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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Pluralismo Inclusivo de Jacques Dupuis

Os paradigmas da teologia cristã do pluralismo religioso

O itinerário seguido pela teologia cristã, no seu esforço de compreender a relação do cristianismo com as outras religiões pode ser sintetizado em três diferentes perspectivas adotadas no tratamento da questão[2]. Há que reconhecer que são perspectivas que envolvem inúmeras variações e nuances. O caminho mais tradicional de abordagem sobre o tema identifica-se com o paradigma[3] exclusivista, presente tanto em âmbito católico-romano como protestante. Trata-se de uma posição que vincula a possibilidade de salvação ao conhecimento explícito de Jesus Cristo e a pertença à Igreja. Sua vigência encontra-se mais rarefeita no tempo atual, restringindo-se a grupos católicos mais conservadores e núcleos de fundamentalistas protestantes[4].

Um caminho hoje mais partilhado identifica-se com o paradigma inclusivista, que se apresenta diversificado em modelos diferenciados. É uma perspectiva que já admite a atribuição de valor positivo às religiões, sem contudo conferir-lhes uma autonomia salvífica, em razão da defesa da unicidade e universalidade da salvação em Jesus Cristo. Podem-se destacar três posições (ou modelos) presentes neste paradigma.

Em primeiro lugar, o que se convencionou chamar de teoria do acabamento (ou cumprimento), defendida por teólogos como Jean Daniélou, Henri de Lubac e Hans Urs von Balthasar, entre outros. Nesta posição, são reconhecidos os valores positivos das outras religiões, mas estas são destinadas a encontrar o seu “acabamento” ou “remate” no cristianismo. As outras tradições religiosas, tidas como naturais, são concebidas como “preparação evangélica” ou “marcos de espera” para a sua realização no cristianismo.

Uma segunda posição, associada ao pensamento de Karl Rahner, marca uma mudança de perspectiva. Em razão de uma compreensão mais aberta da dinâmica da revelação, as outras religiões deixam de ser vistas como simples expressões “naturais” de uma busca humana, e passam a ser reconhecidas em sua dimensão sobrenatural, definida pela operante presença do mistério de Jesus Cristo em seu interior. Rahner enfatiza a presença de um “componente existencial sobrenatural” nas diversas religiões, o que impossibilita considerá-las simplesmente fruto da especulação humana, da depravação ou vontade autônoma de criação[5]. Mas permanece para ele em vigência a idéia da constitutividade salvífica de Jesus Cristo, ou seja, de Jesus como causa da salvação.

Uma terceira posição, hoje dominante entre teólogos como Jacques Dupuis e Claude Geffré, afirma a defesa de um pluralismo religioso inclusivo. Trata-se de uma posição que busca conciliar o “cristocentrismo inclusivo” com o “pluralismo teocêntrico”[6]. É uma  perspectiva que reconhece e acolhe o pluralismo religioso de princípio, entendido como realidade que se insere positivamente no desígnio misterioso de Deus. Mas que ao mesmo tempo mantém vigente e vinculante a afirmação de fé e a doutrina nuclear cristã sobre a unicidade de Jesus Cristo[7], enriquecida, porém, com uma compreensão mais dinâmica e aberta do processo das auto-manifestações de Deus e de seu Espírito na história. O pluralismo inclusivo defende com vigor o “valor intrínseco” das outras tradições religiosas, enquanto vias misteriosas de salvação.

