Contemporâneo de Durkheim e de Weber, autor de numerosas obras nas quais se mostra agudo observador da sociedade moderna, Georg Simmel (1858- 1918) somente em época mais recente foi acolhido entre os “clássicos” da sociologia. Especialmente três motivos se interpuseram, até agora, a tal reconhecimento: o caráter pouco “científico” de seus escritos, que torna muito difícil distinguir, no seu pensamento, o que é original e o que não o é; a polivalência dos seus interesses, especialmente sua “sistemática assistematicidade” e, sobretudo, em seus últimos escritos, a passagem da perspectiva sociológica para aquela filosófica (período de Estrasburgo, conhecido como “filosofia da vida”). Na Itália, de fato, ele se tornou conhecido, primeiramente, através dos escritos deste último período e, por isso, foi considerado um filósofo “irracionalista”; só mais recentemente está se difundindo o interesse pela sociologia de Simmel. [263]
Não obstante o aparecimento de traduções novas ou renovadas de suas obras, além de balanços críticos da contribuição por ele trazida à sociologia, atualmente continua ainda inacessível ao leitor italiano a obra principal sobre a religião. [264] Die Religion (1906), [265] no entanto, parece-nos uma obra que merece a atenção, [266] e não apenas para a reconstrução do desenvolvimento de seu pensamento, mas também na perspectiva da renovação em ato da cultura e da religião na sociologia, como nos propomos argumentar na Segunda consideração intermediária.
De fato, recorrendo continuamente aos dois pólos do código epistemológico adotado — a religiosidade e a religião — e à adoção da perspectiva epistemológica “relacionista”, parece-nos que a sociologia de Simmel realiza, embora às vezes de maneira fragmentária e redundante, um esforço notável para ligar o plano macrossociológico ao micro, a problemática da diferenciação social e religiosa à perspectiva da experiência religiosa do indivíduo, colhido no concreto da vida cotidiana e das relações sociais. Por isso colocamos a exposição das principais teses de Simmel sobre a religião no fim destes dois primeiros capítulos, considerando essa colocação particularmente útil dentro do quadro da reflexão em ato sobre as principais questões da sociologia da religião.
I. A principal obra de Simmel sobre a religião pertence ao mesmo período em que foram escritas as obras mais conhecidas, como a Filosofia do dinheiro (1900) e a segunda edição da Filosofia da história (1905), nas quais ele delineia a sua perspectiva epistemológica “relacionista”. Notamos que a obra Die Religion (1906) constitui um importante banco de prova das potencialidades heurísticas dessa perspectiva; de fato, desde as primeiras páginas, encontramos exposta a teoria das formas culturais, que Simmel elaborou, separando-se do neocriticismo de Rickert. Baseado nela, Simmel sustenta que o conteúdo das nossas representações é um só, e é tirado do mundo da experiência cotidiana mediante a sensibilidade, como também é um só o fluxo das experiências (Erleben). Contudo, são diferentes as formas dentro das quais o único conteúdo é representado e pensado. As várias formas culturais — da religião à arte, da filosofia à ciência — constituem, para Simmel, outros tantos mundos entre si irredutíveis, que permanecem em nós e diante de nós como virtualidades ideais. O material sensível, porém, é um só, proveniente da ordem empírica. Colocando as premissas de uma crítica à concepção “ingênua” da realidade, que encontrará posteriores aprofundamentos em Max Scheler, Karl Mannheim e Alfred Schütz, [267] Simmel observa que o homem simples confunde a realidade com o mundo, quando ela é apenas um mundo — aquele da vida cotidiana, ou seja, da ação teleológica e manipuladora, voltada para a conservação do nosso organismo psíquico-biológico; a este se emparelham as outras formas de mundo já conhecidas: a arte e a religião, a ética e a filosofia, a ciência e a diversão. Cada uma delas — Simmel exemplifica sobre o mundo artístico — tem uma lógica específica, uma específica concepção da verdade, um método próprio: constroem ao lado do mundo real novos universos, mesmo se edificados com o mesmo material sensível do primeiro. [268]
Para Simmel, o homem instaura uma espécie de circularidade semântica entre natureza e História: os dados sensoriais são organizados com base nas formas culturais, entre as quais existe também a religiosidade; esta exerce a sua eficácia num segundo nível, isto é, plasmando as vivências da vida prática, assim como os conteúdos produzidos por outras formas, e colocando-os na esfera de significado própria, isto é, a religião, dentro da qual adquirem um significado novo. Para Simmel, a religiosidade não deve ser confundida com a fé; esta é o aspecto psicológico e subjetivo de uma forma cultural que é universal. Todavia, a religiosidade não é nem mesmo religião, a qual é um produto histórico-social da religiosidade, isto é, da síntese operada pelo “a priori” religioso sobre determinados materiais e vivências, produzidos por formas de alcance limitado. Nessa direção, Simmel chega a antecipar as conclusões dos fenomenólogos da religião:
O homem é naturalier religioso. A religiosidade é um modo de ser do homem, quer ela tenha, agora, um contéudo, ou não, quer esta característica possa ser incorporada ou não, numa fé. Assim como é inteligente, erótico, justo ou belo, assim é religioso: o ser religioso, portanto, é uma maneira primária, absolutamente fundamental, do ser.[269]
Esta afirmação é coerente com a perspectiva relacionista já apontada, pois a religião não é o correspondente subjetivo de um objeto transcendente (esta seria a posição ontológica, que caiu sob o bisturi iluminista), é, pelo contrário, um processo que submete a si todo conteúdo da experiência vital, tornando-o precisamente “religioso”.
