeta» (Ap. 19, 20), que impele os homens a adorá-la com portentos que seduzem. Esta visão indica profeticamente todas as insídias usadas por Satanás para governar os homens, insinuando-se no seu espírito com a mentira. Mas Cristo é o Cordeiro Vencedor de todo poder que se absolutiza no curso da história humana. Em face de tais poderes, São João recomenda a resistência dos mártires: dessa maneira, os fiéis testemunham que o poder corrupto e satânico é vencido, porque já não tem ascendência alguma sobre eles.

383 A Igreja proclama que Cristo, vencedor da morte, reina sobre o universo que Ele mesmo resgatou. O Seu reino se estende a todo o tempo presente e terá fim somente quando tudo for entregue ao Pai e a história humana se consumar com o juízo final(cf. 1 Cor 15, 20-28). Cristo revela à autoridade humana, sempre tentada ao domínio, o seu significado autêntico e completo de serviço. Deus é o único Pai e Cristo o único mestre para todos os homens, que são irmãos. A soberania pertence a Deus. O Senhor, todavia, «não quis reter para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que esta é capaz de exercer, segundo as capacidades da própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O comportamento de Deus no governo do mundo, que demonstra tão grande consideração pela liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria dos que governam as comunidades humanas. Estes devem comportar-se como ministros da providência divina»[773].
A mensagem bíblica inspira incessantemente o pensamento cristão sobre o poder político, recordando que esse tem sua origem em Deus e, como tal, é parte integrante da ordem por Ele criada. Tal ordem é percebida pelas consciências e se realiza na vida social mediante a verdade, a justiça e a solidariedade, que conduzem à paz[774].

II. O FUNDAMENTO
E O FIM DA COMUNIDADE POLÍTICA  

a) Comunidade política, pessoa humana e povo
384 A pessoa humana é fundamento e fim da convivência política[775]. Dotada de racionalidade, é responsável pelas próprias escolhas e capaz de perseguir projetos que dão sentido à sua vida, tanto no plano individual como no plano social. A abertura para a Transcendência e para os outros é o traço que a caracteriza e distingue: somente em relação com a Transcendência e com os outros a pessoa humana alcança a plena e completa realização de si. Isto significa que para o homem, criatura naturalmente social e política, «a vida social ... não é qualquer coisa de acidental»[776], mas uma dimensão essencial e incancelável.
A comunidade política procede, portanto, da natureza das pessoas, cuja consciência «manifesta e obriga peremptoriamente a observar»[777] a ordem esculpida por Deus em todas as Suas criaturas: «uma ordem moral e religiosa, que, mais do que todos e quaisquer valores materiais, influi na direção e nas soluções que deve dar aos problemas da vida individual e comunitária, dentro das comunidades nacionais e nas relações entre estas»[778]. Tal ordem deve ser gradualmente descoberta e desenvolvida pela humanidade. A comunidade política, realidade conatural aos homens, existe para obter um fim comum, inatingível de outra forma: o crescimento em plenitude de cada um de seus membros, chamados a colaborar de modo estável para a realização do bem comum[779], sob o impulso da sua tensão natural para a verdade e para o bem.

385 A comunidade política tem na referência ao povo a sua autêntica dimensão: ela «é, e deve ser na realidade, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo»[780]. O povo não é uma multidão amorfa, uma massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada, mas sim um conjunto de pessoas, cada uma das quais ― «do próprio lugar e a seu modo»[781] ― tem a possibilidade de formar a própria opinião a respeito da coisa pública e a liberdade de exprimir a própria sensibilidade política e de fazê-la valer em maneira consoante com o bem comum. O povo «vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais .... é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções»[782]. Os que pertencem a uma comunidade política, mesmo sendo organicamente unidos entre si, conservam, não obstante, uma insuprimível autonomia no âmbito da existência pessoal e dos fins a perseguir.

386 O que, em primeiro lugar, caracteriza um povo é a partilha de vida e de valores, que é fonte de comunhão no âmbito espiritual e moral: «É que acima de tudo, ... há de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente espiritual: como intercomunicação de conhecimentos à luz da verdade, exercício de direitos e cumprimento de deveres, incentivo e apelo aos bens morais, gozo comum do belo em todas as suas legítimas expressões, permanente disposição de fundir em tesouro comum o que de melhor cada qual possua, anelo de assimilação pessoal de valores espirituais. Valores esses, nos quais se vivifica e orienta tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico, às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante evolução»[783].