Mas há também um outro caminho de resposta à questão, identificado com o paradigma pluralista, que envolve uma gama de posicionamentos teológicos, e que vem defendido entre outros  por John Hick e Paul Knitter. Como traço característico deste paradigma está o reconhecimento das outras tradições religiosas como instâncias legítimas e autônomas de salvação, como religiões verdadeiras e não como um cristianismo diminuído. Mas para tanto, torna-se necessário romper com a idéia da constitutividade salvífica de Jesus Cristo. Na hipótese pluralista de Hick, firma-se a idéia da centralidade do Real, que é fonte e fundamento de tudo, em torno do qual as diversas tradições religiosas encontram-se alinhadas, podendo a ele responder positivamente mediante um processo de transformação que leve do autocentramento ao recentramento no mistério maior da alteridade.
Uma cristologia trinitária e pneumatológica

As pistas teológicas abertas por Jacques Dupuis em favor de uma teologia cristã do pluralismo religioso foram apresentadas nas suas duas últimas obras, que compõem uma trilogia envolvendo o tema do cristianismo e as religiões[8]. O que ele propõe são roteiros que possam resultar num  “salto qualitativo da teologia cristã e católica das religiões, para uma avaliação teológica mais positiva delas e uma atitude concreta mais aberta com relação a seus seguidores”[9]. E roteiros que se inserem “deliberadamente no quadro da fé eclesial”, mas sempre abertos à interlocução criadora. É este “salto qualitativo” que pode garantir, segundo Dupuis, a credibilidade da mensagem cristã num tempo marcado pela dinâmica multicultural e multireligiosa.

O modelo proposto por Dupuis busca manter-se eqüidistante tanto do absolutismo como do relativismo. Trata-se de uma perspectiva que busca levar a sério a questão do pluralismo religioso, entendido como dado de princípio e situado no desígnio de Deus para a salvação da humanidade. Sua proposta consiste em mostrar a compatibilidade da afirmação da identidade cristã com “um reconhecimento autêntico da identidade das outras comunidades de fé”[10]. Para Dupuis, a auto-revelação do Mistério Absoluto, que opera sempre num desígnio unitário, manifesta-se em “diversos percursos religiosos” legítimos. Esta percepção abre novas perspectivas para o diálogo inter-religioso, que possibilita aos cristãos descobrir com admiração “tudo aquilo que a ação de Deus, através de Jesus Cristo e do seu Espírito, realizou e continua realizando no mundo e na humanidade inteira”[11]. Longe de lhes enfraquecer a fé, o diálogo a aprofunda, facultando-lhe sua abertura a novas e inéditas dimensões do Mistério de Deus. É nesse sentido que Dupuis justifica sua tese de que “uma teologia das religiões deve ser, em última análise, uma teologia do pluralismo religioso”[12].  

A  cristologia trinitária e pneumatológica vem identificada por Dupuis como chave interpretativa fundamental de acesso a uma teologia do pluralismo religioso, que possibilita a afirmação de um modelo teológico “para além dos paradigmas inclusivista e pluralista”. Trata-se de um projeto que foi nomeado por Dupuis como “pluralismo inclusivo”, cujo traço de especificidade consiste na busca de harmonização “do que se deve reter do inclusivismo cristológico com o que se pode afirmar teologicamente a respeito de um certo pluralismo das religiões no desígnio de Deus”[13]

Para Dupuis, uma falsa dicotomia determinou a recíproca contraditoriedade entre os paradigmas inclusivista e pluralista. A seu ver, “modelos que em si mesmos deveriam ser vistos como reciprocamente complementares foram, de fato, transformados em paradigmas contraditórios entre si”[14]. O novo modelo teológico permite a interação da fé cristã com outras perspectivas de fé, resguardando a singularidade de cada adesão particular.

Segundo Dupuis, a transformação do cristocentrismo em paradigma restritivo se deu em razão de uma inadequada atenção à dimensão inter-pessoal da cristologia, ou seja, das relações interpessoais entre Jesus e Deus e Jesus e o Espírito. Uma teologia do pluralismo religioso pressupõe uma “tensão construtiva” entre a centralidade do acontecimento histórico de Jesus Cristo e a influência dinâmica do Verbo e do Espírito.

