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domingo, 19 de abril de 2020

A VIDA ECONÔMICA I. ASPECTOS BÍBLICOS

CAPÍTULO VII
A VIDA ECONÔMICA
 I. ASPECTOS BÍBLICOS

a) O homem, pobreza e riqueza

323 No antigo Testamento se percebe uma dupla postura em relação aos bens econômicos e a riqueza. Por um lado, apreço em relação a disponibilidade dos bens materiais considerados necessários para a vida: por vezes a abundância ― mas não a riqueza e o luxo ― é vista como uma bênção de Deus. Na literatura sapiencial, a pobreza é descrita como uma conseqüência negativa do ócio e da falta de laboriosidade (cf. Prov 10,4), mas também como fato natural (cf. Prov 22,2). Por um outro lado, os bens econômicos e a riqueza não são condenados por si mesmo, mas pelo seu mau uso. A tradição profética estigmatiza as fraudes, a usura, a exploração, as injustiças manifestas, freqüentes em relação aos mais pobres (cf. Is 58,3-11; Jr 7,4-7; Os 4,1-2; Am 2,6-7; Mq 2,1-2). Tais tradições, mesmo considerando um mal a pobreza dos oprimidos, dos fracos, dos indigentes, neles vê também um símbolo da situação do homem diante de Deus; d’Ele provêm todos os bens como dom a ser administrado e a ser partilhado.

324 Aquele que reconhece a própria pobreza diante de Deus, qualquer que seja a situação que esteja vivendo, é objeto de particular atenção da parte de Deus: quando o pobre O procura, o Senhor responde; quando grita, Ele o escuta. Aos pobres se dirigem as promessas divinas: eles serão os herdeiros da aliança entre Deus e o seu povo. A intervenção salvífica de Deus se atenuará através de um novo David (cf. Ez 34,22-31), o qual, como e mais que o Rei David, será defensor dos pobres e promotor da justiça; ele estabelecerá uma nova aliança e escreverá uma nova lei no coração dos fiéis (cf. Jr 31,31-34).
A pobreza, quando é aceita ou procurada com espírito religioso, predispõem ao reconhecimento e à aceitação da ordem criatural; o «rico», nesta perspectiva, é aquele que repõem a sua confiança nas coisas que possui mais que em Deus, o homem que se faz forte pela obra de suas mãos e que confia somente nesta força. A pobreza assume o valor moral quando se manifesta como humilde disponibilidade e abertura para com Deus, confiança n’Ele. Estas atitudes tornam o homem capaz de reconhecer a relatividade dos bens econômicos e dos tratados como dons divinos da administração e da partilha, porque a propriedade originária de todos os bens pertence a Deus.

325 Jesus assume toda a tradição do Antigo Testamento também sobre os bens econômicos, sobre a riqueza e sobre a pobreza, conferindo-lhe uma definitiva clareza e plenitude (cf. Mt 6,24 e 13,22; Lc 6,20-24 e 12,15-21; Rm 14,6-8 e 1 Tm 4,4). Ele, doando o Seu Espírito e mudando o coração, vem instaurar o «Reino de Deus», de modo a tornar possível uma nova convivência na justiça, na fraternidade, na solidariedade e na partilha. O Reino inaugurado por Cristo aperfeiçoa a bondade originária da criação e da atividade humana, comprometida pelo pecado. Liberado do mal e reintroduzido na comunhão com Deus, cada homem pode continuar a obra de Jesus, com a ajuda do Seu Espírito: fazer justiça aos pobres, resgatar os oprimidos, consolar os aflitos, buscar ativamente uma nova ordem social, em que se ofereçam adequadas soluções à pobreza material e venham impedidas mais eficazmente as forças que dificultam as tentativas dos mais fracos de liberarem-se de uma condição de miséria e de escravidão. Quando isto acontece, o Reino de Deus se faz já presente sobre esta terra, embora não lhe pertença. Nisto encontrarão finalmente cumprimento as promessas dos Profetas.

326 À luz da Revelação, a atividade econômica deve ser considerada e desenvolvida como resposta reconhecida à vocação que Deus reserva a cada homem. Ele é colocado no jardim para cultivá-lo e guardá-lo, usando-o dentro de limites bem precisos (cf. Gn 2,16-17), no esforço de aperfeiçoamento (cf. Gn 1,26-30; 2,15-16; Sab 9,2-3). Fazendo-se testemunha da grandeza e da bondade do Criador, o homem caminha para a plenitude da liberdade em que Deus o chama. Uma boa administração dos dons recebidos, também dos dons materiais, é obra de justiça para consigo mesmo e para com os outros homens: aquilo que se recebe deve ser bem utilizado, conservado, acrescido, tal como ensina a parábola dos talentos (cf. Mt 25,14-31; Lc 19,12-27).
A atividade econômica e o progresso material devem ser colocados a serviço do homem e da sociedade; se a eles nos dedicarmos com a fé, a esperança e a caridade dos discípulos de Cristo, a própria economia e o progresso podem ser transformados em lugares de salvação e de santificação; nestes âmbitos também é possível dar expressão a um amor e a uma solidariedade mais que humanas e contribuir para o crescimento de uma humanidade nova, que prefigure o mundo dos últimos tempos[683]. Jesus sintetiza toda a Revelação pedindo ao crente enriquecer diante de Deus (cf. Lc 12,21): também a economia é útil para este fito, quando não trai a sua função de instrumento para o crescimento global do homem e das sociedades, da qualidade humana da vida.