387 A cada povo corresponde em geral uma nação, mas, por razões diversas, nem sempre as fronteiras nacionais coincidem com os confins étnicos[784]Aparece destarte a questão das minorias, que historicamente tem originado não poucos conflitos. O Magistério afirma que as minorias constituem grupos com direitos e deveres específicos. Em primeiro lugar, um grupo minoritário tem direito à sua própria existência: «Este direito pode ser desatendido de diversas maneiras, até aos casos extremos em que é negado, mediante formas manifestas ou indiretas de genocídio»[785]. Ademais, as minorias têm o direito de manter a sua cultura, incluindo a língua, bem como as suas convicções religiosas, incluindo a celebração do culto. Ao reivindicar legitimamente os próprios direitos, as minorias podem ser levadas a procurar uma maior autonomia ou até mesmo a independência: em tais delicadas circunstâncias, diálogo e negociação constituem o caminho para alcançar a paz. Em todo caso, o recurso ao terrorismo é injustificável e prejudicaria a causa que se pretende defender. As minorias em também deveres a cumprir, entre eles, antes de mais, a cooperação para o bem comum do Estado em que estão inseridas. Em particular, « um grupo minoritário tem o dever de promover a liberdade e a dignidade de cada um dos seus membros, e de respeitar as opções de cada indivíduo seu, mesmo quando alguém decidisse passar à cultura majoritária»[786].

b) Tutelar e promover os direitos humanos
388 Considerar a pessoa humana como fundamento e fim da comunidade política significa esforçar-se, antes de mais, pelo reconhecimento e pelo respeito da sua dignidade mediante a tutela e a promoção dos direitos fundamentais e inalienáveis do homem: « No tempo moderno, a atuação do bem comum encontra a sua indicação de fundo nos direitos e nos deveres da pessoa»[787]. Nos direitos humanos estão condensadas as principais exigências morais e jurídicas que devem presidir à construção da comunidade política. Tais direitos constituem uma norma objetiva que está na base do direito positivo e que não pode ser ignorada pela comunidade política, porque a pessoa lhe é ontológica e teleologicamente anterior: o direito positivo deve garantir a satisfação das exigências humanas fundamentais.

389. A comunidade política persegue o bem comum atuando com vista à criação de um ambiente humano em que aos cidadãos seja oferecida a possibilidade de um real exercício dos direitos humanos e de um pleno cumprimento dos respectivos deveres: «Atesta a experiência que, faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com “respeito à economia, à administração pública, a instrução”, sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever»[788].
A plena realização do bem comum requer que a comunidade política desenvolva, no âmbito dos direitos humanos, uma ação dúplice e complementar, de defesa e de promoção: «Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los»[789].

c) A convivência baseada na amizade civil

390 O significado profundo da convivência civil e política não emerge imediatamente do elenco dos direitos e deveres da pessoaTal convivência só adquire todo o seu significado se for baseada na amizade civil e na fraternidade[790]. De fato, o campo do direito é o do interesse tutelado e do respeito exterior, da proteção dos bens materiais e da sua repartição de acordo com regras estabelecidas; o campo da amizade é, pelo contrário, o do desinteresse, do desprendimento dos bens materiais, da sua doação, da disponibilidade interior às exigências do outro[791]A amizade civil[792], assim entendida, é a atuação mais autêntica do princípio de fraternidade, que é inseparável do de liberdade e de igualdade[793]. Trata-se de um princípio que permaneceu em grande parte não realizado nas sociedades políticas modernas e contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias individualistas e coletivistas.

391 Uma comunidade é solidamente fundada quando tende para a promoção integral da pessoa e do bem comum: neste caso, o direito é definido, respeitado e vivido também de acordo com as modalidades da solidariedade e da dedicação ao próximo. A justiça exige que cada um possa gozar dos próprios bens e dos próprios direitos e pode ser considerada como a medida mínima do amor[794]. A convivência torna-se tanto mais humana quanto mais é caracterizada pelo esforço em prol de uma consciência mais madura do ideal para o qual deve tender, a saber, a «civilização do Amor»[795].
O homem é uma pessoa, não só um indivíduo[796]. O termo «pessoa» indica uma «natureza dotada de inteligência e vontade livre»[797]: é portanto uma realidade bem superior à de um sujeito que se exprime nas necessidades produzidas pela mera dimensão material. Com efeito, a pessoa humana, mesmo participando ativamente na obra que tem por objetivo a satisfação das necessidades no seio da sociedade familiar, civil e política, não encontra a sua realização completa enquanto não supera a lógica da necessidade para projetar-se na lógica da gratuidade e do dom, a qual corresponde mais plenamente à sua essência e à sua vocação comunitária.