Uma cristologia integral recupera, assim, a dimensão trinitária do mistério cristológico, mantendo intimamente unidas a “jesuologia” e a “cristologia”. Para Dupuis,  não tem sentido um Jesus sem o Cristo nem um Cristo sem Jesus. No mistério de Jesus Cristo, enquanto “universal concreto”, está dado tanto o seu significado universal como a sua particularidade histórica. O Cristo proclamado pela fé cristã é o mesmo Jesus histórico que por Deus foi constituído Cristo na sua ressurreição dos mortos (At 2,36)[15]. Uma cristologia adequada é, portanto, aquela que desvela o “Filho-de-Deus-feito-homem-na-história”[16].

A abertura das relações de Deus com a humanidade não se restringe em razão da adoção de uma perspectiva cristocêntrica. A restrição só acontece quando se trabalha o “cristocentrismo” em tom menor, deslocado de sua perspectiva trinitária. É o que ocorre quando não se desenvolve adequadamente a relação de Jesus com Deus e a tensão construtiva entre a centralidade do evento histórico Jesus Cristo e a ação universal do Espírito de Deus.

De acordo com Dupuis, a relação de Jesus com Deus pode ser caracterizada como uma relação recíproca de unidade (proximidade) e distância. A unidade é que confere o caráter específico à consciência religiosa de Jesus. É singular e inaudita a familiaridade com que Jesus se refere ao Pai; familiaridade que nasce de uma profunda e única intimidade com Ele. O Evangelho de João expressou com clareza esta realidade: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).[17] Para Dupuis, esta intimidade implica “uma imanência recíproca (Jo 10,38; 14,11; 17,21), um mútuo conhecimento (10,15), um amor recíproco (5,20; 15,10), uma ação comum – aquilo que Jesus realiza, o Pai realiza junto com ele (5,17)”[18]. Esta união de Jesus com o Pai encontra o seu fundamento último para além da condição humana.

Esta proximidade única que une Jesus com Deus, em virtude do próprio mistério da encarnação, não pode, segundo Dupuis, apagar a “distância abissal que permanece entre o Pai e Jesus na sua existência humana”. Em razão das implicações de uma cristologia trinitária, não se pode jamais pensar Jesus Cristo como realidade que substitua o Pai[19]. Isto não invalida a perspectiva cristã que identifica em Jesus Cristo a realização da plenitude da revelação. Mas esta plenitude é qualitativa e não quantitativa, na medida em que deixa aberto o espaço para as surpresas do Deus que sempre vem[20]. A revelação de Deus em Jesus permanece, porém, relativa:

“A consciência humana de Jesus, embora sendo a do Filho, é, todavia, uma consciência humana e, portanto, limitada. Não teria podido ser de outra forma, em vista do mistério da encarnação. Nenhuma consciência humana, nem mesmo a do Filho-de-Deus-que-se-tornou-ser-humano, pode ´compreender`, ou seja, abranger e exaurir o mistério divino na sua totalidade. Nenhuma expressão do mistério em palavras humanas, nem sequer as que brotam da experiência única do Filho na sua humanidade, pode exaurir a totalidade do mistério: somente a consciência intra-divina, partilhada pelas três pessoas no mistério da Trindade, é que o pode fazer”[21]

O tratamento que Dupuis dá ao tema da unicidade e universalidade de Jesus Cristo é bem precavido, de forma a preservar uma teologia aberta das religiões e do pluralismo religioso. Em defesa desta perspectiva, ele prefere falar do evento  Jesus Cristo  como “constitutivo” da salvação, em vez de falar de Jesus como “Salvador absoluto”.  O que busca assegurar em sua reflexão é a especificidade humana de Jesus. E o que vale para Jesus, vale mais decisivamente ainda para o cristianismo. A absolutez não pode, a seu ver, constituir-se em atributo de Jesus Cristo, enquanto Filho-de-Deus-feito-homem, e a nenhuma outra realidade criada e contingente. Daí evitar

“a todo custo falar de ´absolutez`quer referindo-se a Jesus Cristo quer, a fortiori, referindo-se ao cristianismo. A razão é que o ´absoluto`é um atributo da Realidade última ou Ser Infinito, que não deve ser atribuído a nenhuma realidade finita, até mesmo a existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem. O fato de Jesus Cristo ser Salvador ´universal`não faz dele o ´Salvador Absoluto`, que é o próprio Deus”[22].