327 A fé em Jesus Cristo consente uma correta compreensão do progresso social, no contexto de um humanismo integral e solidário. Para tal fim, é assaz útil o contributo da reflexão teológica oferecido pelo Magistério social: «A fé em Cristo Redentor, ao mesmo tempo que ilumina a partir de dentro a natureza do desenvolvimento, orienta também no trabalho de colaboração. Na Carta de São Paulo aos Colossenses lemos que Cristo é “o primogênito de toda a criatura”, e que “tudo foi criado por Ele e para Ele” (1, 15-16). Com efeito, todas as coisas “subsistem n’Ele”, porque “foi do agrado de Deus que residisse n’Ele toda a plenitude e, por seu intermédio, reconciliar consigo todas as coisas” (ibid. 1, 20). Neste plano divino, que começa na eternidade em Cristo, “imagem” perfeita do Pai, e culmina n’Ele “primogênito dos redivivos” (ibid. 1, 15. 18), insere-se a nossa história, marcada pelo nosso esforço pessoal e coletivo para elevar a condição humana, superar os obstáculos que reaparecem continuamente ao longo do nosso caminho, dispondo-nos assim a participar na plenitude que “reside no Senhor” e que Ele comunica “ao seu Corpo, que é a Igreja” (ibid. 1, 18; cf. Ef 1, 22-23); enquanto que o pecado, o qual sempre nos insidia e compromete as nossas realizações humanas, é vencido e resgatado pela “reconciliação” operada por Cristo (cf. Col 1, 20)»[684].

b) As riquezas existem para ser partilhadas

328 Os bens, ainda que legitimamente possuídos, mantêm sempre uma destinação universal: é imoral toda a forma de acumulação indébita, porque em aberto contraste com a destinação universal consignada por Deus Criador a todos os bens. A salvação cristã é, efetivamente, uma libertação integral do homem, libertação da necessidade, mas também em relação às próprias posses: «O apego ao dinheiro de fato é a raiz de todos os males, pelo seu desejo desenfreado alguns se desviaram da fé» (1 Tm 6,10). Os Padres da Igreja insistem sobre a necessidade da conversão e da transformação das consciências dos fiéis, mais que sobre as exigências de mudança das estruturas sociais e políticas de seu tempo, solicitando a quem desempenha uma atividade econômica e possui bens a considerar-se administradores de quanto Deus lhes confiou.

329 As riquezas realizam a sua função de serviço ao homem quando destinadas a produzir benefícios para os outros e a sociedade[685]«Como poderíamos fazer o bem ao próximo ― interroga-se Clemente de Alexandria ― se todos não possuíssem nada?»[686]. Na visão de São João Crisóstomo, as riquezas pertencem a alguns, para que estes possam adquirir mérito partilhando com os outros[687]. Elas são um bem que vem de Deus: quem o possuir, deve usá-lo e faze-lo circular, de sorte que também os necessitados possam fruir; o mal está no apego desmedido às riquezas, no desejo de açambarcá-las. São Basílio Magno convida os ricos a abrir as portas de seus armazéns e exclama: « Um grande rio se derrama, em mil canais, sobre o terreno fértil: de igual modo, por mil vias, tu faze chegar a riqueza à habitação dos pobres »[688]. A riqueza, explica São Basílio, é como a água que flui mais pura da fonte na medida em que dela se haure com mais freqüência, mas que apodrece se a fonte permanece inutilizada[689]. O rico, dirá mais tarde São Gregório Magno, não é mais que um administrador daquilo que possui; dar o necessário a quem necessita é obra a ser cumprida com humildade, porque os bens não pertencem a quem os distribui. Quem tem as riquezas somente para si não é inocente; dar a quem tem necessidade significa pagar um débito[690].

II. MORAL E ECONOMIA

330 A doutrina social da Igreja insiste sobre a conotação moral da economia. Pio XI, em uma página da Encíclica «Quadragesimo anno», enfrenta a relação entre economia e a moral: «Pois ainda que a economia e a moral “se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios”, é erro julgar a ordem econômica e a moral tão encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis econômicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam os fins que a atividade humana se não pode propor, e os que pode procurar com todos os meios no campo econômico; e a razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem econômica. Por sua parte, a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa atividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma; subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem»[691].

331 A relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: atividade econômica e comportamento moral se compenetram intimamente. A distinção entre moral e economia não implica uma separação entre os dois âmbitos, mas, ao contrário, uma importante reciprocidade. Assim como no âmbito moral se devem ter em conta as razões e as exigências da economia, atuando no campo econômico é imperioso abrir-se às instâncias morais : «Também na vida econômico-social se deve respeitar e fomentar a dignidade da pessoa humana, a sua vocação integral e o bem de toda a sociedade. Pois o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social »[692]. Dar o justo e devido peso às razões próprias da economia não significa rejeitar como irracional qualquer consideração de ordem metaeconômica, precisamente porque o fim da economia não está na economia mesma, mas na sua destinação humana e social[693]. À economia, com efeito, tanto no âmbito científico, como em nível de praxe, não é confiado o fim da realização do homem e da boa convivência humana, mas uma tarefa parcial: a produção, a distribuição e o consumo dos bens materiais e de serviços.

332 A dimensão moral da economia faz tomar como finalidades indivisíveis, nunca separadas e alternativas, a eficiência econômica e a promoção de um desenvolvimento solidário da humanidade. A moral, constitutiva da vida econômica, não é nem opositiva, nem neutra: inspira-se na justiça e na solidariedade, constitui um fator de eficiência social da própria economia. É um dever desempenhar de modo eficiente a atividade de produção dos bens, pois do contrário se desperdiçam recursos; mas não é aceitável um crescimento econômico obtido em detrimento dos seres humanos, de povos inteiros e de grupos sociais, condenados à indigência e à exclusão. A expansão da riqueza, visível na disponibilidade dos bens e dos serviços, e a exigência moral de uma difusão eqüitativa destes últimos devem estimular o homem e a sociedade como um todo a praticar a virtude essencial da solidariedade[694], para com­bater, no espírito da justiça e da caridade, onde quer que se revele a sua presença, as «estruturas de pecado»[695] que geram e mantém pobreza, subdesenvolvimento e degradação. Tais estruturas são edificadas e consolidadas por muitos atos concretos de egoísmo humano.

333 Para assumir um caráter moral, a atividade econômica deve ter como sujeitos todos os homens e todos os povos. Todos têm o direito de participar da vida econômica e o dever de contribuir, segundo as próprias capacidades, do progresso do próprio país e de toda a família humana[696]. Se, em certa medida, todos são responsáveis por todos, cada qual tem o dever de esforçar-se pelo desenvolvimento econômico de todos[697]: é dever de solidariedade e de justiça, mas também o caminho melhor para fazer progredir a humanidade toda. Vivida moralmente, a economia é pois prestação de um serviço recíproco, mediante a produção dos bens e serviços úteis ao crescimento de cada um, e torna-se oportunidade para cada homem de viver a solidariedade e a vocação à «comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou»[698]. O esforço de conceber e realizar projetos econômico-sociais capazes de propiciar uma sociedade mais eqüitativa e um mundo mais humano representa um desafio árduo, mas também um dever estimulante, para todos os operadores econômicos e para os cultores das ciências econômicas[699].