392 O preceito evangélico da caridade ilumina os cristãos sobre o significado mais profundo da convivência política. Para torná-la verdadeiramente humana, «nada existe de mais importante que desenvolver o sentimento íntimo da justiça, da bondade, a dedicação ao bem comum e tornar mais sólidas as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade política e também acerca do reto exercício e dos limites da autoridade pública»[798]. O objetivo que os fiéis se devem propor é o da realização de relações comunitárias entre as pessoas. A visão cristã da sociedade política confere o maior relevo ao valor da comunidade, seja como modelo organizativo da convivência, seja como estilo de vida quotidiana.

III. A AUTORIDADE POLÍTICA

a) O fundamento da autoridade política
393 A Igreja tem se confrontado com diversas concepções de autoridade, tendo sempre o cuidado de defender e propor um modelo fundado na natureza social das pessoas: «Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode “subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus”»[799]A autoridade política é, portanto, necessária[800]em função das tarefas que lhe são atribuídas e deve ser uma componente positiva e insubstituível da convivência civil[801].

394 A autoridade política deve garantir a vida ordenada e reta da comunidade, sem tomar o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas disciplinando-a e orientando-a, no respeito e na tutela da independência dos sujeitos individuais e sociais, para a realização do bem comum. A autoridade política é o instrumento de coordenação e direção mediante o qual os indivíduos e os corpos intermédios se devem orientar para uma ordem cujas relações, instituições e procedimentos estejam ao serviço do crescimento humano integral. O exercício da autoridade política, com efeito, «quer no interior da comunidade como tal, quer nos organismos que representam o Estado, deve desenrolar-se sempre dentro dos limites da ordem moral, em vistas do bem comum ― considerado dinamicamente ― segundo a ordem jurídica legitimamente instituída ou a instituir. Então, os cidadãos estão obrigados em consciência a obedecer»[802].

395 O sujeito da autoridade política é o povo considerado na sua totalidade como detentor da soberania. O povo, de modos diferentes, transfere o exercício da sua soberania para aqueles que elege livremente como seus representantes, mas conserva a faculdade de a fazer valer no controlo da atuação dos governantes e também na sua substituição, caso não cumpram de modo satisfatório as suas funções. Se bem que este seja um direito válido em qualquer Estado e em qualquer regime político, o sistema da democracia, graças aos seus procedimentos de controlo, consente e garante uma melhor realização do direito sobredito[803]. No entanto, o mero consenso popular não é suficiente para que as modalidades de exercício da autoridade política sejam consideradas justas.

b) A autoridade como força moral
396 A autoridade, pois, deve deixar-se guiar pela lei moral: toda a sua dignidade deriva do desenrolar-se no âmbito da ordem moral[804], «a qual tem a Deus como princípio e fim»[805]. Em razão da necessária referência à ordem moral, que a precede e funda, das suas finalidades e dos destinatários, a autoridade não pode ser entendida como uma força que encontra a sua norma em valores de caráter puramente sociológico e histórico: «Algumas, infelizmente, não reconhecem a existência da ordem moral: ordem transcendente, universal e absoluta, de igual valor para todos. Deste modo impossibilitam-se o contato e o entendimento pleno e confiado, à luz de uma mesma lei de justiça, por todos admitida e observada»[806]. Esta ordem «não pode existir sem Deus: separada dele, desintegra-se»[807]. É precisamente desta ordem que a autoridade obtém a virtude de obrigar[808] e a própria legitimidade moral[809]; não do arbítrio ou da vontade de poder[810], e está obrigada a traduzir tal ordem nas ações concretas para alcançar o bem comum[811].

397 A autoridade deve reconhecer, respeitar e promover os valores humanos e morais essenciais. Estes são inatos, «derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir»[812]. Estes não encontram fundamento nas «maiorias» de opinião provisórias e mutáveis, mas devem ser simplesmente reconhecidos, respeitados e promovidos como elementos de uma lei moral objetiva, lei natural inscrita no coração do homem (cf. Rm 2,15), e ponto de referência normativo da mesma lei civil[813]. Quando por um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o ceticismo chegasse a por em dúvida os princípios fundamentais da lei moral[814], o próprio ordenamento estatal e contrapostos seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação pragmática dos diversos e contrapostos interesses[815].

