VII. AS «RES NOVAE»
DO NOVO MUNDO DO TRABALHO
a) Uma fase de transição epocal
310 Um dos estímulos mais significativos à atual transformação da organização do trabalho é dado pelo fenômeno da globalização, que consente experimentar novas formas de produção, com o deslocamento das instalações em áreas diferentes daquelas em que são tomadas as decisões estratégicas e distantes dos mercados de consumo. Dois são os fatores que dão impulso a este fenômeno: a extraordinária velocidade de comunicação sem limites de espaço e de tempo e a relativa facilidade para transportar mercadorias e pessoas de um lado ao outro do globo. Isto comporta uma conseqüência fundamental sobre os processos produtivos: a propriedade é cada vez mais distante, não raro, indiferente aos efeitos sociais das opções que faz. Por outro lado, se é verdade que a globalização, a priori, não é nem boa nem má em si, mas depende do uso que dela faz o homem[676], deve-se afirmar que é necessária uma globalização das tutelas, dos direitos mínimos essenciais, da eqüidade.
311 Uma das características mais relevantes da nova organização do trabalho é a fragmentação física do ciclo produtivo, promovida para conseguir uma maior eficiência e maior lucro. Nesta perspectiva, as tradicionais coordenadas espaço-tempo, no interior das quais se configurava o ciclo produtivo, sofrem uma transformação sem precedentes, que determina uma mudança na estrutura mesma do trabalho. Tudo isto tem conseqüências relevantes na vida dos indivíduos e das comunidades, submetidos a mudanças radicais tanto no plano das condições materiais como no plano cultural e dos valores. Este fenômeno está envolvendo, em âmbito global e local, milhões de pessoas, independentemente da profissão que exercem, da sua condição social, da preparação cultural. A reorganização do tempo, a sua regularização e as mudanças em curso no uso do espaço — comparáveis, pela sua magnitude, à primeira revolução industrial, na medida em que envolvem todos os setores produtivos, em todos os continentes, independentemente do seu grau de desenvolvimento — devem considerar-se, portanto, um desafio decisivo, mesmo em nível ético e cultural, no campo da definição de um sistema renovado de tutela do trabalho.
312 A globalização da economia, com a liberalização dos mercados, o acentuar-se da concorrência, o aumento de empresas especializadas no fornecimento de produtos e serviços, requer maior flexibilidade no mercado do trabalho e na organização e na gestão dos processos produtivos. No juízo sobre esta delicada matéria, parece oportuno reservar uma maior atenção moral, cultural e no âmbito dos projetos, ao orientar o agir social e político sobre as temáticas ligadas à identidade e aos conteúdos do novo trabalho, num mercado e numa economia que também são novos. As modificações do mercado do trabalho, não raro, são um efeito da modificação do trabalho mesmo e não a sua causa.
313 O trabalho, sobretudo no interior dos sistemas econômicos dos países mais desenvolvidos, atravessa uma fase que assinala a passagem de uma economia industrial a uma economia essencialmente concentrada sobre serviços e sobre a inovação tecnológica. Ocorre que os serviços e as atividades caracterizadas por um forte conteúdo informativo crescem de modo mais rápido do que as dos tradicionais setores primário e secundário, com conseqüências de largo alcance na organização da produção e das trocas, no conteúdo e na forma das prestações de trabalho e nos sistemas de proteção social.
Graças às inovações tecnológicas, o mundo do trabalho se enriquece de profissões novas, enquanto outras desaparecem. Na atual fase de transição, com efeito, se assiste a uma contínua passagem de empregados da industria aos serviços. Enquanto perde terreno o modelo econômico e social ligado à grande fábrica e ao trabalho de uma classe operária homogênea, melhoram as perspectivas de emprego no terciário e aumentam, em particular, as atividades laborais na repartição dos serviços à pessoa, das prestações part time, interinas e «atípicas», ou seja, formas de trabalho que não são enquadráveis nem como trabalho dependente nem como trabalho autônomo.
314 A transição em curso assinala a passagem do trabalho contratado por tempo indeterminado, entendido como emprego fixo, a um percurso profissional caracterizado por uma pluralidade de atividades profissionais; de um mundo do trabalho compacto, definido e reconhecido, a um universo de trabalhos, variegado, fluido, rico de promessas, mas também impregnado de interrogações preocupantes, especialmente em face da crescente incerteza acerca das perspectivas de emprego, de fenômenos persistentes de desemprego estrutural, da inadequação dos atuais sistemas de seguridade social. As exigências da competição, da inovação tecnológica e da complexidade dos fluxos financeiros devem ser harmonizados com a defesa do trabalhador e dos seus direitos.