334 Objeto da economia é a formação da riqueza e o seu incremento progressivo, em termos não apenas quantitativos, mas qualitativos: tudo isto é moralmente correto se orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade em que ele vive e atua. O desenvolvimento, com efeito, não pode ser reduzido a mero processo de acumulação de bens e serviços. Ao contrario, a pura acumulação, ainda que em vista do bem comum, não é uma condição suficiente par a realização da autêntica felicidade humana. Nesse sentido, o Magistério social alerta para a insídia que um tipo de desenvolvimento tão-somente quantitativo esconde, pois a «excessivadisponibilidade de todo o gênero de bens materiais, em favor de algumas camadas sociais, torna facilmente os homens escravos da “posse” e do gozo imediato... É o que se chama a civilização do “consumo”, ou consumismo...»[700].
335 Na perspectiva do desenvolvimento integral e solidário, pode-se dar uma justa apreciação à avaliação moral que a doutrina social oferece sobre a economia de mercado ou, simplesmente, economia livre: «Se por “capitalismo” se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de “economia de empresa”, ou de “economia de mercado”, ou simplesmente de “economia livre”. Mas se por “capitalismo” se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa»[701]. Assim se define a perspectiva cristã acerca das condições sociais e políticas da atividade econômica: não só as suas regras, mas a sua qualidade moral e o seu significado.


III. INICIATIVA PRIVADA E EMPRESA

336 A doutrina social da Igreja considera a liberdade da pessoa em campo econômico um valor fundamental e um direito inalienável a ser promovido e tutelado: «Cada um tem o direito de iniciativa econômica, cada um usará legitimamente de seus talentos para contribuir para uma abundância que seja de proveito para todos e para colher os justos frutos de seus esforços»[702]. Tal ensinamento põe de guarda contra as conseqüências negativas que derivariam da mortificação ou negação do direito de iniciativa econômica: «A experiência demonstra-nos que a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa “igualdade” de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de fato, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão»[703]. Nesta perspectiva, a iniciativa livre e responsável em campo econômico pode ser definida como um ato que revela a humanidade do homem enquanto sujeito criativo e relacional. Tal iniciativa deve gozar, portanto, de um espaço amplo. O Estado tem a obrigação moral de pôr vínculos estreitos somente em vista das incompatibilidades entre a busca do bem comum e o tipo de atividade econômica iniciada ou as suas modalidades de realização[704].

337 A dimensão criativa é um elemento essencial do agir humano, também em campo empresarial, e se manifesta especialmente na aptidão a projetar e a inovar: «Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e — enquanto parte essencial desse trabalho — das capacidades de iniciativa e de empreendimento»[705]. Na base de tal ensinamento deve ser individuada a convicção de que «a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas»[706].

a) A empresa e seus fins
338 A empresa deve caracterizar-se pela capacidade de servir o bem comum da sociedade mediante a produção de bens e serviços úteis. Procurando produzir bens e serviços em uma lógica de eficiência e de satisfação dos interesses dos diversos sujeitos implicados, ela cria riqueza para toda a sociedade: não só para os proprietários, mas também para os outros sujeitos interessados na sua atividade. Além de tal função tipicamente econômica, a empresa cumpre também uma função social, criando oportunidades de encontro, de colaboração, de valorização das capacidades das pessoas envolvidas. Na empresa, portanto, a dimensão econômica é condição para que se possam alcançar objetivos não apenas econômicos, mas também sociais e morais, a perseguir conjuntamente.
O objetivo da empresa deve ser realizado em termos e com critérios econômicos, mas não devem ser descurados os autênticos valores que permitem o desenvolvimento concreto da pessoa e da sociedade. Nesta visão personalista e comunitária, «A empresa não pode ser considerada apenas como uma “sociedade de capitais”; é simultaneamente uma “sociedade de pessoas”, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua atividade, quer aqueles que colaboram com o seu trabalho»[707].

339 Os componentes da empresa devem ser conscientes de que a comunidade na qual atuam representa um bem para todos e não uma estrutura que permite satisfazer exclusivamente os interesses pessoais de alguns. Somente tal consciência permite chegar à construção de uma economia verdadeiramente ao serviço do homem e de elaborar um projeto de real cooperação entre as partes sociais.
Um exemplo muito importante e significativo na direção indicada provém da atividade das empresas cooperativas, das empresas artesanais e das agrícolas de dimensões familiares. A doutrina social tem sublinhado o valor do contributo que elas oferecem para a valorização do trabalho, para o crescimento do sentido de responsabilidade pessoal e social, para a vida democrática, para os valores humanos úteis ao progresso do mercado e da sociedade[708].
340 A doutrina social reconhece a justa função do lucro, como primeiro indicador do bom andamento da empresa: «quando esta dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas»[709]. Isto não ofusca a consciência do fato de que nem sempre o lucro indica que a empresa está servindo adequadamente a sociedade[710]. É possível, por exemplo, «que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o patrimônio mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade»[711]. É o que acontece quando a empresa está inserida em sistemas sócio-culturais caracterizados pela exploração das pessoas, inclinados a fugir às obrigações de justiça social e a violar os direitos dos trabalhadores.
É indispensável que, no interior da empresa, a legítima busca do lucro se harmonize com a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas que, a vário título, atuam na mesma empresa. As duas exigências não estão absolutamente em contraste uma com a outra, pois que, de um lado, não seria realista pensar em garantir o futuro da empresa sem a produção de bens e serviços e sem conseguir lucros que sejam fruto da atividade econômica realizada; por outro lado, consentindo crescer à pessoa que trabalha, se favorecem uma maior produtividade e eficácia do trabalho mesmo. A empresa deve ser uma comunidade solidária[712] não fechada nos interesses corporativos, tender a uma «ecologia social»[713] do trabalho, e contribuir para o bem comum mediante a salvaguarda do meio ambiente natural.