398 A autoridade deve exarar leis justas, isto é, em conformidade com a dignidade da pessoa humana e com os ditames da reta razão: «A lei humana é tem valor de lei enquanto é conforme com a reta razão, e isso põe de manifesto que deriva da lei eterna. Quando, pelo contrário, uma lei se afasta da razão, se diz lei iníqua; neste caso, deixa de ser lei e se torna bem mais um ato de violência»[816]. A autoridade que comanda segundo razão coloca o cidadão em relação, não tanto de sujeição a um outro homem, mas antes de obediência à ordem moral e, portanto, a Deus mesmo que é a sua fonte última[817]. Quem nega obediência à autoridade que age segundo a ordem moral «opõe-se à ordem estabelecida por Deus» (Rm 13, 1-2)[818]. Analogamente a autoridade pública, que tem o seu fundamento na natureza humana e pertence à ordem preestabelecida por Deus[819], caso não se esforce por realizar o bem comum, desatende o seu fim próprio e por isso mesmo se deslegitima.
c) O direito à objeção de consciência
399 O cidadão não está obrigado em consciência a seguir as prescrições das autoridades civis se forem contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho[820]. As leis injustas põem os homens moralmente retos frente a dramáticos problemas de consciência: quanto são chamados a colaborar em ações moralmente más, têm a obrigação de recusar-se[821]Além de ser um dever moral, esta recusa é também um direito humano basilar que, precisamente porque tal, a própria lei civil deve reconhecer e proteger: « Quem recorre à objeção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, econômico e profissional»[822].
É um grave dever de consciência não prestar colaboração, nem mesmo formal, àquelas práticas que, embora admitidas pela legislação civil, contrastam com a lei de Deus. Tal colaboração, com efeito, nunca pode ser justificada, nem invocando o respeito da liberdade alheia, nem se apoiando no fato de que a lei civil a prevê e exige. À responsabilidade moral pelos atos efetuados ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre esta responsabilidade cada qual será julgado pelo próprio Deus (Rm 2, 6; 14, 12).

d) O direito de resistir

400 Reconhecer que o direito natural funda e limita o direito positivo significa admitir que é legítimo resistir à autoridade caso esta viole grave e repetidamente os princípios do direito natural. Santo Tomás de Aquino escreve que «se deve obedecer (...) na medida em que a ordem da justiça assim o exija»[823]. Portanto, o fundamento do direito de resistência é direito de natureza.
Diversas podem ser as manifestações concretas que a realização de tal direito pode assumir. Vários podem ser também os fins perseguidos. A resistência à autoridade visa reafirmar a validade de uma diferente visão das coisas, quer quando se procura obter uma mudança parcial, modificando por exemplo algumas leis, quer quando se pugna por uma mudança radical da situação.

401 A doutrina social indica os critérios para o exercício da resistência: «A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, salvo quando se ocorrerem conjuntamente as seguintes condições: 1. em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; 2. depois de ter esgotado todos os outros recursos; 3. sem provocar desordens piores; 4. que haja uma esperança fundada de êxito; 5. se for impossível prever razoavelmente soluções melhores»[824]. A luta armada é contemplada como extremo remédio para pôr fim a uma «tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país»[825]. A gravidade dos perigos que o recurso à violência hoje comporta leva a considerar preferível o caminho da resistência passiva, «mais conforme aos princípios morais e não menos prometedor do êxito»[826].

e) Infligir as penas
402 Para tutelar o bem comum, a legítima autoridade pública deve exercitar o direito e o dever de infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos[827]. O Estado tem pois o dúplice dever de reprimir os comportamentos lesivos dos direitos do homem e das regras fundamentais de uma convivência civil, assim como de reparar, mediante o sistema das penas, a desordem causada pela ação delituosa. No Estado de direito, o poder de infligir as penas é corretamente confiado à Magistratura: «As Constituições dos Estados modernos, ao definirem as relações que devem existir entre o poder legislativo, o executivo e o judiciário, garantem a este último a necessaria independência no âmbito da lei»[828].

403 A pena não serve unicamente para o fim de defender a ordem pública e de garantir a segurança das pessoas; esta torna-se, outrossim, um instrumento de correção do culpado, um correção que assume também o valor moral de expiação quando o culpado aceita voluntariamente a sua pena[829]. A finalidade à qual tender, é dúplice: de um lado favorecer a reinserção das pessoas condenadas; de outro lado promover uma justiça reconciliadora, capaz de restaurar as relações de convivência harmoniosa quebrantadas pelo ato criminoso.
A este propósito, é importante a atividade que os capelães dos cárceres são chamados a desenvolver, não só sob o aspecto especificamente religioso, como também em defesa da dignidade das pessoas detidas. Lamentavelmente, as condições em que cumprem a pena não favorecem sempre o respeito pela sua dignidade; não raro as prisões se tornam até mesmo teatro de novos crimes. Contudo, o ambiente dos institutos penais oferece um terreno privilegiado onde testemunhar, uma vez mais, a solicitude cristã no campo social: «estava na prisão e viestes ver-me» (Mt 25, 35-36).