 A história continua, assim, sendo palco da auto-revelação de Deus, embora “nenhuma revelação pode superar ou igualar, antes ou depois de Jesus Cristo, aquela que nos foi dada nele, o Filho divino encarnado”[23].  Dupuis é extremamente cuidadoso na escolha das palavras para definir o caráter singular do evento Jesus Cristo. Trata-se para ele de um evento decisivo, mas não definitivo, na medida em que deixa em aberto a dinâmica das manifestações divinas mediante a ação do Logos e do Espírito. Em sua visão, “a auto-manifestação definitiva de Deus à humanidade, como igualmente a completa realização da função salvífica de Cristo, coincidirá com o advento da plenitude do reino de Deus no eschaton (cf. 1 Cor 15, 26-28)”[24]

Ao contrário do que pensam determinados críticos[25], Dupuis não relativiza ou desconhece a “união hipostática e o caráter verdadeiramente teândrico da ação de Jesus Cristo”. O que ele faz, e com razão, é precisar os elementos de unidade e distinção presentes na relação filial de Jesus com Deus. Quando o autor trabalha a tônica da consciência filial de Jesus, sobretudo no capítulo terceiro da segunda parte de sua obra mais clássica[26], ele define com precisão e clareza o que de fato estabelece a “diversidade” de Jesus , ou seja, sua identidade pessoal de Filho (filiação divina). Garante-se, assim, o caráter qualitativamente diferente da revelação de Deus em Jesus Cristo. 

Assim como uma cristologia trinitária deve acentuar as relações interpessoais presentes na relação de Jesus com Deus, deve igualmente expressar a relação existente entre Jesus e o Espírito. A cristologia deve, necessariamente, incluir uma “cristologia pneumatológica”, capaz de perceber e acentuar a “presença universal e operante do Espírito de Deus no evento Cristo”[27]. Isto implica reconhecer a influência do Espírito em toda a trajetória  terrena de Jesus, desde o momento de sua concepção por influxo da dinâmica do Espírito (Lc 1,35), até o coroamento de sua ressurreição, por força do mesmo Espírito (Rm 8,11). Reconhecer também, para além da ressurreição, a presença de uma relação dinâmica entre a “ação do Senhor ressuscitado e a economia do Espírito Santo”. Uma tal cristologia mostra-se capacitada para discernir a presença e ação universal do Espírito na história concreta, não apenas enquanto dado afirmado, mas como “fio condutor e princípio guia”[28].

Esta renovada insistência sobre o papel do Espírito na economia da salvação, muito enfatizada no cristianismo oriental, constitui fator importante para ressaltar a imensa riqueza e variedade das auto-manifestações de Deus à humanidade. É verdade que o Espírito não constitui uma “alternativa a Cristo”, estando a ele referido, mas é igualmente verdade que a cristologia não existe sem a pneumatologia, caso contrário acaba por desembocar num cristomonismo problemático. Como indica Dupuis, “a censura que o cristianismo oriental fez muitas vezes à tradição ocidental, considerada uma forma de ´cristomonismo`, produziu o feliz resultado de desenvolver na teologia ocidental recente uma renovada insistência no papel do Espírito na economia divina da salvação, não último na cristologia em sentido estrito”[29]

 O evento Cristo, como indica Dupuis, é ativado e torna-se operante no tempo e no espaço pela ação e obra do Espírito, que já desde o início se fazia presente no mundo (AG 4). Uma cristologia do Espírito constitui canal fundamental para a superação de um exclusivismo particularista no sentido de um inclusivismo disponível para a recepção plural. Com base em tal cristologia as religiões em sua pluralidade podem ser reconhecidas como um valor, enquanto animadas pelo Espírito, que as dinamiza para a meta do mistério absoluto da Divindade.  