A insegurança e a precariedade não dizem respeito somente à condição de trabalho dos homens que vivem nos países mais desenvolvidos, mas se referem também, e sobretudo, às realidades economicamente menos avançadas do planeta, aos países em via de desenvolvimento e aos países com economias em transição. Estes últimos, além dos complexos problemas ligados com a mudança dos modelos econômicos e produtivos, devem enfrentar quotidianamente as difíceis exigências que provêm da globalização em curso. A situação se mostra particularmente dramática para o mundo do trabalho, submetido a vastas e radicais mudanças culturais e estruturais, em contextos freqüentemente desprovidos de suportes legislativos, formativos e de assistência social.
315 A descentralização produtiva, que atribui às empresas menores multíplices funções, dantes concentrados nas grandes unidades produtivas, faz adquirir vigor e imprime novo impulso às pequenas e médias empresas. Vêm à tona assim, ao lado do artesanato tradicional, novas empresas caracterizadas por pequenas unidades produtivas que atuam em setores de produção modernos ou em atividades descentradas das empresas maiores. Muitas atividades que ontem exigiam trabalho dependente, hoje são realizadas de formas novas, que favorecem o trabalho independente e se caracterizam por uma maior componente de risco e de responsabilidade
O trabalho nas pequenas e médias empresas, o trabalho artesanal e o trabalho independente podem constituir uma ocasião para tornar mais humana a experiência do trabalho, tanto pela possibilidade de estabelecer positivas relações interpessoais em comunidades de pequenas dimensões, quanto pelas oportunidades oferecidas por uma maior iniciativa e empreendimento; mas não são poucos, nestes setores, os casos de tratamentos injustos, de trabalho mal remunerado e sobretudo inseguro.
316 Nos paises em via de desenvolvimento, ademais, se difundiu, nestes últimos anos, o fenômeno da expansão de atividades econômicas « informais » ou «submersas», que representa um sinal de crescimento econômico promissor, mas levanta problemas éticos e jurídicos. O significativo aumento da oferta de trabalho suscitado por tais atividades deve-se, de fato, à ausência de especialização de grande parte dos trabalhadores locais e ao desenvolvimento desordenado dos setores econômicos formais. Um número elevado de pessoas fica assim obrigado a trabalhar em condições de grave precariedade e num quadro desprovido das regras que tutelam a dignidade do trabalhador. Os níveis de produtividade, rendas e teor de vida são extremamente baixos e freqüentemente se revelam insuficientes para garantir aos trabalhadores e às suas famílias a possibilidade de atingir o limiar da subsistência.
b) Doutrina social e «res novae»
317 Em face das imponentes « res novae » do mundo do trabalho, a doutrina social da Igreja recomenda, antes de tudo, evitar o erro de considerar que as mudanças em curso ocorram de modo determinista. O fator decisivo e « o árbitro » desta complexa fase de mudança é uma vez mais o homem, que deve continuar a ser o verdadeiro protagonista do seu trabalho. Ele pode e deve assumir de modo criativo e responsável as atuais inovações e reorganizações, de modo que sirvam ao crescimento da pessoa, da família, das sociedades e da inteira família humana[677]. É esclarecedora para todos a referência à dimensão subjetiva do trabalho, à qual a doutrina social da Igreja ensina a dar a devida prioridade, porque o trabalho humano « procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da criação, dominando a terra »[678].
318 As interpretações de tipo mecanicista e economicista da atividade produtiva, ainda que prevalentes e em todo caso influentes, resultam superadas pela própria análise científica dos problemas relacionados com o trabalho. Tais concepções se mostram hoje mais do que ontem de todo inadequadas para interpretar os fatos, que demonstram cada vez mais o valor do trabalho, enquanto atividade livre e criativa do homem. Também dos dados concretos deve derivar o impulso para superar sem demora horizontes teóricos e critérios operativos restritos e insuficientes em relação às dinâmicas em curso, intrinsecamente incapazes de divisar as concretas e urgentes necessidades humanas na sua vasta gama, que se estende para muito além das categorias somente econômicas. A Igreja bem sabe, e desde sempre o ensina, que o homem, à diferença dos demais seres vivos, tem necessidades certamente não limitadas somente ao «ter»[679], porque a sua natureza e a sua vocação estão em relação indissolúvel com o Transcendente. A pessoa humana se entrega à aventura da transformação das coisas mediante o seu trabalho para satisfazer necessidades e carências antes de tudo materiais, mas o faz seguindo um impulso que a impele sempre para além dos resultados conseguidos, em busca do que possa corresponder mais profundamente às suas indeléveis exigências interiores.