404 A atividade dos ofícios encarregados do acertamento da responsabilidade penal, que é sempre de caráter pessoal, deve tender à rigorosa busca da verdade e deve ser conduzida no pleno respeito dos direitos da pessoa humana: trata-se de assegurar os direitos do culpado como os do inocente. Sempre se deve ter presente o princípio jurídico geral pelo qual não se pode cominar uma pena sem que antes se tenha provado o delito.
No curso das investigações deve ser escrupulosamente observada a regra que interdita a prática da tortura: «O discípulo de Cristo rejeita todo recurso a tais meios, de modo algum justificável e no qual a dignidade do homem é aviltada tanto naquele que é espancado quanto no seu algoz»[830]. Os instrumentos jurídicos internacionais referentes asos direitos do homem indicam justamente a proibição da tortura como um princípio que em circunstância alguma se pode derrogar.
Há de ser, outrossim, excluído: « o recurso a uma detenção motivada apenas pela tentativa de obter notícias significativas para o processo»[831]. Ademais, deve ser assegurada «a rapidez dos processos: uma sua excessiva duração torna-se intolerável para os cidadãos e acaba por se traduzir em uma verdadeira e própria injustiça»[832].
Os magistrados estão obrigados à devida reserva no desenrolar das suas diligências para não violar o direito dos inquiridos e para não debilitar o princípio da presunção de inocência. Dado que um juiz também esta sujeito a errar, é oportuno que a legislação determine uma côngrua indenização para a vítima de um erro judiciário.

405 A Igreja vê como sinal de esperança «a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social—, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir»[833]. Embora o ensiamento tradicional da Igreja não exclua ― uma vez comprovadas cabalmente a identidade e da responsabilidade do culpado ― a pena de morte «se esta for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto»[834], os métodos não cruentos de repressão e de punição são de preferir «porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana»[835]. O crescente número de países que adotam medidas para abolir a pena de morte ou para suspender sua aplicação é também uma prova do fato de que os casos em que os casos em que é absolutamente necessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes»[836]. A crescente aversão da opinião pública à pena de morte e às várias medidas em vista da sua abolição ou da suspensão da sua aplicação, constituem manifestações visíveis de uma maior sensibilidade moral.
IV. O SISTEMA DA BUROCRACIA

406 Um juízo explícito e articulado sobre a democracia se encontra na Encíclica «Centesimus annus»: «A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da “subjetividade” da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e co-responsabilidade»[837].

a) Os valores e a democracia
407 Uma autêntica democracia não é o somente o resultado de um respeito formal de regras, mas é o fruto da convicta aceitação dos valores que inspiram os procedimentos democráticosa dignidade da pessoa humana, o respeito dos direitos do homem, do fato de assumir o « bem comum » como fim e critério regulador da vida política. Se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade.
A doutrina social individua um dos riscos maiores para as atuais democracias no relativismo ético, que induz a considerar inexistente um critério objetivo e universal para estabelecer o fundamento e a correta hierarquia dos valores: «Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as idéias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra»[838]. A democracia é fundamentalmente «um “ordenamento” e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu caráter « moral » não é automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa»[839].

b) Instituições e democracia
408 O Magistério reconhece a validade do princípio concernente à divisão dos poderes em um Estado:«é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do “Estado de direito”, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens»[840].
No sistema democrático, a autoridade política é responsável diante do povo. Os organismos representativos devem estar submetidos a um efetivo controle por parte do corpo social. Este controle é possível antes de tudo através de eleições livres, que permitem a escolha assim como a substituição dos representantes. A obrigação, por parte dos eleitos, de prestar contas acerca da sua atuação, garantida pelo respeito dos prazos do mandato eleitoral, é elemento constitutivo da representação democrática.
409 No seu campo específico (elaboração de leis, atividade de governo e controle sobre a mesma), os eleitos devem empenhar-se na busca e na realização de tudo aquilo que possa favorecer ao bom andamento da convivência civil no seu conjunto[841]. A obrigação que os governantes têm de responder aos governados não implica de modo algum que os representantes sejam simples agentes passivos dos eleitores. O controle exercido pelos cidadãos, de fato, não exclui a necessária liberdade de que devem gozar no cumprimento de seu mandato em relação aos objetivos a perseguir: estes não dependem exclusivamente de interesses de parte, mas em medida muito maior da função de síntese e de mediação em vista do bem comum, que constitui uma das finalidades essenciais e irrenunciáveis da autoridade política.

c) Os componentes morais da representação política
410 Aqueles que têm responsabilidades políticas não devem esquecer ou subestimar a dimensão moral da representação, que consiste no empenho de compartilhar a sorte do povo e em buscar a solução dos problemas sociais. Nesta perspectiva, autoridade responsável significa também autoridade exercida mediante o recurso às virtudes que favorecem o exercício do poder com espírito de serviço[842] (paciência, caridade, modestia, moderação, esforço de partilha); uma autoridade exercida por pessoas capazes de assumir autenticamente como finalidade do próprio agir o bem comum e não o prestígio ou a aquisição de vantagens pessoais.
411 Entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves[843] porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social; compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados; introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o conseqüente enfraquecimento das instituições. A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelares e favores dos governantes. Deste modo, as opções políticas favorecem os objetivos restritos de quantos possuem os meios para influenciá-las e impedem a realização do bem comum de todos os cidadãos.