341 Se na atividade econômica e financeira a busca de um lucro eqüitativo é aceitável, o recurso à usura é moralmente condenado: «Todo aquele que em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provocam a fome e a morte de seus irmãos (homens) comete indiretamente um homicídio, que lhe é imputável»[714]. Tal condenação estende-se também às relações econômicas internacionais, especialmente pelo que respeita a situação dos países menos avançados, aos quais não podem ser aplicados «sistemas financeiros abusivos e mesmo usurários»[715]. O Magistério mais recente tem reservado palavras fortes e claras para uma prática ainda hoje dramaticamente estendida: «não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas»[716].

342. A empresa se move hoje no quadro de cenários econômicos de dimensões mais cada vez amplas, nos quais os Estados nacionais mostram limites na capacidade de governar os processos de mudança por que passam as relações econômico-financeiras internacionais; esta situação induz as empresas a assumir responsabilidades novas e maiores em relação ao passado. Nunca como hoje o seu papel aparece determinante em vista de um desenvolvimento autenticamente solidário e integral da humanidade e é igualmente decisivo, neste sentido, o seu nível de consciência do fato de que o «desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso. Este fenômeno é particularmente indicativo da natureza do desenvolvimento autêntico: ou nele participam todas as nações do mundo, ou não será na verdade desenvolvimento»[717].

b) O papel do empresário e do dirigente de empresa

343 A iniciativa econômica é expressão da inteligência humana e da exigência de responder às necessidades do homem de modo criativo e colaborativo. Na criatividade e na cooperação está inscrita a autêntica concepção da competição empresarial: um cum-petere, ou seja, um buscar junto as soluções mais adequadas para responder do modo mais apropriado às necessidades que passo a passo vêm à tona. O sentido de responsabilidade que brota da livre iniciativa econômica se configura não só como virtude individual indispensável para o crescimento humano do indivíduo, mas também como virtude social necessária ao desenvolvimento de uma comunidade solidária: «Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida »[718].

344 Os papéis do empresário e do dirigente reveste uma importância central do ponto de vista social, porque se colocam no coração daquela rede de liames técnicos, comerciais, financeiros, culturais, que caracterizam a moderna realidade da empresa. Dado que as decisões empresariais produzem, em razão da crescente complexidade da atividade empresarial, uma multiplicidade de efeitos conjuntos de grande relevância não só econômica, mas também social, o exercício das responsabilidades empresariais e dirigenciais exige, além de um esforço contínuo de atualização específica, uma constante reflexão sobre as motivações morais que devem guiar as opções pessoais de quem esta investido de tais encargos.
Os empresários e os dirigentes não podem levar em conta exclusivamente o objetivo econômico da empresa, os critérios de eficiência econômica, as exigências do cuidado do «capital» como conjunto dos meios de produção: é também um preciso dever deles o concreto respeito da dignidade humana dos trabalhadores que atuam na empresa[719]. Estes últimos constituem «o patrimônio mais precioso da empresa»[720], o fator decisivo da produção[721]. Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, de compra ou de venda, de redimensionamento ou fechamento das filiais, na política das fusões, não se pode limitar exclusivamente a critérios de natureza financeira ou comercial.

345 A doutrina social insiste na necessidade de que o empresário e o dirigente se empenhem em estruturar a atividade profissional nas suas empresas de modo a favorecer a família, especialmente as mães de família no cumprimento das suas funções[722]respondam, à luz de uma visão integral do homem e do desenvolvimento, à demanda de qualidade «das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral»[723]; invistam, sempre que se apresentarem as condições econômicas e de estabilidade política, nos lugares e nos setores produtivos que oferecem a indivíduos e povos «a ocasião de valorizar o próprio trabalho»[724].


IV. INSTITUIÇÕES ECONÔMICAS
AO SERVIÇO DO HOMEM
346. Uma das questões prioritárias na economia é o emprego dos recursos[725], isto é, de todos aqueles bens e serviços cujos sujeitos econômicos, produtores e consumidores privados e públicos, atribuem um valor para a utilidade destes inerentes no campo da produção e do consumo. Na natureza os recursos são quantitativamente escassos e isto implica, necessariamente, que cada sujeito econômico, assim como cada sociedade, deva elaborar alguma estratégia para empregá-los do modo mais racional possível, seguindo a lógica ditada pelo princípio de economia. Disto dependem seja a efetiva solução do problema econômico mais geral, e fundamentalmente, da limitação dos meios em relação às necessidades individuais e sociais, privados e públicos, seja a eficiência completiva, estrutural e funcional, de todo o sistema econômico. Tal eficiência chama diretamente em causa a responsabilidade e a capacidade de vários sujeitos, como o mercado, o Estado e os corpos sociais intermediários.

a) O papel do mercado livre

347 O livre mercado é uma instituição socialmente importante para a sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços. Historicamente, o mercado deu provas de saber impulsionar e manter, por longo período, o desenvolvimento econômico. Existem boas razões para acreditar que, em muitas circunstâncias, «o livre mercado seja o instrumento mais eficaz para colocar os recursos e responder eficazmente as necessidades»[726]. A doutrina social da Igreja aprecia as vantagens seguras que os mecanismos do livre mercado oferecem, seja para uma melhor utilização dos recursos, seja para facilitar a troca de produtos; estes mecanismos « sobretudo, colocam no centro a vontade e as preferências da pessoa que no contrato se encontram com aqueles de uma outra pessoa»[727].
Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência.
348 O livre mercado não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e doa valores que transmite em nível social. O mercado, de fato, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação. Cabe à consciência individual e à responsabilidade pública estabelecer uma justa relação entre meios e fim[728]. O benefício individual do operador econômico, se bem que legítimo, jamais deve tornar-se o único objetivo. Ao lado deste, existe um outro, também fundamental e superior, aquele da utilidade social, que deve encontrar realização não em contraste, mas em coerência com a lógica de mercado. Quando desempenha as importantes funções acima recordadas, o livre mercado torna-se funcional ao bem e ao desenvolvimento integral do homem, enquanto a inversão da relação entre meios e fins pode fazê-lo degenerar em uma instituição desumana e alienante, com repercussões incontroláveis.

