1 INTRODUÇÃO
A motivação que perpassa e orienta todo o Segundo Evangelho é o desejo de responder a pergunta pela identidade de Jesus, simultaneamente ocultada e desvelada pelo segredo messiânico. O fundamento último deste anseio não é meramente teórico ou doutrinal, mas trata-se da procura existencial de uma resposta, que só pode ser alcançada no convívio com Jesus e que, uma vez achada, possui a potencialidade de mudar a vida de modo radical. O espaço teológico dessa experiência é o caminho, no qual a pessoa se encontra com Jesus e é chamada ao seguimento. Este, por sua vez, exige renúncia e confiança, pois, uma vez iniciado, Jesus faz questão de ir sempre na frente. Aliás, o caminho conduz à Jerusalém, onde aguarda a cruz, que é, não somente o destino do Senhor, mas também o do discípulo e, portanto, o da Igreja. Nessa lógica, o caminho supõe optar por Jesus, clarificar as implicâncias dessa opção, fazer experiência da crise e, eventualmente, reoptar pelo seguimento – desta vez com maior consciência.(BOMBONATTO, 2002, p. 51-57).
Tendo apresentado o Evangelho de Marcos nas suas linhas mestras e depois de aprofundarmos a sua concepção messiânica, estamos em condições de mergulhar, nesta terceira parte, na visão marcana do discipulado. Duas perguntas orientarão a nossa reflexão: O que é ser discípulo para Marcos? Que tipo de relação existe entre a concepção messiânica de Marcos e seu modo de compreender o discipulado? Ressaltamos que esta última pergunta exprime a tese central do nosso trabalho: não é possível entender o discipulado em Marcos sem uma prévia e adequada percepção da sua concepção messiânica.
2 SEGUIR JESUS NO CAMINHO
Para Marcos, ser discípulo é, fundamentalmente, seguir Jesus no caminho. Isso explica por que, na seção dedicada ao discipulado (cf. Mc 8,22–10,52), o verbo “seguir” é predominante (cf. Mc 8,34; 10,21.28.32.52), assim como também o substantivo “caminho”, que é o itinerário existencial onde o discipulado acontece (cf. Mc 8,27; 9,33.34; 10,32.46.52).(SMITH, 1996, p. 527).
Sendo a essência do discipulado, o seguimento é a proposta básica de Jesus nos relatos de chamamento: “Segue-me” (cf. Mc 1,17-18.20; 2,14; 10,21). Essa proposta inicial é posteriormente qualificada por Marcos: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8, 34). O discípulo, de fato, segue Jesus num caminho específico: aquele que leva à Jerusalém, onde o Filho do Homem será entregue.(TERRA, 1997, p. 22).
Entretanto, na intimidade do caminho, no convívio quotidiano, Jesus se dá a conhecer à comunidade dos seguidores. Por isso, o caminho é o espaço da grande pergunta marcana: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,27). Ela conduz às respostas basilares onde a identidade de Jesus é desvendada (cf. Mc 8,29; 15,39). Mas não somente Jesus se revela no caminho, pois também os discípulos se dão a conhecer no seguimento do Mestre. De fato, Marcos não se propõe apenas a desvelar o mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus (cf. Mc 1,1), mas quer que, simultaneamente, o discípulo descubra seus medos, suas incompreensões, suas fragilidades, suas contradições e suas resistências diante de uma proposta que lhe questiona e desinstala (cf. Mc 8,32-33; 9,33-34; 10,35-40). (BOMBONATTO, 2002, p. 51-57).
3 ATRÁS DOS PASSOS SEUS
Seguir Jesus no caminho supõe deixar-se conduzir por ele, depor a lógica e a perspectiva dos homens e acolher a lógica e a perspectiva de Deus (cf. Mc 8,33). Para os homens, isso pode parecer impossível (cf. Mc 10,27) e até absurdo, uma lógica sem lógica, mas, a rigor da verdade, para Marcos, trata-se da única lógica possível, a lógica dos paradoxos: “Quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará” (Mc 8,35); “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos!” (Mc 9,35).