412 A administração pública, em qualquer nível — nacional, regional, municipal —, como instrumento do Estado, tem por finalidade servir os cidadãos: «Posto ao serviço dos cidadãos, o Estado é o gestor dos bens do povo, que deve administrar tendo em vista o bem comum»[844]. Contrasta com esta perspectiva o excesso de burocratização, que se verifica quando «as instituições, ao tornarem-se complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado»[845]. O papel de quem trabalha na administração pública não se deve conceber como algo de impessoal e de burocrático, mas como uma ajuda pressurosa para os cidadãos, desempenhado com espírito de serviço.

d) Instrumentos de participação política
413 Os partidos políticos têm a função de favorecer uma participação difusa e o acesso de todos às responsabilidades públicas. Os partidos são chamados a interpretar as aspirações da sociedade civil orientando-as para o bem comum[846], oferecendo aos cidadãos a possibilidade efetiva de concorrer para a formação das opções políticas. Os partidos devem ser democráticos no seu interior, capazes de síntese política e de formulação de projetos.
Um outro instrumento de participação política é o referendum, em que se realiza uma forma direta de acesso às escolhas políticas. O instituto da representação, de fato, não exclui que os cidadãos possam ser interpelados diretamente em vista das escolhas de maior relevo da vida social.

e) Informação e democracia

414 A Informação está entre os principais instrumentos de participação democrática. Não é pensável participação alguma sem o conhecimento dos problemas da comunidade política, dos dados de fato e das várias propostas de solução dos problemas. É necessário assegurar um real pluralismo neste delicado âmbito da vida social, garantindo uma multiplicidade de formas e de instrumentos no campo da informação e da comunicação, facilitando também condições de igualdade na posse e no uso de tais instrumentos mediante leis apropriadas. Entre os obstáculos que se opõem à realização plena do direito à objetividade da informação[847], merece especial atenção o fenômeno das concentrações editoriais e televisivas, com perigosos efeitos para o inteiro sistema democrático quando a tal fenômeno correspondem liames cada vez mais estreitos entre a atividade governativa, os poderes financeiros e a informação.

415 Os meios de comunicação social devem ser utilizados para edificar e apoiar a comunidade humana, nos vários setores, economico, politico, cultural, educativo, religioso[848]: «A informação dos meios de comunicação social está a serviço do bem comum. A sociedade tem direito a uma informação fundada sobre a verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade»[849].
A questão essencial concernente ao atual sistema informativo é se ele contribui a tornar a pessoa humana verdadeiramente melhor, isto é, espiritualmente mais madura, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberta aos outros, sobretudo aos mais necessitados e aos mais pobres. Um outro aspecto de grande importância é a necessidade de que as novas tecnologias respeitem as legítimas diferenças culturais.

416 No mondo dos meios de comunicação social as dificuldades intrínsecas da comunicação não raro são agigantadas pela ideologia, pelo desejo de lucro e de controle político, por rivalidades e conflitos entre grupos, e por outros males sociais. Os valores e os princípios morais valem também para o setor das comunicações sociais: «A dimensão ética está relacionada não só ao conteúdo da comunicação (a mensagem) e o processo de comunicação (o modo de comunicar), mas nas questões fundamentais das estruturas e sistemas, que com freqüência incluem grandes problemas de política que dependem da distribuição de tecnologia e produtos sofisticados (quem serão os ricos de informação e os pobres de informação?) »[850].
Em todas as três áreas da mensagem, do processo, das questões estruturais é sempre válido um princípio moral fundamental: a pessoa e a comunidade humana são o fim e a medida do uso dos meios de comunicação socialUm segundo princípio é complementar ao primeiro: o bem das pessoas não pode realizar-se independentemente do bem comum das comunidades a que pertencem[851]. É necessária uma participação no processo decisório referente à política das comunicações. Tal participação, de forma pública, deve ser autenticamente representativa e não voltada a favorecer grupos particulares, quando os meios de comunicação perseguem fins lucrativos[852].