349 A doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo ao mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema econômico, coloca em evidência a necessidade de ancorá-lo à finalidade moral, que assegurem e, ao mesmo tempo, circunscrevam adequadamente o espaço de sua autonomia[729]. A idéia de que se possa confiar tão-somente ao mercado o fornecimento de todas as categorias de bens não é admissível, porque baseada numa visão redutiva da pessoa e da sociedade[730]. Diante do concreto risco de uma « idolatria » do mercado, a doutrina social da Igreja lhe ressalta o limite, facilmente reveláveis em a sua constatada incapacidade de satisfazer as exigências humanas importantes, pelas quais há a necessidade de bens que, «por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias»[731], bens não negociáveis segundo a regra da «troca de equivalentes» e a lógica do contrato, típicas do mercado.

350 O mercado assume uma função social e relevante nas sociedades contemporâneas, por isso é importante individuar as potencialidades mais positivas e criar condições que permitam a sua concreta expansão. Os operadores devem ser efetivamente livres para confrontar, avaliar e escolher entre as várias opções, todavia a liberdade, no âmbito econômico, deve ser regulada por um apropriado quadro jurídico tal da colocá-la a serviço da liberdade humana integral: «a liberdade econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir»[732].

b) A ação do Estado

351 A ação do estado e dos outros poderes públicos deve conformar-se com o princípio da subsidiariedade para criar situações favoráveis ao livre exercício da atividade econômica; esta deve inspirar-se também no princípio de solidariedade e estabelecer os limites da autonomia das partes para defender a parte mais frágeis[733]. A solidariedade sem subsidiariedade pode, de fato, degenerar facilmente em assistencialismo, ao passo que a subsidiariedade sem a solidariedade se expõe ao risco de alimentar formas de localismo egoísta. Para respeitar estes dois fundamentais princípios, a intervenção do Estado em âmbito econômico não deve ser nem açambarcadora, nem remissiva, mas sim apropriada às reais exigências da sociedade: «O Estado tem o dever de secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise. O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais»[734].

352 A tarefa fundamental do Estado em âmbito econômico é o de definir um quadro jurídico apto a regular as relações econômicas, com a finalidade de «salvaguardar ... as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão»[735]. A atividade econômica, sobretudo num contexto de livre mercado, não pode desenrolar-se num vazio institucional, jurídico e político: «Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes»[736]. Para cumprir a sua tarefa, o Estado deve elaborar uma legislação apropriada, mas também orientar cuidadosamente as políticas econômicas, de modo a não se tornar prevaricador nas várias atividades de mercado, cuja atuação deve permanecer livre de superestruturas e coerções autoritárias ou, pior, totalitárias.

353 É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras eqüitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário[737], nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo. Na realidade, em alguns âmbitos, o mercado, apoiando-se nos próprios mecanismos, não é capaz de garantir uma distribuição eqüitativa de alguns bens e serviços essenciais ao crescimento humano dos cidadãos: neste caso a complementaridade entre Estado e mercado é sobremaneira necessária.

354 O Estado pode concitar os cidadãos e as empresas na promoção do bem comum cuidando de atuar uma política econômica que favoreça a participação de todos os seus cidadãos nas atividades produtivas. O respeito do princípio de subsidiariedade deve mover as autoridades públicas a buscar condições favoráveis ao desenvolvimento das capacidades de iniciativa individuais, da autonomia e da responsabilidade pessoais dos cidadãos, abstendo-se de qualquer intervenção que possa constituir um condicionamento indébito das forças empresariais.
Em vista do bem comum, se deve sempre perseguir com constante determinação o objetivo de um justo equilíbrio entre liberdade privada e ação pública, entendida quer como intervenção direta na economia, quer como atividade de suporte ao desenvolvimento econômico. Em todo o caso, a intervenção pública deverá ater-se a critérios de eqüidade, racionalidade e eficiência, e não substituir a ação dos indivíduos, contra o seu direito à liberdade de iniciativa econômica. O Estado, neste caso, se torna deletério para a sociedade: uma intervenção direta excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas[738].

355 A coleta fiscal e a despesa pública assumem uma importância econômica crucial para qualquer comunidade civil e política: o objetivo para o qual tender é uma finança pública capaz de se propor como instrumento de desenvolvimento e de solidariedade. Uma finança pública eqüitativa, eficiente, eficaz, produz efeitos virtuosos sobre a economia, porque consegue favorecer o crescimento do emprego, amparar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, e contribui a aumentar a credibilidade do Estado enquanto garante dos sistemas de previdência e de proteção social destinados em particular a proteger os mais fracos.
As finanças públicas se orientam para o bem comum quando se atêm a alguns princípios fundamentaiso pagamento dos impostos[739] como especificação do dever de solidariedade; racionalidade e eqüidade na imposição dos tributos[740]rigor e integridade na administração e na destinação dos recursos públicos[741]. Ao redistribuir as riquezas, a finança pública deve seguir os princípios da solidariedade, da igualdade, da valorização dos talentos, e prestar grande atenção a amparar as famílias, destinando a tal fim uma adequada quantidade de recursos[742].

c) O papel dos corpos intermédios

356 O sistema econômico-social deve ser caracterizado pela compresença de ação pública e privada, incluída a ação privada sem finalidade de lucro. Configura-se de tal modo uma pluralidade de centros decisórios e de lógicas de ação. Há algumas categorias de bens, coletivos e de uso comum, cuja utilização não pode depender dos mecanismos do mercado[743] e não é nem mesmo de exclusiva competência do Estado. O dever do Estado, em relação a estes bens, é antes o de valorizar todas as iniciativas sociais e econômicas que têm efeitos públicos, promovidos pelas formações intermédias. A sociedade civil, organizada nos seus corpos intermédios, é capaz de contribuir para a consecução do bem comum pondo-se em uma relação de colaboração e de eficaz complementaridade em relação ao Estado e ao mercado, favorecendo assim o desenvolvimento de uma oportuna democracia econômica. Em um semelhante contexto, a intervenção do Estado deve ser caracterizada pelo exercício de uma verdadeira solidariedade, que como tal nunca deve ser separada da subsidiariedade.