Marcos traduz essa atitude fundamental de confiança e abandono numa posição específica que o discípulo deve assumir em relação ao Mestre, pois, para seguir efetivamente a Jesus, o discípulo deve colocar-se – invariavelmente – atrás dele. Isso é, deve: assumir os critérios do Reino, perseverar na fé, renunciar a si próprio, confrontar-se com o rosto do Servo Sofredor, declinar a dinâmica dos homens e mergulhar-se na dinâmica de Deus.
Não é por acaso que a mulher com hemorragia se aproxima de Jesus “por detrás” (Mc 5,27) visando tocar seu manto. Implicitamente, essa é também a posição do cego de Jericó, que uma vez curado “foi seguindo Jesus pelo caminho” (Mc 10,52). O mesmo pode-se dizer dos discípulos subindo para Jerusalém, em meio às incertezas do caminho: “Jesus ia à frente, e eles, assombrados, seguiam com medo” (Mc 10,32).
O seguidor de Jesus experimenta, no entanto, a frequente tentação de sair da posição de discípulo e se pôr em pé de igualdade com o Mestre, ou até na frente dele. O evangelista, porém, nos mostra que, justamente nesse deslocamento de posições, o seguidor deixa de ser tal. Assim, o discípulo que passou à frente ou se colocou ao lado de Jesus terá que voltar para trás. Eis, pois, o motivo da reprimenda de Jesus a Pedro: “Vai para trás de mim, satanás!” (Mc 8,33)[1]. Se Pedro quer continuar no caminho, deve voltar para o lugar do discípulo, ou seja, atrás do Mestre.
4 OS “DE DENTRO” E OS “DE FORA”: UMA DISTINÇÃO NÃO TÃO ABSOLUTA
Já foi apontado que, para Marcos, a atitude assumida diante do evangelho define o ser “de dentro” ou “de fora” (cf. Mc 3,31). (MARTÍNEZ; CARMO, 2014, p. 52).
Os “de dentro” são os “com Jesus”, ou seja, seu círculo íntimo, aqueles que, sentindo-se interpelados por ele e desejosos de conhecê-lo, colocam-se a caminho e o seguem. Para isso, sentir-se admirado, incomodado ou desconcertado por sua pessoa, suas ações ou seu ensinamento pode ser o passo inicial. Tais sentimentos ou moções podem, de fato, suscitar o desejo de ir atrás de Jesus à procura de uma maior compreensão.
Em contraste com o grupo anterior, os “de fora” são aqueles incapazes de aceitar a Boa Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus. São “de fora”, não literalmente, mas no sentido de não estarem iniciados no mistério cristão da salvação. Nessa condição se situam: os adversários de Jesus, aos quais se dedicam numerosos relatos de controvérsias (cf. Mc 2,6-12.15-17.18-22; 3,1-6;6,1-6; 7,1-13; 8,11-13; 10,1-12; 12,1-12.18-27.35-40); os próprios parentes de Jesus (cf. Mc 3,20-35) e a multidão, uma massa indiferenciada de pessoas que Jesus atrai, evita ou procura. (ANTONIAZZI, 1989, p. 38).
Contudo, a distinção entre os de dentro e os de fora não é absoluta. Em primeiro lugar, porque os discípulos podem provir da multidão que, enquanto tal, integra a categoria dos “de fora”. Dito de outro modo, embora os discípulos não sejam uma parte da multidão, mas um grupo diferenciado, frequentemente são tirados dela. (BEST, 1977, p. 392). Por outro lado, apesar das instruções que os discípulos recebem em particular e embora lhes seja confiado o mistério do Reino de Deus (cf. Mc 4,11), eles não dão conta de compreender o que Jesus faz ou diz (cf. Mc 4,13; 6,52; 7,18; 8,17; 9,32), assumem com frequência as atitudes do antirreino (cf. Mc 8,32; 9,33-41; 10,35-40) e abandonam o Mestre na paixão (cf. Mc 14,50). Os “de fora”, pelo contrário, em algumas ocasiões surpreendem por sua capacidade de acolher o Reino. Uma vez ou outra, Marcos inverte os papeis, de modo que os “de dentro” fiquem fora (como Pedro no primeiro anúncio da paixão – cf. Mc 8,32), e os “de fora” fiquem dentro (como Bartimeu, que, uma vez curado da sua cegueira, segue Jesus decididamente pelo caminho – cf. Mc 10,52). (SMITH, 1996, p. 527).