Com sua cristologia trinitária e pneumatológica, Dupuis busca preservar a reserva escatológica de Deus. O Deus revelado por Jesus permanece “irremediavelmente escondido”. Sem desconsiderar a singularidade do evento de Jesus Cristo, de modo particular para os cristãos, há que reconhecer que ele não “esgota e nem pode esgotar, o poder salvífico de Deus”. É uma perspectiva cristológica singular, que favorece

uma perspectiva global capaz de manter unidas a unicidade constitutiva de Jesus Cristo Salvador e o engajamento pessoal de Deus junto aos povos através de toda a história da humanidade. O evento ´constitutivo` de salvação é evento ´relacional`, que se insere necessariamente no conjunto do plano orgânico de Deus para a humanidade. Os diversos componentes deste plano único e orgânico são interdependentes e relacionais. O evento Jesus Cristo, constitutivo da salvação para todos, não exclui nem inclui, absorvendo-os, nenhuma outra figura ou tradição salvadora. Há mais verdade e graça divina em curso na história global das intervenções de Deus em favor do gênero humano do que o que se pode encontrar na única tradição cristã”[30]

Uma sabedoria infinita e multiforme

Na construção de seu modelo de “pluralismo inclusivo”, Dupuis busca complexificar o quadro da economia trinitária, assinalando outras dimensões assumidas pela mediação da graça, como a potência universal do Logos e a ação ilimitada do Espírito. A plenitude qualitativa (de intensidade) da revelação em Jesus Cristo não significa, como lembra Dupuis, que após a realização desse evento histórico, Deus deixe de continuar revelando-se por meio dos sábios e profetas das outras tradições religiosas, como no caso do profeta Mohammad (Maomé)[31]. A história continua a ser palco da auto-revelação de Deus. Daí se afirmar que a plenitude é não quantitativa. Este autor abre espaço em sua reflexão para uma compreensão da revelação como evento progressivo e diferenciado.

Com respeito à potencia universal do Logos, Dupuis retoma a referência ao prólogo do evangelho de João para mostrar a dinâmica peculiar de sua ação mais ampla, que não se exaure no evento-Cristo mas manifesta sua operatividade em toda a história humana. Como ele mesmo assinala, “a incomparável força iluminadora do Verbo divino - ´a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem`(Jo 1,9) – foi universalmente operativa antes de sua manifestação na carne e continua operativa através de toda  a história da salvação, mesmo depois do evento Jesus Cristo e para além das fronteiras do cristianismo”[32]. Os elementos de “verdade e graça” (AG 9) presentes nas tradições religiosas da humanidade constituem expressões desse Logos. E para Dupuis, esta ação universal do Logos não rompe com a unidade do desígnio divino para a salvação da humanidade, que encontra no evento Cristo, “o ponto culminante do processo de autocomunicação divina, o eixo que sustenta todo o processo”[33]

Segundo Dupuis, a singularidade do evento-Cristo está em sua condição de “sacramento universal da vontade salvífica de Deus”. Mas tal evento não constitui a única expressão possível dessa mesma vontade de Deus, já que

“o poder salvífico não está ligado exclusivamente ao sinal universal que ele projetou para sua ação salvífica. Isso significa, em termos de uma cristologia trinitária, que a ação salvífica de Deus por meio do Logos não encarnado (Logos ásarkos), sobre o qual o Prólogo segundo João declara que ´era a luz verdadeira, aquela que ilumina todo homem` vindo ao mundo (Jo 1,9) persiste também depois da encarnação do Logos (Jo 1,14), assim como também existe a ação salvífica de Deus pela presença Universal do Espírito, quer antes, quer depois do evento histórico de Jesus Cristo”[34]