357 As organizações privadas sem fins lucrativos têm um espaço específico em âmbito econômico: nos serviços sociais, na instrução, na saúde, na cultura. Caracteriza tais organizações a corajosa tentativa de unir harmoniosamente eficiência produtiva e solidariedade. Constituem-se, geralmente, em base a um pacto associativo e são expressão de uma tensão ideal comum aos sujeitos que livremente decidem aderir às mesmas. O Estado é chamado a respeitar a natureza destas organizações e a valorizar as características, dando concreta atuação ao princípio de subsidiariedade, que postula precisamente um respeito e uma promoção da dignidade e da autônoma responsabilidade do sujeito «subsidiado».

d) Poupança e consumo

358 Os consumidores, que em muitos casos dispõem de amplas margens de poder aquisitivo, bem além do limiar da subsistência, e podem influenciar consideravelmente a realidade econômica com a sua livre escolha entre consumo e poupança. A possibilidade de influir nas escolhas do sistema econômico está nas mãos de quem deve decidir sobre o destino dos próprios recursos financeiros. Hoje mais do que no passado, é possível avaliar as alternativas disponíveis não somente em base ao rendimento previsto ou ao seu grau de risco, mas também exprimindo um juízo de valor sobre os projetos de investimento que os recursos irão financiar, na consciência de que «a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural»[744].

359 O uso do próprio poder aquisitivo há de ser exercido no contexto das exigências morais da justiça e da solidariedade e de responsabilidades sociais precisas: é preciso não esquecer que «o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o “supérfluo”, e às vezes até com o “necessário” para garantir o indispensável à vida do pobre»[745]. Tal responsabilidade confere aos consumidores a possibilidade de dirigir, graças à maior circulação de informações, o comportamento dos produtores, mediante a decisão ―individual ou coletiva― de preferir os produtos de algumas empresas em lugar de outras, levando em conta não apenas os preços e a qualidadedos produtos, mas também a existência de corretas condições de trabalho nas empresas, bem como o grau de tutela assegurado para o ambiente natural que o circunda.

360 O fenômeno do consumismo mantém uma persistente orientação para o «ter» mais que para o «ser». Ele impede de «distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura»[746]. Para contrastar este fenômeno é necessário esforçar-se por construir «estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento»[747]. É inegável que as influências do contexto social sobre os estilos de vida são notáveis: por isso o desafio cultural que hoje o consumismo põe deve ser enfrentado com maior incisividade, sobretudo se se consideram as gerações futuras, as quais arriscam ter de viver num ambiente saqueado por causa de um consumo excessivo e desordenado[748].


V. AS «RES NOVAE»
EM ECONOMIA

a) A globalização: as oportunidades e os riscos

361 O nosso tempo é marcado pelo complexo fenômeno da globalização econômico-financeira, isto é, um processo de crescente integração das economias nacionais, no plano do comércio de bens e serviços e das transações financeiras, no qual um número sempre maior de operadores assume um horizonte global pelas opções que deve efetuar em função das oportunidades de crescimento e de lucro. O novo horizonte da sociedade global não é dado simplesmente pela presença de liames econômicos e financeiros entre atores nacionais atuantes em países diversos, que, ademais, sempre existiram, quanto principalmente pelo caráter invasivo e pela natureza absolutamente inédita do sistema de relações que se está desenvolvendo. Torna-se cada vez mais decisivo e central o papel dos mercados financeiros, cujas dimensões, em seguida à liberalização das trocas e à circulação dos capitais, cresceram enormemente com uma velocidade impressionante, a ponto de consentir aos operadores transferir «em tempo real» de uma parte a outra do globo, capitais em grande quantidade. Trata-se de uma realidade multiforme e não simples de decifrar, dado que se desenrola em vários níveis e evolui constantemente, ao longo de trajetórias dificilmente previsíveis.

362. A globalização alimenta novas esperanças, mas também suscita interrogações inquietantes[749].
Ela pode produzir efeitos potencialmente benéficos para a humanidade inteira: entrelaçando-se com o impetuoso desenvolvimento das telecomunicações, o percurso de crescimento do sistema de relações econômicas e financeiras tem consentido simultaneamente uma notável redução nos custos das telecomunicações e das novas tecnologias, bem como uma aceleração no processo de extensão em escala planetária dos intercâmbios comerciais e das transações financeiras. Em outras palavras, aconteceu que os dois fenômenos, globalização econômico-financeira e progresso tecnológico têm se reforçado reciprocamente, tornando extremamente rápida a dinâmica completiva da atual fase econômica.
Analisando o contexto atual, além de divisar as oportunidades que se abrem na era da economia global, se percebem também os riscos ligados às novas dimensões das relações comerciais e financeiras. Não faltam, efetivamente, indícios reveladores de uma tendência ao aumento das desigualdades quer entre países avançados e países em via de desenvolvimento, quer no interior dos países industrializados. À crescente riqueza econômica possibilitada pelos processos descritos acompanha um crescimento da pobreza relativa.

363 O zelo pelo bem comum exige que se aproveitem as novas ocasiões de redistribuição de poder e riqueza entre as diversas áreas do planeta, em benefício das mais desfavorecidas e até agora excluídas ou à margem do progresso social e econômico[750]: «O desafio, em suma, é o de assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização»[751]. O próprio progresso tecnológico arrisca repartir iniquamente entre os países os próprios efeitos positivos. As inovações, com efeito, podem penetrar e difundir-se no interior de uma determinada coletividade, se os seus potenciais beneficiários atingem um patamar mínimo de saber e de recursos financeiros: é evidente que, em presença de fortes disparidades entre os países no acesso aos conhecimentos técnico-científicos e aos mais recentes produtos tecnológicos, o processo de globalização acaba por alargar, ao invés de reduzir, as distâncias entre os países em termos de desenvolvimento econômico e social. Dada a natureza das dinâmicas em curso, a livre circulação de capitais não é de per si suficiente para favorecer a aproximação dos países em via de desenvolvimento em relação aos mais avançados.