5 DISCIPULADO, INCOMPREENSÃO E CEGUEIRA
Como já foi dito, o Segundo Evangelista insiste na incompreensão dos interlocutores de Jesus, o que constitui um desdobramento do segredo messiânico.(MARTÍNEZ; CARMO, 2015). Este, de fato, encontra sua razão de ser na incapacidade, tanto dos “de dentro” quanto dos “de fora”, para compreender o messianismo diferente que lhes é apresentado. Tal incompreensão só poderá ser superada após a ressurreição do Filho do Homem, momento no qual o segredo desaparece (cf. Mc 9,9). Os próprios seguidores, embora sejam feitos partícipes do conteúdo do segredo (Mc 4,11), não dão conta de enxergá-lo. A cegueira caracteriza assim a situação dos discípulos pré-pascais e, de certo modo, da comunidade de Marcos que, à medida que resiste à cruz, exclui a si mesma da experiência pascal.
Marcos expressa esse estado de incompreensão construindo uma grande inclusão, que se abre na cura do cego de Betsaida (cf. Mc 8,22-26) e se encerra na cura do cego de Jericó (cf. Mc 10,46-52), delimitando assim a seção sobre o discipulado (cf. Mc 8,22–10,52). A primeira cura, localizada imediatamente antes da profissão de Pedro (cf. Mc 8,27-30) e realizada em duas etapas, após uma cura parcial (“estou vendo as pessoas como se fossem árvores andando” – Mc 8,24), parece introduzir uma confissão de fé válida, mas ainda necessitada de esclarecimento ulterior (“e começou a ensinar-lhes que era necessário o Filho do Homem sofrer muito” – Mc 8,31). (TERRA, 1997, p. 12). Aliás, a perícope encontra-se precedida pela censura aos discípulos presente em Mc 8,18 (“tendo olhos, não enxergais, e tendo ouvidos, não ouvis?” – cf. Jr 5,21), o que reforça a ideia de que o relato aponta para o grupo de seguidores (incluída a Igreja de Marcos). (TILLESSE, 1992, p. 122). Por sua vez, a segunda cura sugere, na figura de Bartimeu, que a incapacidade dos discípulos perdura nas proximidades de Jerusalém, pois, antes de fazerem a experiência da ressurreição – única que pode abrir os olhos definitivamente –, devem passar pela paixão e pela cruz.
6 PREDIÇÕES DA PAIXÃO: CONSEQUÊNCIAS PARA A COMUNIDADE
Se no esquema bipartido de Marcos a profissão de fé petrina constitui o começo da segunda parte, as subsequentes predições da paixão significam, para o grupo de discípulos, um verdadeiro recomeçar. A comunidade deverá confrontar-se com a necessidade da paixão e, diante da crise que isso provoca, deverá tomar uma nova decisão: desistir ou reoptar pelo seguimento, mas, desta vez, de maneira mais consciente e madura que no princípio. (GNILKA, 1986, v. 2, p. 9). Para que isso aconteça, o evangelista coloca um tríplice anúncio da paixão, evidenciando, em cada ocasião, não somente a natureza do messianismo de Jesus, mas também as incongruências da comunidade[2] e o caráter processual do seguimento. Ora, uma vez explicitado o destino do Filho do Homem, o evangelista exprime suas consequências para o grupo de seguidores. As consequências da opção pelo Mestre aparecem imediatamente depois da primeira predição da paixão (cf. Mc 8,34-38), projetando-se o influxo desse ensinamento sobre as duas predições restantes.