319 Mudam as formas históricas em que se exprime o trabalho humano, mas não devem mudar as suas exigências permanentes, que se reassumem no respeito dos direitos inalienáveis do homem que trabalha. Defronte ao risco de ver negados estes direitos, devem ser imaginadas e construídas novas formas de solidariedade, levando em conta a interdependência que liga entre si os homens do trabalho. Quanto mais profundas são as mudanças, tanto mais decidido deve ser o empenho da inteligência e da vontade para tutelar a dignidade do trabalho, reforçando, nos vários níveis, as instituições envolvidas. Esta perspectiva consente orientar do melhor modo as atuais transformações na direção, tão necessária, da complementaridade entre a dimensão econômica local e a global; entre economia «velha» e « nova »; entre a inovação tecnológica e a exigência de salvaguardar o trabalho humano; entre o crescimento econômico e a compatibilidade ambiental do desenvolvimento.
320 Para a solução das vastas e complexas problemáticas do trabalho, que em algumas áreas assumem dimensões dramáticas, os cientistas e os homens de cultura são chamados a oferecer o seu contributo especifico, tão importante para a escolha de soluções justas. É uma responsabilidade que os insta a por em evidência as oportunidades e os riscos que se perfilam nas mudanças e sobretudo a sugerir linhas de ação para guiar a mudança no sentido mais favorável ao desenvolvimento da inteira família humana. Incumbe-lhes a eles o grave encargo de ler e interpretar os fenômenos sociais com inteligência e amor pela verdade, sem preocupações ditadas por interesses de grupo ou pessoais. O seu contributo, com efeito, justamente porque de natureza teórica, se torna uma referência essencial para a concreta atuação das políticas econômicas[680].
321 Os atuais cenários de profunda transformação do trabalho humano tornam portanto ainda mais urgente um desenvolvimento autenticamente global e solidário, capaz de abarcar todas as regiões do mundo, inclusive as menos favorecidas. Para estas últimas, o início de um processo de desenvolvimento solidário de vasto alcance não só representa uma concreta possibilidade para criar novos empregos, mas também se configura como uma verdadeira e própria condição de sobrevivência para povos inteiros: «É necessário globalizar a solidariedade »[681].
Os desequilíbrios econômicos e sociais existentes no mundo do trabalho devem ser enfrentados restabelecendo a justa hierarquia dos valores e pondo em primeiro lugar a dignidade da pessoa que trabalha: « As novas realidades, que acometem com vigor o processo produtivo como a globalização das finanças, da economia, do comércio e do trabalho, jamais devem violar a dignidade e a centralidade da pessoa humana, nem a liberdade e a democracia dos povos. A solidariedade, a participação e a possibilidade de governar estas mudanças radicais constituem, se não a solução, sem dúvida a necessária garantia ética para que as pessoas e os povos não se tornem instrumentos mas protagonistas do seu futuro. Tudo isto pode ser realizado e, dado que é possível, se torna imperioso »[682].
322 Mostra-se cada vez mais necessária uma cuidadosa ponderação da nova situação do trabalho no atual contexto da globalização, numa perspectiva que valorize a propensão natural dos homens a entabular relações. A tal propósito, se deve afirmar que a universalidade é uma dimensão do homem, não das coisas. A técnica poderá ser a causa instrumental da globalização, mas é a universalidade da família humana a sua causa última. Portanto, também o trabalho tem uma dimensão universal própria, na medida em que se funda na relacionalidade humana. As técnicas, especialmente eletrônicas, têm permitido dilatar este aspecto relacional do trabalho a todo o planeta, imprimindo à globalização um ritmo particularmente acelerado. O fundamento último deste dinamismo é o homem que trabalha, é sempre o elemento subjetivo e não o objetivo. Também o trabalho globalizado tem origem, portanto, no fundamento antropológico da intrínseca dimensão relacional do trabalho. Os aspectos negativos da globalização do trabalho não devem mortificar as possibilidades que se abriram para todos de dar expressão a um humanismo do trabalho em âmbito planetário, a uma solidariedade do mundo do trabalho neste nível, a fim de que, trabalhando em semelhante contexto, dilatado e interconexo, o homem compreenda cada vez mais a sua vocação unitária e solidária.
VAI E FAZE MESMA COISA (LUC 10, 37) “God in us and above us,” namely, “God in us,” is devalued. The result is a completely different concept of God: God, understood as “God above us,” becomes, as it were, the essence of the creature: the creature is reduced to an essence‐less apparition of the “God above us,” who alone is real and efficacious. Transcendence and immanence are no longer bound together in a tension of opposites, but have become identical.
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BOM DIA
A PAZ DE CRISTO E AMOR DE MARIA.
VINDE E VEDE