364 O comércio representa uma componente fundamental das relações econômicas internacionais, contribuindo de maneira determinante para a especialização produtiva e para o crescimento econômico dos diversos países. Hoje mais do que nunca o comércio internacional, se oportunamente orientado, promove o desenvolvimento e é capaz de criar novos empregos e de fornecer úteis recursos. A doutrina social tem muitas vezes posto em claro as distorções do sistema comercial internacional[752] que freqüentemente, por causa das políticas protecionistas adotadas pelos países desenvolvidos, discrimina os produtos provenientes dos países mais pobres e impede o crescimento de atividades industriais e a transferência de tecnologias para tais países[753]. A contínua deterioração nos termos do comércio de matérias primas e o agravar-se da diferença entre países ricos e pobres levou o Magistério chamar a atenção para a importância dos critérios éticos que deveriam orientar as relações econômicas internacionais: a busca do bem comum e a destinação universal dos bens; a equidade nas relações comerciais; a atenção aos direitos e às necessidades dos mais pobres nas políticas comerciais e de cooperação internacional. Diversamente, os «pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos»[754].

365 Uma solidariedade adequada à era da globalização requer a defesa dos direitos humanos. A este propósito o Magistério assinala que não só «a perspectiva duma autoridade pública internacional ao serviço dos direitos humanos, da liberdade e da paz, não só não se realizou ainda inteiramente, mas há que registrar, infelizmente, a hesitação bastante freqüente da comunidade internacional no seu dever de respeitar e aplicar os direitos humanos. Este dever engloba todos os direitos fundamentais, não permitindo escolhas arbitrárias que conduziriam a formas reais de discriminação e de injustiça. Ao mesmo tempo, somos testemunhas dum fosso preocupante que se vai alargando entre uma série de novos “direitos” promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os direitos humanos elementares que ainda não são respeitados sobretudo em situações de subdesenvolvimento; penso, por exemplo, no direito à alimentação, à água potável, à casa, à autodeterminação e à independência»[755].

366 A extensão da globalização deve ser acompanhada por uma tomada de consciência mais madura por parte das organizações da sociedade civil, das novas tarefas às quais são chamadas em âmbito mundial. Também graças a uma ação incisiva da parte destas organizações será possível manter o atual processo de crescimento da economia e das finanças em escala planetária num horizonte que garanta um efetivo respeito dos direitos do homem e dos povos, bem como uma distribuição eqüitativa das riquezas, no interior de cada país e entre diferentes países: «A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social»[756].
Particular atenção deve ser reservada às especificidades locais e às diversidades culturais, que correm o risco de serem comprometidas pelos processos econômico-financeiros em curso: «A globalização não pode constituir um novo tipo de colonialismo. Pelo contrário, deve respeitar a diversidade das culturas que, no âmbito da harmonia universal dos povos, são as chaves interpretativas da vida. De forma especial, não deve privar os pobres daquilo que lhes resta de mais precioso, inclusivamente os credos e as práticas religiosas, porque as convicções religiosas genuínas constituem a manifestação mais clarividente da liberdade humana»[757].

367 Na época da globalização se deve ressaltar com força a solidariedade entre as gerações: «No passado, a solidariedade entre as gerações constituía, em muitos países, uma atitude natural por parte da família; hoje, tornou-se também um dever da comunidade»[758]. È conveniente que tal solidariedade continue a ser perseguida nas comunidades políticas nacionais, mas hoje o problema se põe também para a comunidade política global, para que a mundialização não se realize em detrimento dos mais necessitados e dos mais fracos. A solidariedade entre as gerações requer que, na planificação global se aja de acordo com o princípio da destinação universal dos bens, que torna moralmente ilícito e economicamente contraproducente descarregar os custos atuais nas gerações vindouras: moralmente ilícito porque significa não assumir as devidas responsabilidades, economicamente contrapro­ducente porque a correção dos danos é mais dispendiosa do que a sua prevenção. Este princípio deve ser aplicado sobretudo — ainda que não apenas — no campo dos recursos da terra e da salvaguarda da criação, hoje particularmente delicado em virtude da globalização, que diz respeito a todo o planeta, entendido como um único ecossistema[759].

b) O sistema financeiro internacional

368 Os mercados financeiros não são certamente uma novidade da nossa época: já desde há muito tempo, por várias formas, eles cuidaram de responder à exigência de financiar atividades produtivas. A experiência histórica atesta que, na ausência de sistemas financeiros adequados, não teria havido crescimento econômico. Os investimentos em larga escala, típicos das modernas economias de mercado, não teriam sido possíveis sem o papel fundamental de intermediação exercido pelos mercados financeiros, que permitiu, entre outras coisas, apreciar as funções positivas da poupança para o desenvolvimento integral do sistema econômico e social. Se, por um lado, a criação daquilo que se tem definido como o «mercado global dos capitais» produziu efeitos benéficos, graças ao fato de que a maior mobilidade dos capitais consentiu às atividades produtivas alcançar mais facilmente a disponibilidade de recursos, por outro lado a maior mobilidade também aumentou o risco de crises financeiras. O desenvolvimento da atividade financeira, cujas transações superaram sobejamente, em volume, as transações reais, corre o risco de seguir uma lógica voltada sobre si mesma, sem conexão com a base real da economia.

369 Uma economia financeira, cujo fim é ela própria, está destinada a contradizer as suas finalidades, pois que se priva das próprias raízes e da própria razão constitutiva, ou seja, do seu papel originário e essencial de serviço à economia real e, ao fim e ao cabo, de desenvolvimento das pessoas e das comunidades humanas. O quadro completo manifesta-se ainda mais preocupante à luz da configuração fortemente assimétrica que caracteriza o sistema financeiro internacional: os processos de inovação e de desregulamentação dos mercados financeiros tendem, de fato, a consolidar-se somente em algumas partes do globo. Isto é fonte de graves preocupações de natureza ética, porque os países excluídos dos processos descritos, mesmo não gozando dos benefícios destes produtos, não estão entretanto protegidos de eventuais conseqüências negativas da instabilidade financeira sobre os seus sistemas econômicos reais, sobretudo se frágeis e com atraso no desenvolvimento[760].
A improvisa aceleração dos processos quais o enorme incremento no valor das carteiras administradas pelas instituições financeiras e o rápido proliferar de novos e sofisticados instrumentos financeiros torna deveras urgente divisar soluções institucionais capazes de favorecer eficazmente a estabilidade do sistema, sem reduzir-lhe as potencialidades e a eficiência. É indispensável introduzir um quadro normativo que consinta tutelar tal estabilidade em todas as suas complexas articulações, promover a concorrência entre os intermediários e assegurar a máxima transparência em benefício dos investidores.