Primeira predição da paixão – Seguimento e renúncia (cf. Mc 8,31-38). Diferentemente da profissão de Pedro, que recebeordem de silêncio no âmbito do segredo messiânico, o primeiro anúncio da paixão – imediatamente posterior – é realizado “abertamente” (Mc 8,32). O evangelista faz questão de situar a cena “no caminho” (Mc 8,27), âmbito próprio do seguimento. A reação de Pedro, porta-voz dos discípulos, é de contundente rejeição, o que evidencia a resistência do grupo (e da Igreja de Marcos) perante a cruz. A resposta de Jesus é igualmente contundente: quem se opõe à dinâmica do sofrimento assume o papel de Satanás, o opositor por excelência, e está fora do caminho. Por isso, Pedro, que sendo seguidor de Jesus parece pretender agora ser seguido por ele, deve retomar o caminho se quer continuar o discipulado. (MATEOS; CAMACHO, 1994,p. 168). Aliás, mediante a dura exortação de Mc 8,33, “Vai para trás de mim, satanás!”, é renovado o chamamento de Mc 1,17, “Segui-me”.
Reiterado o convite ao seguimento, Jesus explicita logo as consequências do discipulado: participar do seu destino messiânico (cf. Mc 8,34-38). Sem preâmbulos e sem se preocupar com a repercussão do discurso, Marcos coloca às claras as exigências da opção pelo Mestre. Quem quiser continuar – ou iniciar – o caminho de Jesus deve saber que a renúncia de si mesmo e a acolhida da cruz são requisitos sinequa non – portanto, inegociáveis – do seguimento. Livre frente a si mesmo e a seus interesses, o discípulo precisará integrar a dinâmica do Servo. Como Jesus, deverá abraçar a rejeição social e a possibilidade extrema e atual do martírio. E, em consequência, descobrirá que a vida plena e a autêntica realização pessoal somente se alcançam na fidelidade a Cristo, frente à qual empalidecem todos os bens e as promessas que o mundo pode oferecer (cf. Mc 8,34-38). (BARBAGLIO, 1990, v. 1, p. 515-518).
Segunda predição da paixão – Quem é o maior? (cf. Mc 9,30-37). Salientando a incompreensão dos discípulos diante do segundo anúncio – em essência, igual ao anterior –, Marcos coloca uma cena particularmente reveladora da distância abismal entre o que está sendo comunicado e a atitude da comunidade: os discípulos continuam presos aos esquemas hierárquicos judeus e discutem “pelo caminho” (Mc 9,33) quem é o maior. A questão afeta diretamente o relacionamento recíproco entre os discípulos e assume, portanto, proporções comunitárias. Como no primeiro anúncio da paixão, mais uma vez, fica em evidência a dificuldade do grupo para aceitar a dinâmica do Reino.
Sentando-se solenemente – posição correspondente a de um Mestre, sempre pronto a ensinar –, Jesus inverte a perspectiva: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos!” (Mc 9,35). Em seguida, chama uma criança – pouco valorizada no mundo antigo e à margem da Torá –, coloca-a no meio deles, abraça-a e se identifica com ela: “Quem acolhe em meu nome uma destas crianças, a mim acolhe” (Mc 9,37a)[3]. E, em última instância, identifica-a com o próprio Deus: “quem me acolhe, acolhe, não a mim, mas Àquele que me enviou” (Mc 9,37b). Portanto, a comunidade deve abrir-se aos mais desfavorecidos e ser para eles um espaço de acolhida amorosa, serviço e participação. Novamente, os Doze são confrontados com a lógica paradoxal de Deus: “Quem quiser salvar sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará” (Mc 8, 35).
Terceira predição da paixão – Os primeiros lugares (cf. Mc 10,32-45). Como nos dois anúncios anteriores, também o terceiro é colocado sob o motivo do caminho ou, mais precisamente, do caminho que leva à Jerusalém (cf. Mc 10,32). Aliás, Marcos deixa claro que Jesus caminha na frente e os discípulos atrás. Para Marcos – reiteramos – o caminho com o mestre à frente é a imagem do discipulado; ser discípulo significa ir atrás dos passos de Jesus no caminho para a cruz. (GNILKA,1986, v. 2, p. 113). Contudo, a perícope seguinte (cf. Mc 10,35-45) evidencia que, embora sigam os passos do Mestre, o seguimento ainda é marcado pela inconsistência. De fato, nas proximidades da Cidade Santa, a incongruência dos discípulos parece aumentar. Num contraste chocante com o que acaba de ser anunciado, os filhos de Zebedeu pedem para eles os primeiros lugares. Os outros discípulos não são melhores; reagem com ira diante da perspectiva de que tal honra lhes seja arrebatada.