V. A COMUNIDADE POLÍTICA
A SERVIÇO DA COMUNIDADE CIVIL
a) O valor da comunidade civil
417 A comunidade política é constituída para estar ao serviço da sociedade civil, da qual deriva. Para a distinção entre comunidade política e sociedade civil, a Igreja contribuiu sobretudo com sua visão do homem, entendido como ser autônomo, relacional, aberto à Transcendência, contrastada quer pelas ideologias políticas de caráter individualista, quer pelas ideologias totalitárias tendentes a absorver a sociedade civil na esfera do Estado. O empenho da Igreja em favor do pluralismo social visa a conseguir uma realização mais adequada do bem comum e da própria democracia, segundo os princípios da solidariedade, da subsidiariedade e da justiça.
A sociedade civil é um conjunto de realizações e de recursos culturais e associativos, relativamente autônomos em relação ao âmbito tanto político como econômico: «O fim da sociedade civil é universal, porque é aquele que diz respeito ao bem comum, al qual todos e cada um dos cidadãos têm direita na devida proporção»[853]. Esta caracteriza-se pela própria capacidade de projeto, orientada a favorecer uma convivência social mais livre e mais justa, em que vários grupos de cidadãos, mobilizando-se para elaborar e exprimir as próprias orientações, para fazer frente às suas necessidades fundamentais, para defender legítimos interesses.

b) O primado da comunidade civil
418 A comunidade política e a sociedade civil, embora reciprocamente coligadas e interdependentes, não são iguais na hierarquia dos fins. A comunidade política está essencialmente ao serviço da sociedade civil e, em última análise, das pessoas e dos grupos que a compõem[854]. A sociedade civil, portanto, não pode ser considerada um apêndice ou uma variável da comunidade política: antes, ela tem a preeminência, porque justifica radicalmente a existência da comunidade política.
O Estado deve fornecer um quadro jurídico adequado ao livre exercício das atividades dos sujeitos sociais e estar pronto a intervir, sempre que for necessário, e respeitando o princípio de subsidiariedade, para orientar para o bem comum a dialética entre as livres associações ativas na vida democrática. A sociedade civil é heterogênea e articulada, não desprovida de ambigüidades e de contradições: é também lugar de embate entre interesses diversos, com o risco de que o mais forte prevaleça sobre o mais indefeso.

c) A aplicação do princípio de subsidiariedade
419 A comunidade política está obrigada regular as próprias relações com comunidade civil de acordo com o princípio de subsidiariedade[855]: é essencial que o crescimento da vida democrática tenha início no tecido social. As atividades da sociedade civil ― sobretudo voluntariado cooperação no âmbito do privado-social, sinteticamente definido como «setor terciário » para distingui-lo dos âmbitos do Estado e do mercado ― constituem as modalidades mais adequadas para desenvolver a dimensão social da pessoa, que em tais atividades pode encontrar espaço para exprimir-se plenamente. A progressiva expansão das iniciativas sociais fora da esfera estatal cria novos espaços para a presença ativa e para a ação direta dos cidadãos, integrando as funções atuadas pelo Estado. Tal importante fenômeno tem sido freqüentemente atuado por caminhos e com instrumentos largamente informais, dando vida a modalidades novas e positivas de exercício dos direitos da pessoa, que enriquecem qualitativamente a vida democrática.

420 A cooperação, mesmo nas suas formas menos estruturadas, delineia-se como uma das respostas mais fortes à lógica do conflito e da concorrência sem limites, que hoje se revela prevalente. As relações que se instauram num clima cooperativo e solidário superam as divisões ideológicas, estimulando a busca daquilo que une para além daquilo que divide.
Muitas experiências de voluntariado constituem um ulterior exemplo de grande valor, que leva a considerar a sociedade civil como lugar onde é sempre possível a recomposição de uma ética pública centrada na solidariedade, na colaboração concreta, no diálogo fraterno. Em face das potencialidades que assim se manifestam, os católicos são chamados a olhar com confiança e a oferecer própria obra pessoal para o bem da comunidade em geral e, em particular, para o bem dos mais fracos e dos mais necessitados. É também dessa forma que se afirma o princípio da «subjetividade da sociedade»[856].