c) O papel da comunidade internacional na época da economia global

370 A perda de centralidade por parte dos atores estatais deve coincidir com um maior empenho da comunidade no exercício de um decidido papel de orientação econômica e financeira. Uma importante conseqüência do processo de globalização consiste, com efeito, na gradual perda de eficácia do Estado nação na condução das dinâmicas econômico-financeiras nacionais. Os Governos de cada País vêem a própria ação em campo econômico e social sempre mais fortemente condicionada pelas expectativas dos mercados internacionais dos capitais e pelos sempre mais prementes pedidos de credibilidade provenientes do mundo financeiro. Por causa dos novos liames entre os operadores globais, as tradicionais medidas defensivas dos Estados parecem condenadas insucesso e, em face das novas áreas da competição, passa ao segundo plano a própria noção de mercado nacional.

371 Quanto mais o sistema econômico-financeiro mundial alcança níveis elevados de complexidade organizativa e funcional, tanto mais se impõe como prioritária a tarefa de regular tais processos, orientando-os à consecução do bem comum da família humana. Vem à tona concretamente a exigência de que, além dos Estados nacionais, seja a comunidade internacional a assumir esta delicada função, com instrumentos políticos e jurídicos adequados e eficazes.
É portanto indispensável que as instituições econômicas e financeiras internacionais saibam individuar as soluções institucionais mais apropriadas e elaborem as estratégias de ação mais oportunas com o escopo de orientar uma mudança que, fosse sofrida passivamente e abandonada a si mesma, provocaria êxitos dramáticos sobretudo em detrimento dos estratos mais fracos e indefesos da população mundial.
Nos organismos internacionais devem ser eqüitativamente representados os interesses da grande família humana; é necessário que estas instituições, «ao avaliarem as conseqüências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento»[761].

372 Também a política, a par da economia, deve saber estender o próprio raio de ação para além dos confins nacionais, adquirindo rapidamente aquela dimensão operativa mundial que lhe pode consentir orientar os processos em curso à luz de parâmetros não só econômicos, mas também morais. O objetivo de fundo será o de guiar tais processos assegurando o respeito da dignidade do homem e o desenvolvimento completo da sua personalidade, no horizonte do bem comum[762]. A assunção de uma tal tarefa comporta a responsabilidade de acelerar a consolidação das instituições existentes assim como a criação de novos órgãos aos quais confiar tais responsabilidades[763]. O desenvolvimento econômico, efetivamente, pode ser duradouro somente na medida em que se desdobra no interior de um quadro claro e definido de normas e de um amplo projeto de crescimento moral, civil e cultural de toda a família humana.

d) Um desenvolvimento integral e solidário

373 Uma das tarefas fundamentais dos atores da economia internacional é a obtenção de um desenvolvimento integral e solidário para a humanidade, vale dizer, «promover todos os homens e o homem todo»[764]. Tal tarefa exige uma concepção da economia que garanta, no plano internacional, a distribuição eqüitativa dos recursos e responda à consciência da interdependência ― econômica, política e cultural ― que de agora em diante une definitivamente os povos entre eles e faz com que se sintam ligados a um único destino[765]. Os problemas sociais assumem cada vez mais uma dimensão planetária: a paz, a ecologia, a alimentação, a droga, as doenças. Estado algum já os enfrentar e resolver sozinho. As gerações atuais tocam com as mãos a necessidade da solidariedade e advertem concretamente a necessidade de superar a cultura individualista[766]. Nota-se sempre mais difusamente a exigência de modelos de desenvolvimento que prevejam não apenas «elevar todos os povos ao nível que hoje gozam somente os países mais ricos, mas de construir no trabalho solidário uma vida mais digna, fazer crescer efetivamente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de corresponder à própria vocação e, portanto, ao apelo de Deus »[767].

374 Um desenvolvimento mais humano e solidário favorecerá também aos próprios países mais ricos. Tais países «advertem com freqüência uma espécie de desorientação existencial, uma incapacidade de viver e de gozar retamente o sentido da vida, embora na abundância de bens materiais, uma alienação e perda da própria humanidade em muitas pessoas, que se sentem reduzidas ao papel de engrenagens no mecanismo da produção e do consumo e não encontram o modo de afirmar a própria dignidade de homens, feitos à imagem e semelhança de Deus»[768]. Os países ricos mostraram ter a capacidade de criar bem-estar material, mas, não raro, às custas do homem e das faixas sociais mais débeis: «não se pode ignorar que as fronteiras da riqueza e da pobreza passam pelo interior das próprias sociedades, quer desenvolvidas, quer em vias de desenvolvimento. De fato, assim como existem desigualdades sociais até aos extremos da miséria em países ricos, assim, em contraposição, nos países menos desenvolvidos também se vêem, não raro, manifestações de egoísmo e de ostentação de riqueza, tão desconcertantes quanto escandalosas»[769].

e) A necessidade de uma grande obra educativa e cultural

375 Para a doutrina social, a economia «é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa atividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema econômico, quanto no fato de que todo o sistema sócio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços»[770]. A vida do homem, a par da vida social da coletividade, não pode ser reduzida a uma dimensão materialística, ainda que os bens materiais sejam extremamente necessários quer para a mera sobrevivência, quer para o melhoramento do teor de vida: «aumentar o senso de Deus e o conhecimento de si mesmo é a base de todo desenvolvimento completo da sociedade humana»[771].

376 Em face do rápido andamento do progresso técnico-econômico e da mutabilidade, igualmente rápida, dos processos de produção e de consumo, o Magistério adverte a exigência de propor uma grande obra educativa e cultural: «O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica... Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais... O sistema econômico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas»[772].

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