Em seguida, Jesus contrapõe as imagens do servo e do escravo como modelos a serem seguidos pela nova comunidade. (BARBAGLIO, 1990, v. 1, p. 536-539). Esta não deve orientar-se pelos critérios dos poderosos, mas pelo exemplo do Filho do Homem, que veio para servir e dar a vida (cf. Mc 10,42-45).
7 DESTINO MESSIÂNICO E DESTINO ECLESIAL: AS CONSEQUÊNCIAS DA PAIXÃO NO DISCURSO ESCATOLÓGICO
Imediatamente antes do relato da paixão (cf. Mc 14–15), Marcos coloca o segundo grande discurso da sua obra[4], ao qual dedica todo o capítulo 13. Apresentado como ensinamento particular a um grupo seleto de discípulos (Pedro, Tiago, João e André[5]), o discurso participa das principais características da apocalíptica judaica, ganhando entre os exegetas o nome de “discurso escatológico”. Fiel à tradição apocalíptica, o capítulo revela em termos de futuro o que, na verdade, já tinha acontecido ou estava acontecendo no momento em que o Evangelho foi escrito: o fim do Templo, a destruição da Cidade Santa e a perseguição dos cristãos. Diante de tais circunstâncias, a comunidade é animada e exortada a vigiar e perseverar, já que a esperança na ressurreição final não pode ser desvinculada da morte do Filho do Homem.(BRITO, não publicado).
A localização do discurso é especialmente significativa, pois, inserindo-o às portas da paixão, Marcos está indicando mais uma vez que esse – e não outro – é o destino do seguidor. O tríplice anúncio da paixão adquire assim um significado decisivo e atual para os discípulos. Em outras palavras, assim como a morte do Batista prefigura o destino do messias, também a morte de Jesus antecipa o destino da comunidade. O evangelista faz questão de anunciar essa máxima antes de relatar a paixão de Jesus.(TILLESSE, 1990, p. 80-81).
8 MISSÃO E MARTÍRIO
Já dissemos que à pergunta pelo tipo de messianismo assumido por Jesus, Marcos responde com o tríplice anúncio da paixão, estrategicamente inserido na segunda parte de seu Evangelho, após a profissão de fé de Pedro. Indicamos também que, como o discípulo é essencialmente um seguidor do Crucificado, ambos partilham o mesmo caminho e desenlace, o que o evangelista plasma simbolicamente no discurso apocalíptico (cf. Mc 13). Aliás, a contundente alocução com que Marcos inicia a seção sobre o discipulado não deixa espaço para ambiguidades: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34).
Ora, tal associação entre discipulado e paixão – característica da segunda parte do Evangelho –, foi comunicada antecipadamente pela narração do martírio de João Batista, localizada na primeira parte do Evangelho (cf. Mc 6,14-29), num relato em forma de sanduíche literário que se encontra justamente entre o envio (cf. Mc 6,6b-13) e o retorno (cf. Mc 6,30) dos Doze.(EDWARDS, 1989, p. 193-216).O relato oferece uma sutil vinculação entre a missão, que é uma dimensão constitutiva do discipulado (cf. Mc 1,17; 5,19-20; 16,7), e o martírio.(AZEVEDO, 1989, p. 26).
Pode-se descobrir mais de um sentido no relato do martírio de João. Sem dúvida, o mais evidente é o paralelismo entre a morte do Batista e a morte de Jesus. Marcos mostra que, sendo João o precursor da mensagem e do ministério de Jesus, também o é da sua morte. Com essa finalidade, o evangelista faz diversas pontes entre o martírio de João e a crucifixão de Jesus, reforçando assim a vinculação entre eles: João é justo e padece uma morte iníqua; Jesus é o arquétipo do justo sofredor. Herodes, que manda matar João, assim como Pilatos, que manda matar Jesus, trabalha para o Império Romano; além de ambos se apresentarem pusilânimes diante da pressão social e, por isso, condenam à morte um inocente. (EDWARDS, 1989, p. 205-206).