VI. O ESTADO
E AS COMUNIDADES RELIGIOSAS
421 O Concílio Vaticano II empenhou da Igreja Católica na promoção da liberdade religiosa. A Declaração «Dignitatis humanae» precisa, no subtítulo, que entende proclamar «o direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil, em matéria religiosa». Para que tal liberdade querida por Deus e inscrita na natureza humana possa ser exercitada, não deve ser obstaculizada, dado que «a verdade não se impõe de outro modo senão pela força dessa mesma verdade»[857]. A dignidade da pessoa e a mesma natureza da busca de Deus exigem que todos os homens gozem de imunidade de toda coação no campo religioso[858]. A sociedade e o Estado não devem forçar uma pessoa a agir contra a sua consciência, nem impedi-la de proceder de acordo com ela[859]. A liberdade religiosa, porém, não é licença moral de aderir ao erro, nem um implícito direito ao erro[860].
422 A liberdade de consciência e de religião «diz respeito ao homem individual e socialmente»[861]: o direito à liberdade religiosa deve ser reconhecido no ordenamento jurídico e sancionado como direito civil[862], todavia, não é em si um direito ilimitado. Os justos limites ao exercício da liberdade religiosa devem ser determinados para cada situação social com a prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificados pela autoridade civil mediante normas jurídicas conformes à ordem moral objetiva: tais normas são exigidas «pela tutela eficaz e pacífica harmonia dos direitos de todos os cidadãos; pelo suficiente zelo pela honesta paz pública, que é a ordenada convivência na verdadeira justiça; e pela devida salvaguarda da moralidade pública»[863].

423 Em consideração dos seus liames históricos e culturais com uma nação, uma comunidade religiosa pode receber um especial reconhecimento por parte do estado: mas um tal reconhecimento jurídico não deve, de modo algum, gerar uma discriminação de ordem civil ou social para outros grupos religiosos[864]. A visão das relações entre os Estados e as organizações religiosas, promovida pelo Concílio Vaticano II, corresponde às exigências do Estado de direito e às normas do direito internacional[865]. A Igreja é bem consciente de que tal visão não é aceite por todos: o direito à liberdade religiosa, infelizmente, «é violado por numerosos Estados, até ao ponto que dar, ou fazer dar, ou receber a catequese passa a ser um delito passível de sanção»[866].

424 A Igreja e a comunidade política, embora exprimindo-se ambas com estruturas organizativas visíveis, são de natureza diversa quer pela sua configuração, quer pela finalidade que perseguem. O Concílio Vaticano II reafirmou solenemente: «No terreno que lhe é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas»[867]. A Igreja organiza-se com formas aptas a satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis, ao passo que as diversas comunidades políticas geram relações e instituições ao serviço de tudo o que se compreende no bem comum temporal. A autonomia e a independência das duas realidades mostram-se claramente, sobretudo na ordem dos fins.
O dever de respeitar a liberdade religiosa impõe à comunidade política garantir à Igreja o espaço de ação necessário. A Igreja, por outro lado, não tem um campo de competência específica no que respeita à estrutura da comunidade política: «A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional»[868] e tampouco é tarefa da Igreja entrar no mérito dos programas políticos, a não ser por eventuais conseqüências religiosas ou morais.

b) Colaboração
425 A autonomia recíproca da Igreja e da comunidade política não comporta uma separação tal que exclua a colaboração entre elas: ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. A Igreja e a comunidade política, com efeito, se exprimem em formas organizativas que não estão serviço delas próprias, mas ao serviço do homem, para consentir-lhe o pleno exercício dos seus direitos, inerentes à sua identidade de cidadão e de cristão, e um correto cumprimento dos correspondentes deveres. A Igreja e a comunidade política podem desempenhar «tanto mais eficazmente este serviço para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma sã colaboração, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo»[869].

426 A Igreja tem o direito ao reconhecimento jurídico da própria identidade. Precisamente porque a sua missão abraça toda a realidade humana, a Igreja, sentindo-se «real e intimamente solidária do gênero humano e da sua história»[870], reivindica a liberdade de exprimir o seu juízo moral sobre tal realidade, todas as vezes que a defesa dos direitos fundamentais da pessoa ou da salvação das almas assim o exigirem[871].
A Igreja, portanto, pede: liberdade de expressão, de ensino, de evangelização; liberdade de manifestar o culto em público; liberdade de organizar-se e ter regulamentos internos próprios; liberdade de escolha, de educação, de nomeação e transferência dos próprios ministros; liberdade de construir edifícios religiosos; liberdade de adquirir e de possuir bens adequados à própria atividade; liberdade de associar-se para fins não só religiosos, mas também educativos, culturais, sanitários e caritativos[872].

427 Para prevenir ou apaziguar os possíveis conflitos entre a Igreja e a comunidade política, a experiência jurídica da Igreja e do Estado tem delineado formas estáveis de acordos e instrumentos aptos a garantir relações harmoniosas. Tal experiência é um ponto de referência essencial para todos os casos em que o Estado tenha a pretensão de invadir o campo de ação da Igreja, criando obstáculos para a sua livre atividade até mesmo perseguindo-a abertamente ou, vice-versa, nos casos em que organizações eclesiais não ajam corretamente em relação ao Estado.

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