Assim como há uma ação universal do Logos, há também uma ação ilimitada do Espírito. O Espírito está sempre presente e em ação na história, antes e depois do evento Jesus-Cristo. E ele atua não apenas na vida das pessoas, mas igualmente nas diversas culturas e tradições religiosas. A dinâmica da salvação vem operada pelo Verbo de Deus e pelo Espírito, que foram tão singularmente nomeados por santo Irineu como as “duas mãos” do Pai[35]. E Dupuis recorre também à imagem de Deus como o oleiro (Is 64,7), que com suas duas mãos realiza uma única economia de salvação. São mãos unidas e inseparáveis, mas também distintas e complementares. Ele assinala que “à luz desta metáfora torna-se mais fácil compreender que a comunicação do Espírito por obra do Cristo ressuscitado não exaure necessariamente a operosidade do Espírito depois do evento-Cristo”[36].

A complementaridade inter-religiosa

Com base na epístola aos Hebreus, há que reconhecer os “modos diversos” (Hb 1,1) em que Deus se revelou e continua a se revelar na história. Isto ocorre também por meio das diversas tradições religiosas da humanidade. Todas elas participam da “história da salvação, que é una e multiforme”, e de maneira misteriosa contribuem igualmente para a afirmação do Reino de Deus[37].

A reflexão desenvolvida por Jacques Dupuis sobre a unicidade de Jesus Cristo destacou como um de seus traços importantes o caráter relacional. O significado universal do evento-Cristo vem, assim, situado no horizonte mais amplo do desígnio salvífico de Deus para a humanidade. A questão que agora se coloca diz respeito ao modo de relação recíproca que vigora entre o ‘caminho’ representado por Jesus Cristo e os outros “caminhos” propostos pelas demais tradições religiosas a seus membros.

Reconhecer as outras religiões como “caminhos de salvação” é dar um passo além da perspectiva inclusivista tradicional, que restringe a experiência religiosa que acontece nestas tradições a meros “anseios” ou “busca tateante” de Deus. O novo passo implica em reconhecer que é Deus mesmo que se faz presente em toda experiência religiosa autêntica[38]. As religiões em si não são a “causa” primária da salvação, já que esta “causa” só pode ser pertinentemente aplicada ao Pai, que em Cristo reconciliou o mundo consigo (2 Cor 5,19). Elas, porém, podem ser “utilizadas por Deus como ‘canais’ de sua salvação”; podem “se tornar ‘caminhos’ ou ‘meios’ que comunicam o poder do Deus salvífico”[39].

A ênfase dada por Jacques Dupuis nas religiões como “caminhos de salvação” implica o reconhecimento da legitimidade de “diversos percursos religiosos”, mas sempre direcionados para o horizonte da comunhão com o Deus uno e trino. Não há, portanto, lugar em sua reflexão para a tese que defende um “pluralismo de orientações”, entendido como a afirmação de “fins religiosos diferentes” para a humanidade. Uma semelhante tese entra em tensão com a vontade salvífica universal de Deus, relativiza a unidade do gênero humano e a comum dignidade de todos os seres humanos perante Deus.

As diversas religiões não se encontram deslocadas das “alianças” estabelecidas por Deus com a humanidade. Santo Irineu falava em quatro alianças de Deus com a humanidade: com Adão, Noé, Moisés e Cristo[40]. A teologia das religiões retoma em particular o significado universal da aliança com Noé, simbolizada pelo arco iris: “Eis o sinal da aliança que instituo entre mim e vós e todos os seres vivos que estão convosco, para todas as gerações futuras” (Gn 9, 12). Em cada uma das alianças estabelecidas por Deus com a humanidade pulsa o “ritmo trinitário”. As tradições extra-bíblicas, como manifesta a aliança com Noé, estão igualmente envolvidas e abraçadas pelos traços da trindade, participando assim da dinâmica da comunicação amorosa de Deus.      