Certamente, todos esses matizes foram intencionalmente incorporados por Marcos ao relatar o martírio de João Batista. Mesmo assim, isso não explica o motivo pelo qual o Segundo Evangelista inseriu a narrativa como um parêntese entre o envio (cf. Mc 6,6b-13) e o retorno (cf. Mc 6,30) dos Doze. Parece que Marcos via uma relação estreita entre a missão e o martírio e, consequentemente, entre o discipulado e a morte. Desse modo, indica-se ao leitor que o martírio do Batista não somente prefigura a morte de Jesus, mas também prefigura o destino do discípulo-missionário, pois, se a missão é uma prolongação da ação do Mestre (cf. Mc 3,14-15; 6,7), assim também o martírio de quem anuncia a Boa Nova é uma prolongação da morte dele[6]. (EDWARDS, 1989, p.205-206).
9 O CAMINHO CONTINUA – E RECOMEÇA – NA GALILEIA
Como antecipamos ao tratar da estrutura do Segundo Evangelho (MARTÍNEZ; CARMO, 2014, p. 52-54), o texto redigido por Marcos termina na cena do sepulcro vazio (cf. Mc 16,8), que inclui o anúncio do jovem resplandecente às mulheres, o mandato de transmiti-lo aos discípulos e a Pedro e o subsequente silêncio daquelas[7]. Mas alguém – certamente sem compreender plenamente a teologia marcana – julgou inacabado ou pouco satisfatório esse final, acrescentando um sumário – também canônico – que sintetiza as narrativas de aparições tiradas dos outros Evangelhos (cf. Mc 16,9-20). Em todo caso, a perplexidade diante de um final tão sucinto e despojado parece compreensível e, por que não, desejada pelo próprio evangelista.
Para Marcos, o leitor deve conformar-se, pelo menos provisoriamente, com o anúncio do jovem: “Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi crucificado? Ressuscitou! Não está aqui!” (Mc 16,6). Nem aparições do Ressuscitado nem discípulos proclamando a fé pascal; só a promessa de um encontro futuro na Galileia (cf. Mc 16,7), eco de Mc 14,28. A concepção marcana do discipulado é levada assim até as últimas consequências: quem quiser encontrar-se com o Ressuscitado deve voltar à Galileia – onde tudo começou e onde Jesus aguarda para reconstituir o rebanho disperso (cf. Mc 14,27) –; deve percorrer, atrás do Mestre, seguindo os passos dele, o caminho que leva à Jerusalém; deve acompanhá-lo, como as mulheres, ao pé da cruz; deve confessá-lo, como o centurião no momento de máxima humilhação, e deve também, como as mulheres, adentrar-se no sepulcro vazio. (KONINGS, 1994, p. 66).Para aqueles que já iniciaram o caminho, o retorno à Galileia é como um novo começo, pois o discípulo nunca está pronto; ele deve sempre recomeçar. Para aqueles que ainda não o iniciaram, é como se Marcos, ainda que visando transmitir a fé pascal, somente achasse possível conduzi-los até a periferia da fé, pois nada – nem mesmo o relato evangélico – pode suprir a experiência personalíssima do encontro com o Ressuscitado.(GNILKA, 1986, v. 2, p. 403).
10 CONCLUSÃO
Para saber quem é Jesus, é preciso segui-lo no caminho – andando sempreatrás dele –, pois, nessa partilha de vida que o caminho suscita, o Mestre se revela, se dá a conhecer. Mas não é só Jesus que se revela no caminho, pois também os discípulos se revelam nesse trajeto, exibindo seus limites e mazelas.
Vimos que a atitude adotada diante da inesperada proposta de Jesus determina o ser “de dentro” ou “de fora”. Contudo, essa distinção não é tão absoluta, pois, com frequência, Marcos inverte os papeis, de modo que os “de dentro” fiquem fora” e os “de fora” fiquem dentro.