O enfoque dado à teoria das formas culturais permite a Simmel explicar a gênese das categorias religiosas de maneira não-reducionista. Dando um exemplo sobre a noção cristã do divino, e articulado segundo as três virtudes teologais — fé, esperança, caridade —, Simmel sustenta que Deus, como objeto da fé, é o produto abstrato das faculdades espirituais humanas. Deus como objeto de busca e fi m em si, ou então, fonte de esperança, é o precipitado da causalidade concebida como energia indiferenciada: na objetivação do “ens perfectissimum”, a razão aplaca a busca do absoluto além de todas as particularidades. Finalmente, Deus como amor é a objetivação da necessidade de amar, em sua forma mais pura, isto é, libertada dos objetos individuais.[270]
À primeira vista, essas observações parecem lembrar as conhecidas teses reducionistas de Ludwig Feuerbach (e embora sob uma perspectiva funcionalista, as de Durkheim, sobre a gênese social das categorias do pensamento); na perspectiva relacionista, porém, elas não têm aquela pretensão de verdade que mantinham na filosofia materialista ou positivista. A perspectiva relacionista de Simmel propõe-se, unicamente, descrever o processo genético que liga a origem social da concepção do divino com o processo mais geral de abstração e objetivação das faculdades humanas, sem pretender que a explicação sociogenética seja nem a única, nem superior àquela posta por outros saberes, “in primis” a teologia. De fato, na perspectiva relacionista, tanto a sociologia como a filosofia são formas culturais de igual dignidade, porque assumem o mesmo material fenomênico sob, “a priori”, diferentes, específicos dos respectivos campos.
É preciso diferenciar o relacionismo de Simmel do relativismo. De fato, no primeiro caso, existe uma articulação e não uma não-relação entre as várias formas culturais, [271] que assumem, sob os próprios princípios, os conteúdos da experiência sensível. Para Simmel, o mesmo mundo fenomênico constitui a base tanto para a cristalização da imagem dos deuses como para o processo de abstração das leis físicas: o mesmo material sensível é assumido sob formas diferentes — a religiosidade e a causalidade —, dando vida a duas esferas culturais distintas — a religião e a ciência. A partir desse enfoque, já podemos notar que Simmel supera, de uma vez, todo materialismo ou positivismo: religião e ciência são consideradas atividades culturais que, tendo origem comum, têm uma mesma dignidade, e não se pode opor a primeira à segunda, como fizeram Comte e Marx.
Em outras palavras, se conduzida coerentemente, a análise do processo genético da religião, em perspectiva relacionista, não implica, por si, um julgamento metafísico sobre a existência ou não de Deus. O julgamento ontológico sobre o objeto da religião é subtraído da sociologia, enquanto ela é disciplina que se coloca num plano empírico, como é evidente, por exemplo, também na posição metodológica assumida por Weber, contemporâneo de Simmel e com posições semelhantes ao Methodensstreit. [272] O próprio Simmel, encerrando Die Religion, exprime com clareza a própria adesão ao “agnosticismo metodológico” weberiano, antecipando a mais conhecida posição weberiana do unmusikelish: ao cientista social cabe um comportamento avaliativo em relação à religião e aos valores; isso significa apenas que as próprias convicções sobre questões últimas não devem desviar a pesquisa, e não que o cientista social deva ser ateu. Pelo contrário, para a religião acontece a mesma coisa que para a música: quem não tem ouvidos para ela, dificilmente poderá apreciar uma sinfonia.
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