Entre as várias tradições religiosas, incluindo aí o cristianismo, existem valores de uma “complementaridade recíproca”[41], o que não significa conceder o mesmo significado salvífico a todas as manifestações do Verbo ou do Espírito na história. A consciência de uma tal complementaridade a nível dos valores salvíficos permite concluir a existência de uma “convergência entre as tradições religiosas e o mistério de Jesus Cristo, enquanto itinerários – certamente desiguais – ao longo dos quais Deus procurou e continua procurando os seres humanos na história, no seu Verbo e no seu Espírito”[42]. Em Jesus Cristo o processo salvífico universal revela uma fisionomia concreta, mas este mesmo processo ganha “realizações particulares” também nas outras tradições religiosas. Em Jesus Cristo, o desígnio salvífico de Deus para a humanidade ganha a sua densidade culminante, mas não no sentido de representar a única manifestação do Verbo ou a completa e exaustiva revelação de Deus[43].

O reconhecimento de uma “complementaridade recíproca” entre as diversas tradições religiosas deve ocorrer respeitando-se a “alteridade irredutível” de cada uma delas[44]. Levar a sério as religiões é nelas reconhecer algo de irredutível e irrevogável, que jamais será tematizado ou totalizado no cristianismo. O caráter único e singular de cada religião não impede, mas exige uma dinâmica de abertura ao outro. Na experiência do encontro ocorre um “intercâmbio e uma partilha de valores salvíficos” em favor de uma transformação e enriquecimento mútuos[45].

O diálogo inter-religioso constitui o espaço singular para esta experiência de “complementaridade recíproca” entre as religiões. Trata-se de um dos desafios mais importantes nesse novo milênio. Longe de significar um enfraquecimento da fé, o diálogo torna-a mais profunda, convocando-a a navegar em outros espaços e a se abrir a novas e inusitadas dimensões. O cristianismo sai igualmente enriquecido com a experiência da alteridade. Dupuis salienta como mediante o diálogo os cristãos podem descobrir em maior profundidade determinados aspectos ou dimensões do mistério divino, não tão acentuados na tradição cristã[46].

A experiência de “complementaridade recíproca” e o encontro inter-religioso contribuem também para o crescimento do Reino de Deus na história, sempre ordenado para a sua plenitude escatológica. A recapitulação de todas as coisas em Cristo, de que fala Efésios 1,10, não acontecerá de forma “totalitária”, mas no respeito e salvaguarda do “caráter irredutível impresso em cada tradição pelo automanifestação de Deus por intermédio do seu Verbo e de Seu Espírito”[47]. Esta riqueza plural não constitui apenas um fenômeno histórico mas prolonga-se igualmente no horizonte escatológico, quando então haverá uma “maravilhosa convergência” de todas as tradições religiosas no Reino de Deus e no Cristo Universal.  

A perspectiva aberta pela cristologia trinitária e pneumatológica de Dupuis, bem como o tratamento que dá ao tema da complementaridade inter-religiosa abrem espaço fundamental a uma nova valorização do pluralismo religioso, que vem acolhido como um fator positivo. Ganha a nível teológico uma plausibilidade “de direito”, deixando de ser visto como um dado conjuntural passageiro, uma ameaça ou expressão da fragilidade missionária da Igreja. Trata-se de um fenômeno rico e fecundo, que haure sua razão de ser no próprio desígnio de Deus, favorecendo ainda a transparência de toda a “riqueza multiforme” de seu mistério.[48] Enquanto fator positivo, o pluralismo religioso sinaliza a profunda generosidade com que Deus manifestou o seu mistério de modo diversificado à humanidade, bem como as “respostas pluriformes” dadas pelos seres humanos na diversidade de suas culturas à auto-revelação divina. Este novo “salto qualitativo” requer mudanças fundamentais no âmbito da linguagem teológica, muitas vezes pontuada por dinâmica ofensiva e deletéria com respeito às outras tradições religiosas. Mas requer ainda “uma purificação do próprio entendimento teológico e uma compreensão renovada no modo de pensar os ´outros`e seu patrimônio cultural e religioso”[49].

( Publicado no livro: Afonso Maria Ligorio SOARES (Org.). Dialogando com Jacques Dupuis. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 153-177)

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