Como observamos, o seguidor deve assumir que, realizando o mesmo itinerário de Jesus e dando continuidade à sua missão, partilhará também – se não desistir – seu destino de cruz. Esse é o princípio basilar do discipulado segundo Marcos, que fundamenta e abraça as dimensões restantes. A renúncia de si mesmo (cf. Mc 8,34), a atitude despojada perante as honras do mundo (cf. Mc 9,35) e o serviço oblativo (cf. Mc 10,43-45) não são mais do que simples concretizações daquele princípio fundamental.
Recordamos, por fim, o significado profundo do final redigido por Marcos (cf. Mc 16,8). O anúncio do jovem: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, como ele vos disse!” exprime a concepção marcana do discipulado, pois o caminho, que nunca termina definitivamente, recomeça na Galileia. Lá o Ressuscitado está à espera daqueles que desejam segui-lo.
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Começamos nossa pesquisa postulando sinteticamente a tese central da qual partimos: no Segundo Evangelho, o seguimento de Jesus – o discipulado – está intrinsecamente relacionado com o tipo de messias que o evangelista compreende que Jesus é (MARTÍNEZ;CARMO,2014, p. 47-48). Em outras palavras, para Marcos, uma adequada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma adequada compreensão do discipulado. Demonstrar – ou eventualmente descartar – essa intuição inicial foi o propósito subjacente aos três artigos publicados. Alcançado o final da nossa pesquisa, damos por confirmado que, entre a concepção de Marcos sobre o discipulado e seu modo de entender o autêntico messianismo, existe uma relação de dependência direta, de modo que não é possível enxergar apropriadamente o primeiro, sem antes esclarecer o segundo. Assim, o discípulo que quiser completar o itinerário proposto por Jesus – e por Marcos –, deverá antes, ou melhor, concomitantemente ao percurso do caminho, esclarecer a natureza do seu messianismo.
Concluímos este trabalho realçando a relevância do Evangelho de Marcos hoje. Há quase dois milênios de sua escrita, mediados por inúmeras e radicais mudanças histórico-culturais, ressoa ainda em nossos corações o Evangelho de Jesus que Marcos anunciou. Ainda que o Jesus apresentado por Marcos não seja o messias esperado por uma imensidão de cristãos – que desejariam que ele fosse um Deus miraculoso, sempre a nosso serviço – ele é, com certeza, a Boa-Nova do Pai que o mundo precisa conhecer e que nós cristãos devemos anunciar.
No mundo contemporâneo, onde a Boa-Nova de Jesus tornou-se desconhecida inclusive para os batizados, é urgente redescobrir a pessoa e a proposta de Jesus. Aliás, é fundamental aproveitar a oportunidade única que nos concede o processo de secularização para propor a experiência de Jesus Cristo e suscitar uma resposta verdadeiramente pessoal, já não mais dependente do ambiente de cristandade, próprio dos séculos passados. No novo contexto, a exigência da adesão pessoal à fé cristã ganha destaque, e a proposta de Marcos – com sua pergunta central, “Quem é Jesus?” – encontra ainda mais pertinência. Para saber quem é Jesus, é preciso caminhar com ele, deixar-se impregnar por seu Evangelho e entrar na dinâmica de seu seguimento. Para conhecê-lo, é preciso fazer a experiência de sua presença no caminho.
Em tempos de pós-modernidade, que tanto valoriza a subjetividade, devemos insistir na vigência do Segundo Evangelho. Percebemos que hoje o ser humano encontra-se cada vez mais ávido de novas experiências que o afirmem no caminho de sua subjetividade. Marcos, que propõe o Evangelho como força pra viver, tem muito a contribuir, nesta tarefa, com seu modelo de discipulado. Para ele, o discipulado não é processo de doutrinação nem de aprendizado, mas o seguimento de uma pessoa concreta, Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, do qual se faz experiência no convívio quotidiano(Documento de Aparecida, 12; Sacrosanctum Concilium, 1).
Encerrando nossa reflexão, destacamos a profunda comunhão existente entre a compreensão marcana da fé em Jesus e a percepção que os homens e as mulheres de hoje possuem da própria existência. Esta é, cada vez mais, sentida como devir fluído e dinâmico, como processo nunca fechado e sempre inconcluso, como compromisso que não se dá uma vez para sempre, mas que, para perdurar, precisa ser renovado incessantemente. Assim também é a fé para Marcos. Ela nunca é um ponto de chegada, que possa ser conquistada de modo definitivo, mas um constante ponto de partida, uma “eterna iniciante”, um permanente recomeçar. (VILLEPELET apud CARMO, 2013, p. 201-202). À luz desta compreensão dinâmica da fé – e do discipulado –, as palavras ditas a Pedro no caminho de Cesareia, “vai para trás de mim” (Mc 8,33), ganham, no sepulcro vazio, um novo significado: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, como ele vos disse!” (Mc 16,7)… É preciso recomeçar!
REFERÊNCIAS
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MARTÍNEZ, Juan Pablo García; CARMO, Solange Maria. Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus: as linhas mestras do Evangelho de Marcos.Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v. 13, n. 26, p. 45-59, 2014.
MARTÍNEZ, Juan Pablo García; CARMO, Solange Maria. Vai para trás de mim: a questão messiânica no Evangelho de Marcos. Horizonte Teológico, v. 14, n. 27, p. xxx-xxx, 2015. (colocar as páginas da revista anterior, não colocamos pois ainda não estava pronta!)
MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Marcos: Texto y comentario. Córdoba: El Almendro, 1994.
SMITH, Stephen H. The function of the Son of David tradition in Mark´s Gospel.New TestamentStudies, Cambridge,v. 42, p. 523-539, 1996.
TERRA, João Evangelista Martins. Cristo no Evangelho de Marcos. Revista de Cultura Bíblica,São Paulo, v. 21, n. 81-82, p. 3-18, 1997.
TERRA, João Evangelista Martins. O segredo messiânico. Revista de Cultura Bíblica, São Paulo,v. 21, n. 81-82, p. 19-24, 1997.
TILLESSE, Caetano Minette de.Evangelho segundo Marcos: nova tradução estruturada, análise estrutural e teológica.Fortaleza: Nova Jerusalém, 1992.
VATICANO II. SacrosanctumConcilium: Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia. Petrópolis: Vozes, 2013.
[1] Anotamos que Jesus não manda Pedro para longe de si, o que seria contrário à teologia de Marcos, mas o exorta a retomar a posição própria do discípulo. Daí a expressão: “Vai para trás de mim, satanás” (Mc 8,33). Consequentemente, a difundida tradução, “afasta-te de mim, satanás!”, deve ser corrigida, pois não se trata de afastar o discípulo – muito menos de um relato de exorcismo –, mas de recolocar Pedro no lugar que, enquanto seguidor, lhe corresponde:atrás do Mestre.
[2] Por trás da comunidade retratada no Evangelho, pode se imaginar a comunidade marcana, com suas próprias contradições e resistências.
[3] Cf. também o relato paralelo de Mc 10,13-16.
[4] Sendo o primeiro o das parábolas, no capítulo 4.
[5] Os quatro chamados em primeiro lugar (cf. Mc 1,16-20).
[6]Precisamente porque a Boa Nova é o próprio Jesus Cristo, Filho de Deus (cf. Mc 1,1), o missionário, para ser crível, deve ser coerente com Aquele que o envia e que anuncia. Daí o despojamento exigido no começo da perícope comentada (cf. Mc 6,8-10). (GNILKA, 1986,v. 1, p.278-279).
[7] Trata-se de um último resquício do segredo messiânico, mas, desta vez, às avessas. De fato, se antes o mandato era de calar e, no entanto, o silêncio era quebrado; agora a ordem é de anunciar, mas – ironicamente – as mulheres não dizem nada a ninguém (cf. Mc 16,8). (GNILKA, 1986, v. 2, p. 403). Aliás, como no relato da transfiguração – que prefigura a ressurreição –, em que os discípulos não devem dizer nada a ninguém, também agora – na hora da ressurreição – as mulheres não dizem nada a ninguém. (BARBAGLIO, v. 1, p. 619).
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